2016/04/28

Personagens

Querida personagem,

Toda e qualquer característica física sua será desconsiderada e ignorada nos seguintes parágrafos - de mais uma carta que você não quer ler. Os longos cabelos castanhos, que, repentinamente, ficaram acima da nuca, os olhos tão instáveis quanto o humor, ora verdes, ora castanhos, a pinta no pescoço que formava uma constelação com outras espalhadas pelo corpo, os três dentes frontais-inferiores levemente inclinados para frente devido a insistência em usar chupeta até os seis anos, a cicatriz na mão, resultado de um acidente envolvendo piso molhado e copo de vidro, as olheiras cada vez mais profundas e simultaneamente entristecedoras e encantadoras (pois, de um modo muito muito subjetivo, mostram uma fração da sua profundidade, fração magnética, que me atrai - ou atraía, não quero deixar rastros de um possível resquício de desejo, apesar de sempre deixar aonde quer que eu vá ou o que quer que seja que escreva) - para o núcleo de sua existência [passando pelas diversas camadas de seu planeta numa velocidade maior que aquela necessária para me destruir quando você disse que (você sabe, não tenho forças para repetir, mesmo em prosa, suas palavras naquela tarde)… voltando a carta:] cuja temperatura pode me dilacerar antes mesmo de encostar nele. Enfim, tudo o que poderia causar algum tipo de encanto e/ou admiração deve ser repelido tanto deste texto quanto de minha mente, pois os gestos e gostos tiveram maior relevância, mas, seja a essência, aparência ou qualquer outra caraterística, não importa mais. Não deveria importar, mas contradição corre solta.
Hoje, apenas restam o rancor e a vontade de encontrar uma falha na linha espaço-tempo para retornar à estação de trem e tomar outra decisão que não escolher ficar com meu pai ou partir com minha mãe… Espera, não, essa é outra história, não a que está sendo relembrada a fim de causar em mim a mesma repulsa que há em mim (ou deveria existir). Não que de fato haja alguma gota de repulsa em minha língua, garganta ou qualquer lasca de minha carne, o contrário do que essa carta tenta dizer. Tentar, afinal, nunca condiz com a intenção em si. Não sei mais do que estou falando, certamente prolongo as palavras para de alguma forma te fazer gastar mais tempo comigo através minhas palavras. Percebe como podemos manipular o tempo? O tempo alheio, de mudar toda a trajetória espaço-temporal de uma pessoa ao simplesmente gastar seu tempo com algo que você poderia evitar. É óbvio que já percebeu que me perdi - como sempre desde sempre, mas de um jeito diferente de como me perdia ao seu lado - de minhas intenções no primeiro parágrafo. Escrever impulsivamente em fluxo de consciência causa o entendimento de como as vontades fluem, alternam-se, desaparecem e ressurgem em questão de poucos minutos. Resumindo o assunto que já se perdeu, gostaria de ter feito outra coisa, não há certeza em relação ao dia certo para tal encruzilhada surgir a minha frente. Insistir ou desistir, melhor dizendo, seguir para longe de quem te despreza ou te mantém como um plano B, uma caixa de primeiros socorros. “Em caso de solidão, quebre o vidro”.
Saber que não seria o par romântico da protagonista, mas um personagem também importante de alguma maneira tanto para ela quanto para o resto da história. Não sei mais se apenas escrevo ou se sou personagem (não que seja inviável ser ambos) me fez separar todas as páginas desse romance para tentar reorganizá-lo de algum jeito que ficasse menos bagunçado, mas são tantas folhas que talvez precise de ajuda para transformá-lo em algo. Alguma coisa que me faça parar de escrever. E começar a viver. As tentativas de “começar” foram tantas em tantas novelas que se tornou menos doloroso escrever e escrever.

Com todo amor que pode haver na desgraça,
Personagem.


Notas (sobras) que não se encaixaram em linha alguma desta carta

Todas minhas roupas, toalhas e roupas de cama estão sujas de rancor, não conseguia limpar as manchas de ódio, talvez porque a máquina de lavar e a água também estejam sujas, contaminadas com um ódio infundado.

Não te amo, o amor que conservo imerge na personagem que co-escrevemos através de minhas idealizações e suas poesias.

