2015/03/30

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Enfim voltei, um tanto atrasado, mas cheguei, anos depois da partida. Não desejo parabéns pela atitude, quero somente me sentar e conversar - mesmo que sozinho. Estou aqui, fuma um cigarro comigo pelo menos. Calma, sei que é contra isso, mas esse desgosto de nada adianta agora. Vim de longe sem esperança de que você quisesse me ver, receber-me aqui, permitir minha entrada, ainda mais pra me ver fumando. Eu sei, te decepcionei, não só com esse vício, não me odeie porém, tenho novas histórias pra te contar que te farão soltar sorrisos orgulhosos. Depois da partida, aliás, comecei a escrever histórias, mas poucas delas sobre você, porque ainda me faltam palavras... Também preciso confessar contos e pensamentos que só me trazem remorso. Muito melhor do que eu, tão humana quanto eu, você sabe que é impossível nunca falhar, nunca errar em escolhas e impulsos. Não te culpo pelos teus atos aparentemente errados e já é tarde para saber das tuas vivências que desconheço, não me interessam. Tarde demais. Não mudará o que sinto por você. Um sentimento puro que sobrevive apenas de sombras, borrões do teu rosto e resquícios quase inaudíveis da tua voz. Não consigo mais ficar aqui, desculpa. Desculpa por tudo. Pensei que todo esse tempo faria cicatrizar a dor da ausência. Enganei-me. Fica com esse resto de cigarro, faz de conta que é uma vela para simbolizar o luto que me marca até hoje. Finge que está tudo bem e que não saí de casa na manhã daquela quinta-feira. Finge que me abraça forte e seca todas minhas lágrimas. Finge comigo, por favor, porque essa realidade sem você dói. Ainda machuca. Tua ausência me levou a tantos lugares distantes daqui, mas continuas presente em memória - e não são poucas nem leves. Onde estou, você está. Não sangro mais para evitar derramar teu sangue, tua única memória ainda tangível.

2015/03/23

Porcelana: Tesoura sem ponta

- Como assim, você vai ter que passar o fim de semana cuidando da tua irmã? - Gritou o outro antes mesmo de a fala do rapaz se encerrar.
- Amor, você sabe que... - Ele não ouviu o resto, porque a porta de madeira recém fechada abafou a voz daquele que amava. Trancou-se no banheiro. Uma pessoa inofensiva fisicamente - até então. Se causava mal a alguém, era com palavras. Até aquele momento de sua vida, não havia sentido vontade de ferir alguém. Feriu, outras vezes, internamente. Machucou-se também. Livrou-se de outras pessoas sem a necessidade de sangramentos reais. Só abalos sísmicos na alma. Mas ali, naquele apartamento onde repousava há tanto tempo, ali, naquele 30 de março, data sem grandes marcos em sua vida até então, ali, o local da morte de seu pacifismo, surgiu a raiva brutal de não saber lidar com a situação de forma simples, como, por exemplo, dizer “adeus”. Começou com “como assim, você vai ter que passar o fim de semana cuidando da tua irmã?” e terminou com “desculpa, meu amor, desculpa”, lágrimas, sangue e sirenes.
Respirou até parar de tremer e voltou ao quarto, onde o rapaz reclinava-se sobre o parapeito da janela enquanto fumava mais um cigarro.
- E tua vó?
- Continua internada.
- Que porra, ela não superou ainda?
- O quê, superou o quê?
- Teu pai!
- Cê sabe que não é por causa disso que ela tá internada.
- Ah, que seja, mas acho que essa menina já tá bem grandinha, aposto que consegue se virar sozinha.
- Claro, três anos e quatro remédios pra tomar todo dia, claro que consegue.
- Não dá pra levar levar ela junto com a gente?
- Primeiro, a reserva é prum quarto pra duas pessoas com cama de casal. Segundo, impossível a gente conseguir um novo em cima da hora. Três, a alergia dela é desgraçada, ataca em qualquer lugar novo.
- Queria só você.
- Não queira só eu, não posso ser sua única ocupação.
- Mas você disse que a gente…
- Sim, eu disse, mas não me venha com esse mimimi, caralho…
- Ui, não precisa surtar…
- Não tô surtando, só tô cansado dessa tua carência excessiva. Nem minha irmã doente escapa, coitada. Se eu tivesse prometido um fim de semana com ela e você tivesse ficado doente, eu daria um jeito pra cuidar de você.
- Então se eu ficar doente agora, cê fica comigo?
- Não brinca. Falando assim, parece que cê tá doente da cabeça.
- Doente por você...
- Para. Preciso buscar minha irmã. E pode deixar que vejo o negócio das passagens e do hotel. Vamos em maio?
- Ah... Ok, depois do dia 15.
- Ok, se cuida. E vem visitar a gente amanhã.
- Vou pensar.
- Fica bem, tá?
Abraçaram-se com calma. No peito do outro, um amargor enraizado no coração que ia se expandindo pro resto do corpo, até que alcançou seus olhos, fazendo cair uma solitária lágrima, com algum teor de raiva, e sua boca, dizendo:
- Cara, eu te amo de um jeito que você nunca vai entender.
O rapaz pegou sua mochila aberta e deixou cair um livro, uma carteira de cigarros, um par de chaves e uma tesoura. O outro cismou com o livro, recolhendo-o do chão: - “O amor acaba”, que porra é essa?
- Acaba mesmo, mas isso é a porra é de um livro que tô lendo.
- Como assim, "acaba mesmo"? Cê tá dizendo que a gente vai acabar?
- Uma hora ou outra...
- Tá vendo essa lágrima no meu rosto? Ela vai secar, mas o que eu sinto por você... Quando vai secar? É um oceano que...
- E quando a Era Glacial chegar de novo? Vai congelar.
- Mas ainda assim vai existir, de qualquer jeito.
- E se faltar ar pra gente respirar?
- Não vai...- Você deveria ler esse livro, pelo menos a crônica principal.
- Qual?
- Essa sobre o amor acabar.
- Mas não acaba!
- Amor, acaba.
- É o que você quer acreditar? Que a nossa história vai ter fim?
- Vai, mas não acredito que seja agora. Para de ser estupidamente otimista ao pensar que amor eterno existe.
- Por favor, para!
- De te amar?
- De ser tão infeliz, de querer azedar nosso amor.
- Como, se a vida se encarrega por conta própria de nos destruir? - Pegou os demais objetos caídos, mas não foi rápido o suficiente para segurar a tesoura, que o outro logo segurou com força, mirando o próprio peito:
- Eu faria isso, sabe, se você fosse embora um dia...
- Não seja babaca!
- Por você... - Apertou a tesoura sem ponta contra seu coração.
- Para! - O rapaz tentou intervir, numa tentativa de envolver em seus braços o outro, que desviou velozmente, e agora mirava a tesoura em direção ao pessimista:
- Me diz que a gente vai ficar junto! Fala antes que eu...

