2014/07/29

Sofá

Estávamos na casa dele fazendo um trabalho de faculdade. Intervalo, ele se deitou de bruços no sofá da sala e fui à cozinha fazer café pra gente. Enquanto a água fervia, voltei pra sala e o vi deitado. Como brincadeira,  gritando "montinho!", joguei-me sobre ele e fiquei deitado em cima de meu melhor amigo, que nem contestou. Poucos segundos depois, levantei, terminei o café, voltei pro sofá. Ignoramos o café. Ficamos lá, deitados, eu sobre ele, por um bom tempo. A fim de me ajeitar, pedi que ele me deixasse deitar decentemente a seu lado. Até então, nada sexual. Comecei a acariciar levemente seu braço carente de sol. Ele continuava quieto, sem reclamar. Vestindo uma bermuda de corrida, que ele sempre usava na academia, onde esteve antes de me encontrar, mostrava suas pernas maravilhosas. Comecei a acariciar lenta e timidamente sua coxa com a ponta dos meus dedos. Na parte de cima, comecei a massagear seus ombros com meus lábios. Os dedos tímidos na coxa se converteram em longas passadas de mão por toda a extensão de sua perna ao alcance de minha mão. O movimento ia se acelerando. Comecei a massagear sua barriga. Além das respirações ofegantes, silêncio. A situação estava se intensificando e eu estava me empolgando de todas as maneiras físicas e mentais possíveis, quando ele perguntou: “Inácio, o que estamos fazendo?”. Respondi questionando se realmente importava saber. Ele disse que não achava que aquilo fosse certo e então repliquei que não precisava ser certo. Prossegui com os carinhos cada vez mais intensos e com mordidas cada vez mais fortes em seus ombros. Ele já estava ofegante e se movimentava agitadamente no sofá. Quando minhas mãos partiram rumo ao interior de sua bermuda, seu celular tocou. Parei. Morri. Era ninguém ao telefone. Silêncio, nem mesmo as respirações se aquietaram por alguns instantes. Continuei com as massagens e ele ficava cada vez mais ofegante e agitado. Parti para obscuridade novamente, mas ele interceptou minha mão. Tentou se levantar e o peguei, escorregou e repousou sobre o meu corpo já suado. Comecei a apertar seu peito e seu caralho com uma fome maior que tudo. Mais ofegante, mais agitado. Minha sanidade se transformara numa ferocidade carnal gigantesca e doentia, não era eu, apesar de ser eu. Não estava mais ali, não conseguia me segurar. Estava pronto para perder umas boas horas ali. Foi quando ele conseguiu se livrar dos meus braços famintos, sentou-se no outro sofá e disse que queria parar. Que não queria. Que deveríamos parar. Levantou-se e eu me afundei no sofá. Envergonhado, frustrado e constrangido. No final das contas, apenas o que consegui foi deixar uma extensa marca roxa em seu ombro. Era novembro de 2012 e eu achando que o Natal chegaria mais cedo.

2014/07/22

Parede

Nem ele mesmo sabia o que fazia naquele bar. Era uma época em que não mais seus impulsos e sua ansiedade tinham poder influente grandioso em suas decisões. Cortara a café há mais de um mês, porém a cafeína era coadjuvante em sua rotina devido aos chocolates que comia diariamente.
Na verdade, ele não queria assumir o motivo: estava quebrado. Cinco e somente cinco palavras alheias foram lhe suficientes para arruinar. Sua nova ideologia sobre relacionamentos tinha um calcanhar de Aquiles: acontecer exatamente o que ele dizia não querer.
Ela sabia que fazia naquele bar. Era uma época boa de sua vida, que acabava de ser arruinada pelo sumiço daquele que parecia ser o homem de sua vida. Não que ela quisesse casar com ele viver eternamente a seu lado, mas, poxa, não queria que terminasse tão cedo.
Sua amiga S. não quis saber de tristeza e foram ao bar para afogarem-na em álcool. Porém, sem perceber, as amigas se distraíram e deixaram sumir. K. entrou no banheiro e não quis mais sair. Queria descer descarga abaixo e sumir. Indignava-se pelo fato de tal estado ser motivado por uma pessoa.