Em meio a tanta arte descarregada em papéis, telas e muros, o outro empunhando a tesoura sem ponta jamais encontraria forma mais eficaz de demonstrar e eternizar sua obra de desespero do que aquelas duas cicatrizes no peito do homem que amou. A marca permaneceria perto do coração, ao contrário do afeto entre os dois, que se desfez tão facilmente quanto as linhas usadas para costurar horas depois os pontos no peito do ferido.

- Chama a ambulância e some da minha vida. - Ordenou o rapaz com sua voz lenta e dolorida.
- Desculpa, meu amor, desculpa! - Disse o outro, encharcado em suas próprias lágrimas e sangue daquele de quem estava estendido em seu colo.

2015/03/04

I Miss Trees

Cheguei a cogitar, confesso, que, no alto de minha sandice, ele fosse uma miragem fruto da minha mente suplicante por suor e prazer, mas minha imaginação jamais seria capaz de me matar a cada novo orgasmo.

Numa comparação superficial com um dos filmes não-inspirados em minhas sagas românticas e sexuais, eu sou Joe, ele é Jerôme e ela é P., a destruidora de sonhos. Diferentemente da outra história, quem entrou no trem já no meio do trajeto fui eu.
Outra semelhança, inveja da pequena Joe: um pai que sabia tudo sobre árvores e dava aulas a cada novo passeio em bosques da cidade. Eu não tinha uma figura paterna afim de Flora nem de qualquer outra coisa. Já eu só queria meu cobertor de retalhos, TV e chocolate. Meu pai viveu em depressão até que enfim concretizou sua maior vontade. Não senti dor quando ele se foi, apenas tive - e ainda tenho - saudades de vê-lo no canto da sala com seus cigarros e cadernos de palavras cruzadas. No primeiro verão sem esposo, minha mãe decidiu tirar licença do trabalho pra ficar com a filha. Hoje percebo que ficara bastante perdida naquela época. Não que meu pai fosse tão presente em nossas vidas quanto deveria ser para se postar como uma bússola para nós, mas sua ausência enquanto um peso morto no apartamento, apenas sorrindo pra gente quando dizíamos ou fazíamos alguma coisa, era essencial para que minha mãe não se perdesse. Depois, ela superou e se perdeu novamente em novo amor. Eles se amavam de uma forma bem específica e isso me influencia até hoje na buscar pelos amores mais peculiares - e possíveis.