Enfim, lamúrias a parte, vamos aos fatos daquela noite de terça-feira, após um dia iniciado com um estranho sonho envolvendo sua cidade natal, ruas de chão, ônibus sem luz, bancos empoeirados e distanciamento; e uma sms pedindo para que as coisas do rapaz fossem postas em uma caixa e deixadas na portaria do prédio dela.
Talvez por saudade daquele tempo de porres diários entre expediente e sala de aula, resolveu tomar tal atitude: Foi tomar todas. Começou por uma cachaça que desceu como um abraço e permaneceu quase a noite toda com um copo de plástico, sempre preenchido quando esvaziado, com cerveja. Talvez por falta de novas opções, K. foi ao bar de sempre.
Apesar de frustrado, Inácio preferiu não ferrar com a sua noite fumando cigarros. Exagero. Mas ficou quase a noite toda na calçada em frente ao bar com seus conhecidos fumantes, mas para observar as moças. Aquela que parecia uma personagem do Godard, ok. Aquela que parecia não pertencer àquele bairro alternativo, ok. Aquela que era de ninguém, ok. Aquela que, sem querer, frustrou o rapaz, não. Afinal, estava ali para encarar outras, distrair-se, esquecer por três horas que fosse daquela que... Enfim. Ele conhecera tantas garotas na noite. Nenhuma delas o conhecia. Parecia seu amigo Adalberto, que era apaixonado por romances platônicos. Mas, Deus o livre, ele não queria ser assim.
Numa ida ao banheiro, passou pelas mulheres que esperavam que alguém saísse do banheiro. Impacientes. "Faz quinze minutos que tem uma guria aí dentro", reclamou uma delas. Inácio ofereceu o banheiro masculino às damas, mas nenhuma aceitou. Já dentro, assim que o barulho de sua bexiga sendo esvaziada reagindo com o encontro da água na privada cessou, percebeu uns suspiros vindos do outro lado da parede, no toalete das mulheres. Era choro. Do lado de fora, ouviu alguém bater na porta feminina com raiva. "Sai logo dessa merda", gritou uma voz furiosa. Ainda com as mãos não-limpas, baixou a tampa e subiu na privada. Pouco acima de sua cabeça, havia um intervalo entre parede e teto de uns vinte centímetros. Sem olhar por ali, com medo de ver algo estranho, perguntou:
- Moça, cê tá bem?
Nada. Repetiu a pergunta.
...
- Não. Me deixa!
- Ô, moça, tem gente querendo usar aí. Te ajudo a achar um lugar melhor pra chorar.
- Não, vai embora. Nem me conhece.
De voz, não conhecia mesmo, mas resolveu se esticar mais um pouco para ver quem estava ali, na fossa.
A baixa estatura de Inácio o atrapalhava em descobrir quem estava ali, a uma parede de distância. Pendurou-se na parede e subiu.
Ele conhecia de stalks passados a mulher sentada encolhida no canto do banheiro. Disse em ironia:
- Oi, com licença, desculpa invadir teu espaço, mas, se você demorar mais, galera vai derrubar essa porta e te tirar daí na bicuda.
A moça, com a maquiagem no olho esquerdo descendo borrada até a bochecha, continuou encarando o chão.
- Você não me conhece, mas eu sei quem você é, K.
Ela levantou o rosto rapidamente, estranhada, e perguntou:
- Quem é você?
- Um maluco que tá pendurado numa parede escorregadia te pedindo pra sair do banheiro - e soltou um de seus sorrisos que, segundo uma ex-namorada, eram ingenuamente encantadores e sinceros.
Encarou a porta, levantou-se, arrumou seu vestido, pegou um papel higiênico para limpar seu rosto e disse:
- Tá bom, vamos.
Teve que saltar da parede para alcançar a privada e... A força foi tanta que a patente não aguentou e levou os pés de Inácio diretamente para a água. De fora, K. e o resto da fila puderam somente ouvir uma barulheira desastrosa. Ele se desequilibrou e deu com a cabeça na porta. Momentos de silêncio interrompidos por um "Ih, morreu" da plateia.
Sentou-se na ponta da privada e levou as mãos ao rosto. Soltou um "Ah" e viu que suas mãos estavam pintadas de vermelho.
- Moço, cê tá bem? - perguntou K. apressada assim que ouviu um sinal de vida dentro do banheiro.
A vida seguiu normalmente no banheiro feminino, depois que a tristeza de K. liberou espaço. Porém, do outro lado da parede, Inácio precisou de um tempo para conseguir levantar.
Saiu e deu de cara com K. que estava escorada na parede encarando a porta preocupadamente.
- Inácio, prazer. - Soltou mais um de seus sorrisos e se encaminhou à pia para limpar seu rosto. Lavou as mãos antes de enfiar a cara debaixo da torneira e soltou um gemido de dor. K. pediu para ver como estava o machucado e assustou Inácio ao passar a mão nas costas do rapaz. Ele levantou o rosto e o mostrou.
- Foi um corte bem pequeno, Harry Potter.
- E você tá parecendo o cachorro d'Os Batutinhas - disse ele cedendo espaço para a moça também lavar o rosto.
Saíram do bar juntos com suas cicatrizes, as dela mais escondidas apesar de também recentes, e se sentaram num meio fio qualquer para conversar.
- Daonde você me conhece?
- Da vida. Já te vi por aí...
- Onde?
- Internet, temos amigos em comum - Inácio então, lembrando dos stalks, recordou que ela namorava. Ou não. Talvez o término fosse o motivo das lágrimas no banheiro - Por que você tava chorando, moça?
- A vida.
- Conta aí, meu, que eu conto minhas tretas também. Sigilo de bar.
- Você também terminou um relacionamento sério hoje?
- Não... Quer dizer... Era cedo demais pra dizer ser era sério, mas eu  queria que fosse. Quem terminou, você ou ele?
- Como você sabe que é "ele"?
- Stalker.
- Medo...
- Então?
- Ele simplesmente sumiu.
- Como ele conseguiu deixar alguém assim. - Ele não pretendia flertar com K., queria respeitar sua dor, mas acabou entregando de bandeja o desejo ao dizer - Uma guria linda! Sério, que vacilo.
Imediatamente, ela percebeu, mas disfarçou:
- É complicado explicar, era complicado demais.
- Por quê?
- Ele e sua instabilidade. Tinha dia que me acordava com beijos e café da manhã na cama. Tinha dia que era um canhão de grosserias e mal olhava na minha cara.
- Eita, isso aí é problema psicológico - antes de terminar a última palavra foi interrompido por um tapa em sua cabeça. Era Adalberto perguntando onde ele esteve nos últimos vinte minutos. Inácio respondeu:
- Não te interessa, palhaço.
K., depois de perceber que os dois eram amigos, riu e sorriu para o estranho como se dizendo "oi".
- A gente vai dar uma volta, vai ficar por aqui?
- Sim, - disse Inácio encarando a moça - vou ficar. Até depois.
- E você? Qual sua história de hoje? - prosseguiu ela.
- Vishe... Você bebe?
- Sim.
- Então vou pegar uma cerveja pra gente, aí te conto.
Enquanto ele ia ao bar, K. mandou uma mensagem a suas amigas avisando onde estava. "Se cuida", "É gato o bofe?" e "Não aceite doce de estranhos" foram as respostas de S., que estava dentro do bar com as outras amigas.
Compartilharam experiências românticas e corações quebrados por mais de uma hora, quando a carona de K. anunciou que estava partindo:
- Preciso ir, minha amiga vai me levar em casa e já tá indo.
- Mas você quer ir? Onde mora? - apelou Inácio pegando na mão dela.
- Não... - então K., antes de se levantar, deu-lhe, no rosto, um beijo suficientemente quente para o derrubar.
Ergueu-se rapidamente e perguntou:
- Onde você mora?
- Na Iguaçu, quase esquina com a República Argentina.
A resposta imediatamente alegrou o rapaz, que sorriu e disse:
- Então a gente divide um táxi. Eu moro na esquina com a Saint' Hilaire.
- Mentira!
- É sério.
- Então tá, a gente vai. Agora?
- Você que manda.
- Por mim, a gente fica mais um pouco aqui, mas só vou ali me despedir delas.
Ficaram ali por mais um tempo e foram embora. Dormiram juntos. K. engravidou. Na verdade, já estava do ex-namorado, mas nunca descobriu. Não importava. Inácio cuidou da criança como se fosse sua filha. Aliás, o que importa, apesar da herança genética, é quem cria. Durante a gestação, entre crises profissionais dela, "minha carreira está arruinada", e ataques de ansiedade dele regadas a álcool, "eu não serei um bom pai", o casal até que enfrentou e superou as dificuldades. Batizaram a criança com o nome da rua onde se conheceram. Assim que Paula teve idade suficiente para ouvir e entender histórias, contaram o cômico episódio sobre como se encontraram, entre as paredes de dois banheiros apertados, cheios de cicatrizes.