Foi aí que o encontrei acidentalmente enquanto procurava por outra pessoa.

Essa porra de sexismo se infiltrando em tudo disfarçadamente pra tornar as coisas, a arte, mais androcêntrica possível, exaltando o homem como o centro positivo da história. Como se em todos os casos de infidelidade matrimonial a culpa fosse da mulher, seja da esposa que não dá amor e sexo suficiente ou da “outra” que se mostrou “fácil” demais com suas curvas sensuais.
Escrevo sobre ele ou qualquer outro cara que me encantou alguma vez, porque não sei escrever sobre mim sem utilizar ódio, depreciação e desprezo em todas as linhas, ao contrário dos litros de carinho e paixão que destilei ao longo da minha vida literária sobre os amores que vivi. Não escrevi sobre romances entre mulheres porque nunca vivi um e me preocupo em transcrever tudo o que corre em minha mente enraizando-me em sinceridade. Queria sentir algo a mais por elas, mas nunca senti. Talvez agora.

Jerôme da minha história - com as devidas adaptações de um roteirista ainda mais sádico - partiu por um motivo diferente, dizendo que não conseguia mais mentir para P. - personagem também traduzida para a minha realidade trágica.
A quebra de nossa rotina doeu, fez sangrar, mas eu sabia que aconteceria, ainda assim a consciência da tragédia não reduziu o impacto. Bati de frente, sem cinto, contra o muro da solidão. Não que ele fosse a pessoa mais presente, mas as poucas horas que passávamos juntos já preenchia todos os meus vazios.

Entreguei-lhe um bilhete com um trecho de I’m wrong -

“tell me you're lonely
tell me this song is not about you only
and i'm a lie”

- mas ele respondeu que não entendeu. Ele nunca me entendia. Só entendia que eu o queria. Não entende até hoje que eu ignorava conscientemente a existência de um matrimônio fracassado em sua vida e eu era um clichê. A outra. Ele não sabia o principal: nós duas nos conhecíamos. Apesar de uma amizade virtual iniciada por um desleixo meu, num passeio por perfis de pessoas desconhecidas, ao solicitar amizade sem querer. Antes que eu cancelasse o pedido, Mad já tinha aceito e enviado uma mensagem. Começamos a conversar quase diariamente e percebemos vários gostos em comum. Num show de uma das bandas que ambas gostávamos, combinamos de nos vermos lá, mas ela não foi. Ele foi. De tanto conversarmos, ela já tinha falado dele e o reconheci. Não lembro se estava bêbada ou alegre naturalmente, mas puxei assunto com o desconhecido, sem citar a esposa, e fomos nos entendendo, até que tudo explodiu. Começamos como uma relação estritamente sexual e... permanecemos assim até o fim. Tirando a parte em que eu, sempre eu, me perdi em confusão de sentimentos e achei que deveria inserir amor na relação, aquele tipo de amor que sobrevive longe do sexo.

Contradigo-me, eu sei. Ao mesmo tempo que queria tentar imergir em um vida com cats, dogs and kids e o que mais houver no mundo do casamento, não conseguiria fugir do furacão da nossa existência, todas as noites suadas e as partidas repentinas.

Destrinchei minha alma para escrever todas as canções sobre dores e agora alguém lê isto, mais um de meus discursos cheios de frases e referências que ele nunca pegou nem entendeu. Algo de bom restou de nossa história: um coração partido e muita inspiração para músicas que lançarei em breve. Mandarei pra ele um disco de presente - ou um link para download -, mas que ele não venha pedir sua parte dos lucros, porque pretendo gastá-la com cerveja e livros.

Sinto falta do que nunca tive. Sinto falta de uma árvore para deitar sob sua sombra e ouvir histórias do meu pai.
A posse não existe em forma tangível, não consigo convencer algo ou alguém a me pertencer (na forma mais poética e menos obsessiva da palavra “posse”). O que de fato eu tenho é minha confusão e incapacidade para lidar com relacionamentos. Não sei falar, sei sentir e parece que isso é insuficiente para muita gente. O que faltou no caso em que protagonizei como amante foi diálogo, aliás em qualquer relacionamento meu. Acho que não só nos meus, talvez seja um clichê muito maior do que eu imagino. Falando em repetições, arte imita vida, vida imita arte, vida imita vida, não sei se desempenhei o papel de “a outra” com primazia porque em outras histórias, elas, ou eles, por que não?, abstinham-se de afeto, amor ou como você queira chamar essa desgraça que queima o peito e me deixa viva ao mesmo tempo que mata.

Eu sou a amante. Sempre serei. Amar demais é minha sina. Sentir demais é minha vida.