2014/07/21

Platonismo P. ou a Consumação do intangível (A Noiva)

Eu te avisei que era platônico, mas precisei provar a mim mesmo que eu estava errado. Errado no sentido de que não teríamos futuro. De que todas as ilusões criadas antes de dormir permaneceriam dentro minha cabeça enquanto eu lembrar dela.

Tanto tempo, mais de um ano, cruzando com ela em tantos desconexos lugares, fazia-o crer que havia ao menos dezenas de interesses semelhantes que a tornavam uma pessoa… Bem, ele não sabia explicar com precisa exatidão o que havia nela para tanto magnetismo, tantos pensamentos antes antes de dormir - nada maliciosos, algo indescritível que a tornava…. Musa. Maior musa da materialização de seu platonismo ou outro termo, outra descrição, que defina todo esse sentimento insistente. Esse platonismo permanente que preenchia suas memórias enquanto ninguém real aparecia para cumprir essa função e tudo mais que ele ansiava.

O amigo dela, que o rapaz acabara de conhecer e sabia do desejo, disse, na tentativa de desmotivar o platônico a abandonar sua vontade, que o maior relacionamento no qual ela esteve envolvida durou não mais que duas semanas. “Não quero casar com ela. Particularmente, eu a chamo de A Noiva, mas não quero jurar eternidades com ela a um padre seguindo dogmas religiosos. Jesus don’t love me and God doesn’t like my type. Quero apenas… Consumar o desejo, concretizar a até então intangibilidade platônica que me perturba faz tempo. Se vai durar vinte minutos, vinte meses, ou até morrermos lado a lado, não posso prever. Posso apenas me permitir que nos deixemos apenas sentir, enquanto o sentir for sincero, espontâneo etc. Se a ressaca moral pós-overdose durar tempo suficiente pra me corroer, no entanto poderei dormir com a realização contente de enfim ter realizado desejo há tanto estimado”, disse num monólogo alcoolizado ao amigo da moça.



- Ele tem carro roxo, tem coisa mais brega?

- Roxo… Ela, a [musa platônica] … Pintou o cabelo de roxo esses tempos atrás.
- Nossa, cara, eu não gostei.
- Porra, eu fiquei chapado com esse cabelo dela. Deixou ela ainda mais... Ah... O de cigarro também.
- Cigarro, o que?
- Quando ela descoloriu e ficou uma bagunça preta, branca e amarela, parecendo um cigarro aceso, achei lindo.

Talvez tudo isso não passe de um conforto ao qual ele recorre quando está cansado. Seu comodismo sentimental persistia nisso na falta de alguém mais próxima? Ele perdera o controle no momento em que começou a se questionar se realmente queria pular o muro do platonismo e invadir a rotina dessa moça uma única vez que fosse. Ele já não sabia se queria algo com ela além de observa-la do outro lado da rua bebendo, com o canto de olho no ônibus ou ao se cruzarem nos corredores da faculdade. Talvez o tempo tivesse enfim o convencido que ele sempre foi lento demais na versão contemporânea de conquistar alguém. Talvez ele devesse parar de encarar o teto durante a noite pensando na outra e dar um beijo na esposa antes de dormir. Sim, deveria começar a pensar mais na mulher com que dividia a cama antes que ela resolvesse partir ao corrosivo campo platônico do término e todas as dores anexadas a isso.

2014/07/16

No hugs (100 abraços) ou Abraços entre facas e sangramentos

Sim, eu contei. 100 é o número mínimo de vezes que desperdicei a oportunidade de ter feito tanta coisa. Te abraçar, só pra exemplificar. Eu superestimo, nesse meu negócio de romantizar tudo e a vida, coisas simples como abraços. Sei lá, você deve abraçar tua mãe, teu pai, teus sobrinhos, teus animais, mas, claro, porque você gosta deles e, principalmente, tem intimidade. Não que você não goste de mim, não sei, nunca afirmou coisa parecida ou contrária. “Afirmar”, claro, nesse jogo de sinais. Até gente aleatória você abraça, vai, como pessoas da faculdade não tão próximas, apenas por convenção social. Mas eu, ah, não abraço qualquer pessoa. Calma. Quero que a pessoa tenha força suficiente pra... Segurar-me. Abraços não são (não devem ser apenas) convenção social. Abraços são (precisam ser) portos seguros. Não apenas para mim. Pra nós dois.
Há cem dias, a gente saiu pela primeira vez. Há cem dias, ocorreu nosso primeiro encontro. Quer dizer, a gente se desencontrou antes mesmo de nos encontrarmos. Se é que isso pode fazer sentido no fim, mas, enfim, faz. Como você mesma disse, a gente se perde pra se encontrar.
Não que eu seja extremamente tímido, só um pouco, mas é que não quero que nosso relacionamento… Não, espera… Nosso caso… Não… Enfim, isso aí que a gente tá vivendo; não quero que isso se desgaste. Temo até que abraços prematuros possam rasgar nossos laços. “Laços”, você sabe. Não quero apertar demais pra evitar que esse laço se torne um nó cego. Nós, cegos pelo pessimismo. Se bem que eu e minha falta de coordenação motora já me deram problemas, em outras ocasiões, na hora de regular a precisão em minhas mãos. Descoordenado. Não sei usar tesouras, não sei dançar, não sei desenhar linhas retas, não sei me equilibrar em patins, não sei rodar de olhos fechados sem ter enjoos depois, não sei tanta coisa, mas sei...
Eu sei... 
Acredito, nessa minha cabeça entupida de metáforas e perspectivas analógicas, que somos facas afiadíssimas, porém, ao mesmo tempo, cheias de desgaste, suscetíveis a fragilidade de sermos mutuamente cortadas pelo mais singelo toque. Não quero te cortar, mas quero me aproximar ainda mais. Não sei devemos tentar encontrar um ponto em nós isento de destruição iminente. Sei que meu pessimismo em relação ao tal do amor (redundância para utopia) somado ao teu pessimismo em relação ao tal do amor (redundância para utopia) nos distancia de várias possibilidades possivelmente agradáveis. Talvez. Não que eu não acredite que esteja dando certo… “certo”, você entende, não?... afinal, estamos indo… indo… mas acho que, sei lá, acho que a gente deveria arriscar um pouquinho mais, mesmo que sangrasse um pouco, ao menos até encontrarmos um lugar melhor, na distância não-tão-precisa entre nossas individuais idealizações de um relacionamento saudável. Creio que se enfim nos chocássemos para fundirmos nossas existências, eu estaria então suficientemente motivado a enfrentar qualquer sangramento. Teria forças para estancar, mesmo que com as próprias mãos, de duas gotículas em um corte ao lado de sua cicatriz dadaísta a uma hemorragia em sua alma. Tudo para nos salvarmos. Não que eu queira ser "salvo" aliás (maldita sociedade que relaciona salvamento a religião), você já deve ter percebido que não prezo tanto por isso.
Mas eu quero...
Só não quero chegar ao ponto de, em alguns dos tantos dias que tenho para viver, cantar com razão que "lamentamos muito por não realizado algo maior". Doer, lógico que vai. Acabar? Certamente. Mas, ô, de que adianta terminarmos no raso da superfície? Eu quero me afundar. Sei que podemos ser um iceberg talvez capaz de destruir o maior dos navios repleto de inseguranças, receios, obrigações, pessimismo e repetições.
100 vezes, 98 barreiras entre nós. Não que eu não queira sentir. Eu sei... Eu quero... Sentir. Passou-se tempo suficiente pra me decidir, pra deixar crescer em mim o que não posso nem quero mais aprisionar,  mas o que não quero é estragar tudo. Também evito ao máximo dar motivos para que a vida estrague por conta própria. Meu receio consiste no fato de que tudo possa desmoronar caso a repetição ocorra demasiadamente. A gente insiste em ter medo, pronto, assumo por nós dois, por mais que eu ache errado ficar assumindo coisas por você, mas, se estou envolvido, posso dizer algo. Se você for contra isso, se discordar de algo, capriche nos sinais, olhares desviados, palavras repletas de vazio gritante ou o que preferir. Desde que continue aqui. Aqui, ali ou em qualquer lugar. "Aí ou em q u a l q u e r lugar". Aqui, aí, ali ou em qualquer lugar comigo. “Comigo”, desse nosso jeito.

“No meio daquele grande naufrágio, eu avistava uma ilha onde podia abordar.”
Honoré de Balzac, em O Lírio do Vale.

2014/07/11

Em busca de Francisco

A história começa não-cronologicamente por José, que encontrou um sofá na livraria para se sentar e decidir qual dos quinze livros levaria pra casa. Tinha todo tipo de leitura. Tudo prosa, pois ele tinha preguiça de poesia. "É muito pessoal, não consigo entender”, reclamava. Com o canto de olho, observou que um vulto havia estacionado em sua frente, a dois ou três metros dele. Ainda cabisbaixo, encarando os livros, percebeu que a pessoa continuava parada. Levantou o rosto e descobriu uma morena de batom vermelho, que o observava estranhada. A moça fixou seu olhar no dele, sorriu timidamente, e partiu. José voltou a encarar os livros, mas ignorava o que tinha em mãos, apenas tentando entender o que é que tinha acabado de acontecer.

Inês vestiu sua mais romântica roupa, queria estar como a protagonista de um romance qualquer no primeiro encontro. Pegou carona com sua mãe e chegou mais cedo ao local marcado. Sentou-se num canto e começou a ler a primeira coisa que alcançou numa prateleira qualquer. Era algo sobre um casal que se reencontrou muito tempo depois de viverem um romance. Inês tinha pouco mais de trinta minutos para saber se os dois ficariam juntos novamente. Vinte minutos. Dez. Cinco. 19 horas, horário de Brasília. Quinze minutos de tolerância. Sete e meia. Sete e cinquenta... Inês já ignorava o livro que tinha em mãos. “Pelo amor de Deus, já passou das oito e ele não chegou ainda!”, desesperou-se. Não tirava os olhos da entrada principal da loja, então se lembrou que havia outra no segundo andar. Subiu as escadas olhando para todos os lados em busca do rapaz. Havia outros homens interessantes, mas nenhum deles era o que tinha marcado o encontro com ela. Percorreu o segundo piso e nada. Terceiro, ninguém. Voltou ao térreo e começou a andar pelos corredores entre prateleiras. Livros de bolso, nada. Filosofia, nada. Quadrinhos, nada. Auto-ajuda, não. Então perto de uma estante repleta de literatura russa, avistou um rapaz ansioso procurando algum título específico. Devia ser ele, mas Inês não lembrava muito bem, naquela noite no show de uma banda que ela nem gostava, do rapaz que se aproximou ao perceber que ela falava do relacionamento entre dois escritores do século passado. Aproximou-se lentamente e perguntou:
- Você é o Francisco?


Ele precisava provar para José que havia duas versões com títulos diferentes para uma mesma história de Dostoiévski, então Charles fez “não” com a cabeça para a estranha e continuou sua caça.
- Não consegui achar ainda, mas se te falo que tem, é que tem mesmo!
José nem ligava mais em estar errado, mas continuou o debate apenas para provocar o amigo:
- Cara, não pira, são duas histórias diferentes. Se você não consegue me provar, é porque tá mentindo.
- Tu vai ver.
Charles foi procurar um atendente que o ajudasse a localizar as duas versões do tal livro. José continuou sentado com seus catorze mil candidatos a aquisições literárias do mês. Era muita coisa para tão pouco dinheiro.

Depois de se constranger com o cara na sessão da Rússia, estava indo para o segundo andar novamente, quando, parada no pé da escadaria, viu um rapaz sentado com alguns livros no colo, lendo a contracapa de um conto sobre um capitão que abandonou o comando de seu navio. “Agora é ele!”, afirmou. Foi se aproximando lentamente alimentando a certeza de que enfim Francisco havia chegado. “Tão culto sentando desse jeito com os livros, parece que quer engolir todos eles”, encantando-se com o moço, que aparentemente ignorava qualquer outra vida naquela loja. Inês parou na frente dele e ficou o observando. Até que o rapaz levantou o rosto e fez uma cara estranhando a situação.

- Tá aqui, já te mostro que é a mesma coisa, só que um com uma tradução bem melhor. Mas, ei, você que é o Francisco?
- Não, prazer, sou Adalberto - disse José, oferecendo a mão nessa brincadeira que repetia  frequentemente.
- Cê viu uma morena baixinha passando? Ela chegou em mim perguntando se eu era o Francisco.
- Batom vermelho, cabelo amarrado num rabo de cavalo?
- Isso.
- Cara, que bizarro, eu tava aqui lendo a contracapa de um livro, ela parou na minha frente e ficou me encarando. Aí, quando olhei, me deu um sorriso toda sem jeito e foi embora.
- Coitada, acho que o tal do Francisco deu os canos nela.
- Será que ela tá por aí ainda?, vou dizer que sou o Fernando.
- Francisco.
- Isso, tanto faz.

Mandou uma sms perguntando quanto tempo mais deveria esperar. Tentou ligar, mas foi direto para caixa de mensagens. Inês estava há mais de duas horas na livraria esperando por Francisco. Cruzou com os dois rapazes que foram confundidos por ela com o caloteiro e baixou o rosto envergonhada. Cansada, resolveu ir pra casa e esquecer Francisco. Não conseguiu, passou a noite toda sentindo raiva de si mesma por ter aceitado o convite de sair com ele. Dormiu, se duvidar, pouco mais de duas horas, e não conseguiu mais. Retomou então a leitura da indecisão de Félix entre Henriqueta e Lady Dudley, e como ele encontraria Natália. Fechou o livro na página 313 e foi tomar banho.

A caminho do estacionamento, Charles foi contando sobre seu trabalho atual e como ele estava cansado de ler. “Nem bula de remédio, tô ficando cego de tão cansado”, reclamou.
- Não esquece de pedir minha bermuda no sábado - pediu José.
- Imagina, a guria vai querer me bater.
Deixou o amigo em casa e foi pra casa jogar videogame, já que estava sem internet para ver série e cansado pra qualquer outra atividade. Charles não aguentou muito tempo de jogatina. Trocou algumas mensagens com sua namorada antes de dormir, desmaiou e acordou atrasado para trabalhar.

Graças a um vizinho que resolveu acordar a família na base do grito, às seis e meia da manhã, José se lembrou que tinha trocado de escala do plantão com uma colega que precisava viajar naquela sexta-feira. Ainda frustrado por não ter comprado um livro sequer na noite anterior, primeiro por indecisão, segundo porque seu cartão de crédito não tinha virado ainda, resolveu ir pedalando pro trabalho, já que não teria o que fazer no ônibus além de encarar pessoas na ausência de uns pedaços de papel.
Numa esquina qualquer, alguma entre a 24 e a Westphalen, esperando o sinal abrir, ouviu um ruído pesadamente irritante vindo de uma outra bicicleta que se aproximava do cruzamento. Virou-se, sorriu e perguntou:
- E aí, encontrou o Francisco?

- Não, mas reencontrei você.
- Orra, sacanagem… O cara te deu os canos?
- Azar o dele - disse Inês com sorriso muito distante daquele embaraçado que lançou para José na noite passada.

Mesmo sem o batom vermelho, algo que costumava deixar as mulheres mais bonitas, na opinião dele, aquela estranha conseguiu quase derrubar José da bicicleta. Disse, sem jeito:
- Babaca esse cara. Eu não te daria os canos, mas nem que me pagassem.

Assim que saiu da festa junina, com a bermuda recuperada para o amigo, Charles ligou para ele, perguntando se estava em casa. José não atendeu, mas respondeu via sms:
- Cara, tô aqui procurando o Francisco.
Charles foi entender a mensagem na semana seguinte, quando foi tomar chimarrão com José na praça e obteve a explicação.

Na semana seguinte, Inês ligou de um telefone diferente para Francisco, que até então não tinha pedido desculpas por não ter aparecido naquele dia nem dito qualquer outra coisa depois, sumiu. “Oi, Francisco, aqui é a Inês. Então… Sobre nosso encontro: Obrigada. Você não foi sei lá porquê, mas foda-se”, e desligou. Foi na tentativa de encontrar alguém que julgava ser-lhe ideal, que encontrou uma bagunça imperfeita que não se importava com o fato de Inês sair encarando pessoas na livraria. Não encontrou Francisco, porque o Deus da coincidência, ah, sempre ele, preferiu que Inês se encontrasse com José. Mais tarde, desencontrou-se dele. Encontrou Charles e fim.

José lia de tudo, mas nada poderia explicar como foi que conseguiu se desentender com Inês. Porém, apesar da mágoa enraivecida, nada pode fazer quando percebeu entre Inês e Charles uma intimidade, um magnetismo que... Bem, nada poderia fazer para inibir o potencial de "dar certo" entre os dois. Nada além de desaparecer.

Charles, que, de tão constantemente cansando, esperava nada da vida e alimentava nenhuma expectativa, acabou por des-cansar ao lado de Inês, que conseguia  enxergar algo nele invisível para ele mesmo. Alguma coisa que a fazia esquecer Francisco, Antônio, José, Federico, Simone e todos os problemas.

2014/07/07

bloco preto Poema

veia
       na
            concretismo                                 tiro            spray nozolhos        e     
                    cadeia                              só     porrada                      moral  preguiça
       na
rima

2014/07/06

Chaves, barcos e amores


“Eu pensei
que morrer de amor fosse só

jeito de falar.”

Todo largado na poltrona, sorriu quando ela puxou seu braço ao fim de uma música. Aparentemente indignada, perguntou:
- Morrer de amor é algo tão… besta.
Pensou que o rapaz fosse concordar e replicar com algo que complementasse sua ideia. Não:
- Morrer a gente vai de qualquer maneira, mas acho que faz sentindo escolher um jeito que seja bonito. Morrer de amor… Sim. - sorriu novamente.
Logo o moço se calou para se concentrar no show que havia sido retomado enquanto ele terminava sua fala. Ela também emudeceu, mas não tanto pelo show, mais por espanto ao que seu par havia dito.
Não que ela fosse uma extrema pessimista em relação ao amor… Quer dizer, só um pouco. Era mais um distanciamento para evitar se machucar. De novo. Como se fosse uma alergia surgida depois do excesso. Amou demais anteriormente e as feridas coçavam até sangrar. Ela dizia que “o problema do amor é que ele tem uma chave-mestra das pessoas, que faz o ser abrir todas as portas de sua existência, sem deixar um cofre sequer seguro. Aí quando o amor acaba, quando ele finalmente parte… Deixa tudo aberto, aí entra vento, chuva, black bloc… Te deixa uma bagunça. Pra piorar, antes de sair, quebra todas as fechaduras e leva todas as cópias das chaves consigo".
Apesar das ideias, preferia não ataca-lo com isso. Não queria passar a imagem de que era uma rabugenta anti-sentimentalismo. Afinal, pelo contrário, era sentimental à sua maneira. Era difícil encontrar um tradutor que interpretasse seu jeito de sentir as coisas, as pessoas.
Já ele… Ele parecia não se importar com essa raiva dela. Aparentemente, sabia lidar com isso. Ou apenas era reativo demais para tomar as rédeas e pôr tudo em ordem entre eles. Algumas moscas repousavam sobre os olhos dos dois e não tinham coragem de tirá-las dali. Na verdade, ambos não se importavam em votar por uma liderança do relacionamento. Deixavam-se ir… Quando ele, dois centímetros mais baixo que ela, não alcançava o chão e começava a ser puxado pra dentro do mar, davam um jeito de voltarem juntos pra areia. Quando ela, Rainha das Vertigens, aproximava-se demais da beirada da torre, era enlaçada por uma corda ao corpo dele - se caísse, não estaria sozinha.
Sobre morrer de amor, ele queria cair, se afogar. Com alguém.
Sempre tão inseguro para decisões, refletindo quarenta e doze vezes antes de agir, temeu por muito tempo pensar em entrar na vida de alguém. Menosprezava-se demais. Não que fosse um ser miserável de ideias, sentimentos e demais itens básicos de sobrevivência social, mas possuía suas incoerências e maldades - que, para ela, não eram incômodas. Enfim, ele demorou tanto tempo porque a vontade de estar com alguém precisou crescer muito para derrubar o medo de se arriscar. Arriscou. Amou. Se perdeu. Desmoronou. Demorou mais tempo ainda do que antes pra encontrar um barco em que houvesse alguém disposto a remar apesar de alguns furos no casco. Sozinho, numa correnteza forte qualquer, acabou se enroscando com ela, também perdida na maré, e começaram a andar, nadar, voar juntos.
O rapaz acreditava que morrer de amor, sim, seria algo bonito, porém, apenas se enquanto estivessem no auge. E que o golpe que o abatesse fosse fortíssimo a ponto de fazê-lo apagar isento de dor. A queda, como o casal estaria no topo, teria uma brisa confortável. Na verdade, ele nunca refletira seriamente sobre morte amorosa. O rapaz apenas dissera aquilo por estar anestesiado pela companhia da moça. Não estava muito apto a reflexões concretas.
Assim que saíram do show, foram jantar, exageraram no vinho, foram pra mesma cama e morreram afogados num amor de consequências eternas geradas pela consumação carnal de duas almas. Uma criança comprara passagem pra esse cruzeiro no barco furado chamado Vida. O mundo parece ter dado voltas demasiadamente aceleradas que deixaram o casal tonto, mais que o normal, e precisaram de um tempo para se estabilizarem e reencontrarem o Norte. Ele acabara de ser efetivado na empresa onde estagiou antes de se formar; ela, admitida numa universidade estrangeira e… Surgiu então a suspeita de que precisariam arranjar barcos diferentes e seguir sozinhos. Decidiram morrer de amor. Afogaram-se juntos nos olhos da criança que nasceu trazendo respostas que o casal precisava. Foram os três morar no exterior e ele se tornou correspondente internacional de sua firma. “Morrer de amor não é de fato morrer, mas algo constante que vai acontecendo enquanto vivemos” foi o tema do Trabalho de Conclusão de Curso dela.
O cruzeiro dos dois, abandonado pela criança quando a mesma completou vinte anos e seguiu com seu próprio barquinho, foi interrompido e começou a naufragar sem chances de resgate quando surgiu o inevitável iceberg Morte, a morte mesmo, que não diferencia amor, câncer, ônibus ou qualquer outra coisa como causa. Primeiro, a dama, que teve um negócio envolvendo água nos pulmões. Não muito tempo depois, foi ele, que não morreu de amor, mas, ironicamente, de algo no coração.

2014/07/05

Amarela, azul, ansiedade soterrada

Primeira vez que estive em seu quarto, “só pra ver uns filmes”, avisava o convite, ao entrar, espantei-me com o tamanho do lugar. Um rapaz tão alto, tão grande por dentro, tinha um espaço um tanto quanto minúsculo para repousar com sua alta estatura e sua cabeça tão lotada. Preferiu não apresentar-me ao resto da casa e, enquanto ele fazia sei lá o quê no banheiro, aliás, um quarto pequeno, mas uma suíte, comecei a estudar o ambiente.
Uma cama de solteiro, porém menor que as comuns, com um abajur que servia de suporte para um gorro preto preso a cabeceira; sobre um armário conjugado de duas portas e quatro gavetas, caixas , tênis e roupas atrás da porta; uma escrivaninha (que não combinava com o restante da mobília do quarto - único móvel além da cama-armário) repleta de papeis, um copo sujo de roxo (suco ou vinho?) e um computador. Sobre tudo isso, uma prateleira um pouco diferente. Vertical. Partindo da base e indo além da metade da coluna, livros ficavam um em cima do outro, até que começavam os dvds, também empilhados. Mais literatura do que cinema. Acho que a capacidade máxima já havia se excedido há alguns livros atrás. Tinha todo tipo de leitura, incluindo quadrinhos, histórias juvenis e uma trilogia sueca. Preso a dois livros, havia um pedaço de papel, em que pouco menos de cinco centímetro ficavam dobrados e presos entre livros e o resto da peça fazia uma curva perpendicular para que seguisse pela parede da coluna, com um desenho em vermelho de uma silhueta feminina acompanhada de “nadamerestaalémdetudo”. O mais estranho dessa coluna de livros, dvds e um desenho feito no verso de uma folha de um bloco de notas distribuído por uma empresa qualquer, eram dois cordões que saiam de baixo de diferentes livros. Sob a prateleira, presas à base, duas espécies de etiquetas de roupas com desenhos góticos, incluindo uma mula sem cabeça ou coisa parecida de ponta cabeça, e um post-it com uma lista que depois descobri serem títulos de filmes que ele pretendia de assistir.
Demorei a perceber que atrás da torre de arte, havia mais arte: um quadro de fundo preto com traços verdes, amarelos azuis e roxos. Era um desenho selvagem, silvestre, abstrato. Sem assinatura. Acredito que não era intencional deixar que esta pintura ficasse ocultada por livros e dvds, mas talvez não tivesse tempo de arranjar um prego e um novo local para o quadro.
Ele finalmente saiu do banheiro e nos arrumamos para assistir filmes em seu computador. Lá pelo fim do terceiro, dormimos antes que algum de nós ousasse colocar mais um. Não deu tempo. O sono estava com pressa. Dormimos nós dois juntos, abraçados e apertados numa cama tão pequena para tanta gente. Fiquei com as costas coladas na parede. Acordei pouco antes dele, que dormiu no lateral que dava para fora da cama, quase caindo de um metro de altura do chão, e fiquei observando o quarto novamente. Então vi uma folha saindo, escapando, também deitada entre os mínimos espaços, de dois livros. De olho e de longe, consegui averiguar que era um papel mais grosso. Da minha perspectiva conseguia visualizar apenas a face inferior, branca, com minúsculas manchas pretas. Fiquei curiosa para saber o que estava escondido ali. Uma carta, uma foto, não tive tempo de descobrir, pois logo ele acordou, levantamos e saímos.
Sabia que dele expirava certa inocência repleta de timidez, mas achei que tal condição mudasse em seu território, já que todos nossos outros encontros foram em locais públicos e abertos, impedindo-o que ele “me agarrase” à força. Pensei que ele fosse tentar me seduzir naquela noite. Estava enganada. Nada forçou e nada fizemos relacionado a nudez e suor. “Só quero fazer o que costumo fazer sozinho, só que com você ao meu lado dessa vez”, disse ele ao me convidar para conhecer, conforme sua própria descrição, seu “quarto que mais parece um calabouço mas, na verdade, é uma releitura contemporânea do quarto do Rodka com traços de hotéis japoneses minimalistas e dormitórios de naves espaciais como os daquele filme com a atriz que fez a Lisbeth”.
Não tive tempo de descobrir o que era aquele pedaço de papel na primeira ocasião em que estive lá, mas tive outra chance. Tempo depois, não muito, retornei. Novamente, ao chegarmos, tive de espera-lo fazer sabe-se lá o que no banheiro. Resolvi então tentar saber o que estava soterrado e escondido entre aqueles livros, mas seria trabalhoso desmontar aquela torre de coisas. Além de invasão de privacidade, convenhamos. Decidi parar por suspeitar que talvez fosse algo que ele realmente quisesse esconder. Talvez não. Tomei chá de impulso e comecei a desmontar o prédio. Peguei diretamente sob o livro superior a folha grossa que sustentava o restante de coisas que havia acima dele e levantei tudo. Susto. Tudo ao chão. Assustei-me com a saída repentina dele do banheiro e derrubei tudo que havia em minhas mãos. Abaixei a cabeça esperando que ele fosse surtar comigo e pedi desculpas. Ele veio em minha direção, abaixou a cabeça para me olhar nos olhos e deu um sorriso tímido.
- Tá com inveja da minha coleção, moça?
- Tô… - novamente pedi desculpas, constrangida - Eu só queria ver o que estava entre os livros.
- O que? - olhou para a prateleira curioso como se também não soubesse o que havia lá e pegou a folha - Nossa, isso! Nem lembrava - então me mostrou o que era.
Desenho de uma mulher em aquarelas azuis e amarelas num fundo branco. No rosto, um ar meio triste, meio blasé ou apenas indiferente. Morri de vontade de perguntar se a assinatura era de uma fantasma, de alguém que havia destruído seu coração ou coisa parecida, mas ele se antecipou:
- Comprei de uma conhecida que estava precisando de grana. No impulso.
- Pelo visto, você gosta de desenhos sem molduras… - disse apontando com o olhar ao “nadameresta…”
- Ah, esse é meu mesmo. Fiz durante uma aula entediante enquanto criava na cabeça uma história semelhante ao momento em que estava na minha vida.
- O que essa frase quer dizer?
- Olha... - tentou achar respostas encarando a parede, demorou mas continuou - Às vezes, isso há quarenta e doze anos antes de Confúcio, encontrei-me vazio, sabe?, sem ter o que me preencher, como se nada fosse capaz de fazer isso, mas aí pensei… Só me resta uma coisa: buscar de possíveis alternativas, mesmo que superficiais talvez, que…
- Preenchessem teu nada.
- Por isso esse tanto de livro e filme - encarando o desastre que cometi.
Começamos a juntar e empilhar seus pertences, logo tudo estava de volta a seu devido lugar. Filmes, sono, sonho, despertar, partir. Um ritual que, após o culto, me deixou um pouco anestesiada e saudosa, querendo repetir o quanto antes.
Próximo encontro não foi em sua casa, porque fomos ver uma estreia no cinema. Digo, pretendíamos. Chegamos lá e encontramos todas as sessões lotadas para aquele dia. Sentamo-nos num banco próximo a bilheteria e ficamos conversando até a hora que precisei ir pra casa. Minha. Sem ele.
Aí veio o fim de semestre para ambos e o clichê “não há tempo para nada além de seminários, resenhas, provas etc”. Ficamos um tempo distantes nos dedicando à vida acadêmica que tanto sono tira e tando estresse dá. Depois de algumas provas finais e notas lançadas, enfim, chegaram as férias e um cansaço do tamanho da Terra, que poderia ser abatido naquele quartinho esquisito. 
Depois de alguns encontros em teatros, cinemas e bancos aleatórios, voltei à casa dele.
- Por que você demora tanto tempo no banheiro? - perguntei assim que entrou no quarto.
Ficou meio sem jeito, pensou, encarou o chão e respondeu:
- Tomo remédios contra ansiedade, então fico lá dentro até começar a dar efeito.
- Pra quê cê toma isso?
- Pra controlar impulsos.
Aquele assunto parecia lhe ser indigesto.
- Que impulsos?
- Nem eu sei direito, mas fiz coisas das quais me arrependo muito.
Encarei-o um tanto assustada. Não respondi. Até que ele continuou:
- Eu sou uma bagunça, moça, devia ter avisado antes. Sou problemático demais…
Interrompi assim que percebi em sua voz e em seu olhar certa aflição:
- Todo mundo é, cara.
Riu e contestou:
- Não, cê não sabe o que fiz.
Peguei-o pelos braços, encarei fixamente seus olhos e ordenei:
- Me conta, quero saber - então fiz o que me restava a fim de comprovar que ele estaria seguro comigo. Depois de um longo silêncio gerado pelo abraço que disparei, deixando ambos sem ar, começou a relatar seus traumas e supostos erros. Não poderia condená-lo por tais atitudes, não eu. Nem eram fatos tão graves, mas suficientemente pesados para serem carregados por um só ser, que dificuldade para lidar com determinados fardos.
Percebi que ele era muito maior que a capacidade que aquele quarto conseguia abrigar. Sua grandeza vazava pela porta e soterrava o prédio, a cidade. Soterrava-me. Apaixonei-me por essa inundação de timidez, ansiedade, filmes, traumas e desmoronamentos de tantas outras coisas. Terminamos a lista de filmes a serem assistidos daquela lista no papelzinho amarelo e começamos outras.
A partir desse dia no confessionário, comecei a ver nele exalar uma liberdade para falar o que lhe vinha em mente. Livre também ficou para não tomar remédio toda santa vez que eu visitava seu quarto. Livre para… Com licença… Retirem-se do recinto por gentileza. Não quero que ninguém veja o que acontece neste quarto assim que os créditos de qualquer filme começam a aparecer.

2014/07/04

Sobre vida e morte (não existe outro lado)


- Moça, faz isso não.
- Não, eu vou.
- Olha a sujeira que cê vai fazer. Ninguém vai querer limpar.
- Azar de quem ver... Eu quero ir...
- Você para!
- Para você. Diz pra Lúcia que estarei esperando por ela no além.
- E você  ainda acha que ela vai te encontrar do outro lado? Besteira! Não existe outro lado. Tudo simplesmente - estalando os dedos rapidamente - apaga, acaba. É um sono profundo só que sem a parte dos sonhos e de acordar depois. Cê tá sofrendo agora? Tá, até demais, mas pelo menos tá vivendo e amando. Tens alguém.
- Eu não pedi pra nascer ou amar.
- Esse é o maior sinal de ingratidão que alguém pode dizer. Como se tudo que você não pedisse fosse ruim, mas não… Lembra do Tibúrcio, aquele cachorro incrível, você pediu por ele? Não, foi teu pai, descanse em paz, senhor, que te deu. Você não pediu por uma amizade canina e, nossa, aquele bicho te fez feliz por muito tempo.
- Até que ele morreu.
- Não foi ele que pediu nem você. Aposto que a mulher que você tanto ama também não está pedindo pra você morrer.
- Mas eu, eu!, quero morrer, é diferente.
- E perder todas as possibilidades que a vida e o amor têm pra te deixar mais próxima da felicidade? 
- “Amor é meta da vida, mas não é sinônimo de felicidade”, já diria o Schopenhauer. De que adianta nadar e nadar mais pra morrer na praia?
- Essa praia é tão bonita.
- E foi lá onde você morreu. Não sei porque tô te ouvindo, você tá morto.
- Pois é... Engraçado que você precisou recorrer a uma materialização de uma pessoa morta pra te convencer a mudar, pra te ajudar a fugir dessa tua decisão imbecil.
- Pra tu ver como eras, ainda és, importante pra mim. Cara, você morreu com facada na barriga… Apesar de poético e combinar com você, poxa…
- E eu morri só por estar numa estrada diferente pra buscar a minha felicidade. Pior que ainda tinha muito combustível, mas né, a intolerância criou um bloqueio em forma de homofóbicos e, enfim, você sabe o desfecho dessa tragédia…
- Cara, você não imagina o quanto chorei. Você se foi… Você foi meu segundo pai.
- Sinto-me lisonjeado pela comparação, mas nunca que eu seria metade do que ele foi.
- Vou visitar vocês dois.
- Não! Fique aqui na vida!
- No cemitério, besta.
- Ah... Só não vou poder te servir café.
- Parei com cafeína.
- Chá de maçã então.
- Vou ligar pra Lúcia e chamá-la pra ir comigo.

Saiu da sacada e só voltou a ficar lá pra ver os fogos de réveillon em vários anos novos que se passaram naquele lugar. Muitos anos se passaram para essa mulher, que, quando sentia vontade de partir, corria pro colo intangível do amigo pra se isolar das dores que afligiam seus pensamentos. O ausente lhe servia de sobrevida para expelir de sua alma quaisquer problemas que gerassem nela o impulso de não querer mais dormir ao lado daquela moça que respirava tão intensamente ao dormir.


2014/07/01

carta sem assinatura ou sobre levar seu livro embora

“Quando Alice voltar, não estarei mais aqui esperando, mas diz a ela que... Não, não precisa, minha ausência dirá melhor que qualquer pessoa. Ao falar sobre espera, ela vai entender. Não posso ficar aqui esperando o que não existe mais. Poderá voltar a existir talvez, não posso me viciar na crença dessa possibilidade, mas não depende de mim, nem mesmo de Alice, depende de nós. Não como aquela canção esperançosa da televisão. Depende de nós e do como estivermos caso nos reencontremos. Estar no sentido de querer. Querer apagar o que se passou entre nós e simplesmente não perguntar os porquês de ir pra depois voltar.
Não sei dizer se quem partiu primeiro foi Alice ou eu, mas sei que não nos encontramos mais apesar de dividirmos a mesma cama, o mesmo apartamento, o mesmo primeiro andar que fedia pastel frito da lanchonete sob o mesmo prédio sem porteiro, a mesma cidade fria em tantos sentidos e algumas das mesmas angústias. Diz pra Alice que meu coração é dela, mas não esquece de avisar que ela o roubou e me obrigou a correr atrás de outro.
Pergunta pra Alice qual o novo nome dela e porquê ela saiu tão cedo num domingo chuvoso sem se despedir. Esquece. Fala que não faço questão de ouvir as justificativas de sua partida. Não quero saber se o clichê 'o problema não é você, sou eu' aconteceu ou se realmente fiz ou deixei de fazer algo que a motivou a partir. Se fiz ou não, de quê adianta? Alice foi em-péssima-hora.
Eu sabia desde sempre que alguém partiria hora ou outra, mas não queria que fosse agora. Não estava preparado. Diz pra Alice que ela me fará falta. Diz também que ela tinha razão: a gente viveu algo já vivido em páginas e filmes.
Aliás, Alice, vê se tranca direito a janela antes de sair pra não molhar o colchão, porque sei que você vai voltar em breve pra pegar as coisas que esqueceu (incluindo aquele livro de contos do Sartre que você carrega como se fosse tua bíblia - deixei onde estava, na segunda gaveta da minha escrivaninha, do lado do meu bloco de notas). Aliás, sei que, se voltar na próxima hora e não me encontrar do jeito que me deixou, desarmado e apagado, você vai querer ficar por aqui. Não seja tola de abandonar esse lugar. Pensando bem, esse lugar nunca foi inteiramente meu, foi nosso, mais teu do que meu. Sem a minha presença, resta nada de mim aqui. Cuida bem do Fiodor e não esquece que ele não gosta de ração com frango. Pede pra Alice arranjar uma parceira pra essa gato infeliz, antes que ele também resolva abandonar esse apartamento.
Não adianta, por mais que eu não deseje, sempre carregarei comigo as marcas de tudo que vivo. Alice, acho que já te vi em algum lugar antes. Você não era aquela moça que encarava estátuas? Você sabe que não foste a única Alice em minha vida, mas, de todas as Alices, você foi a que me curou.
Era pra ter terminado com uma frase de efeito pra você carregar no peito, mas, você sabe, Alice, que não sei ser memorável. Um tanto clichê esse negócio de carta de despedida. Poderia ter simplesmente partido. Tentei pensar num desfecho trágico pra nossa história que pudesse quebrar teu coração, mas, não consegui fugir de mim mesmo e sempre tive medo de te magoar, de te ver chorar, assim como não conseguirei fugir de Alice e toda mesmice que ocorre quando alguém vai embora em qualquer relacionamento. Achei melhor não imitar nenhum daqueles livros cheios de tragédia do século XVIII que você tanto gosta. Aliás, estou levando ‘O lírio do vale’ comigo, espero que você me perdoe.”