2016/04/24

Quando O Diabo surge

I

Selado o pacto, estava decidido, não mais se envolveria romanticamente com alguém. Ninguém. Julgava não precisar nem querer mais desse item (amor) tão estimado por tanta gente. Queria aceitar sua solidão e conviver com ela distantes da ilusão de conforto quando se “tem alguém”, estava cansado. Foco no trabalho.
Concentrado, manuseava livros, dinheiro e sacolas, o procedimento padrão de todos os dias. Ainda assim, sua visão periférica se ocupava com movimentos e cores ao redor. Em dado momento, percebeu, com canto de olho, uma figura marrom surgindo e logo desaparecendo. Foi um instante rápido, mas suficientemente lento para atrair a atenção e o olhar daquele que guardava dinheiro de troco em seu caixa. O vulto retornou e sumiu mais uma vez, porém Nicolai (digamos que este seja seu nome) conseguiu flagrar o vulto, não era um fantasma, era uma mulher, que poderia se tornar uma fantasma na vida de Nicolai, ninguém sabia naquele momento se isso aconteceria, mas essa história não se foca no fim, apenas no início.
Marya (seu nome fictício), bastante influenciada por seus pais, que, naquele momento estavam no café da livraria, apegara-se à Literatura Russa, principalmente a um conto de Tolstói, que ela tanto recomendava para entes próximos, mas não tinha coragem de emprestar a cópia que tinha em um quase-altar em seu apartamento, então queria encontrar uma versão contendo apenas ele, para que pudesse “alugar” a edição que tinha, uma que incluía mais um conto. Lembrava de, num passado precisamente incerto, de ter visto o tal livro desejado, custando pouquíssimo para melhorar a situação, então se deslocou da seção de literatura estrangeira à de livros de bolso, ao lado do caixa, e começou a procurar. Abaixou-se para olhar nas prateleiras inferiores, enroscou-se em seu grande casaco marrom e lembrou de quase tê-lo deixado no carro por estar calor demais na rua, mas ali, na livraria, fazia frio, tal peça de roupa era útil. Sem encontrar o que queria nas partes baixas da grande estante de livros, levantou-se e voltou a olhar nas prateleiras de cima.
Pouco mais de um minuto depois de perceber a mulher procurando algo, por não haver mais pessoas na fila do caixa, Nicolai foi ao seu encontro e perguntou se precisava de ajuda.
Encarou o rapaz, que surgiu do nada, e disse "oi" e o nome do livro.
Ele começou a procurar com ela.
Quando voltou os olhos à prateleira, sem influência nem auxílio do atendente, Marya mirou o olhar diretamente no desejado livro, mas não era exatamente a edição que queria:
- Vocês teriam uma edição só com este conto? - Apontando para um dos títulos na capa. - É que eu tenho uma versão com esse e um outro, mas quero, se existir, uma só com esse. Lembro de uma que custava cinco reais.
- Só um momento, por gentileza, que vou procurar no sistema. - Disse, Nicolai, andando até um computador de consulta. Digitou as seis letras e obteve alguns resultados, contudo… - Não temos mais em loja, só por encomenda.
- Então quero encomendar.
Seguiram os procedimentos para encomenda, que não importam para este conto, mas, o que realmente interessa aqui, é que: em algum momento desta troca de informações, “é o mesmo nome da minha mãe”, telefone, dados de cadastro etc, em algum instante, como um raio, quando ele pareceu ou quando ela encontrou o livro, ninguém sabe afirmar o segundo preciso do choque, Nicolai olhou para Marya e se perdeu, desfez o pacto que havia selado consigo mesmo, queria amor, precisava se relacionar com Marya, afogou-se, foi absorvido pelos olhos dela, que eram de uma cor entre verde e castanho, ou os dois, ou nada, eram profundos. Talvez Marya, também perdida, submersa, quisesse retornar ali diariamente para procurar livros de Tolstói e, se possível, de preferência, encontrar o amor nos braços de Nicolai, cujo sorriso, sentiu ela, tão magnetizante, dizia tanto, mas ela esperava que dissesse algo que ela não conseguia elaborar em sua mente para falar, alguma coisa que a fizesse ficar ou voltar amanhã.
Marya não voltaria no dia seguinte, mas quando seu livro encomendado chegasse. Nicolai esperava que isso ocorresse quando estivesse lá, para recepcionar e atender Marya, e dizer o que não conseguiu nesse capítulo que termina, quem sabe, neste ponto.

2016/04/12

Cansado de inventar um título que sintetize tudo o que quero dizer sobre o que senti no momento em que me inspirei a escrever tal texto

De todas as faltas que sinto, a que mais sinto falta é a falta de incômodo por ter espaços vazios a serem preenchidos em minha mente. Agora, sou um arranha-céus com vários cômodos vagos ainda com reminiscências falhas de pinturas e buracos na parede de antigos inquilinos. Únicos sons perceptíveis são os dos meus pés pisoteando o chão, correndo atrás de algum fantasma que não sei se habita minha morada, e os remorsos e contradições correndo e dançando pelos corredores para me assombrar.
Implodir isso tudo seria prejudicial demais, não para mim, obviamente, já que estaria desmoronado, aos pedaços no chão, mas, sim, para quem está perto, tanto no prédio vizinho quanto correndo para longe, devido não apenas a fumaça e o barulho tóxicos da implosão, como também pela chuva de entulhos deslizando pelo céu dessa cidade infeliz e pousando aleatoriamente na cabeça de qualquer pessoa - culpada  por qualquer causa do fechamento da construção ou não.
Reformar o prédio custaria tempo demais: trocar todas bases de sustentação, os ferros infestados não só de ferrugem mas também de melancolia e auto-penitência; liberar os (ainda que poucos) espaços ocupados para fazer uma limpeza completa e não deixar um pedaço sequer de passado, não sei por onde começar, o melhor talvez seja fugir. Fugir de mim mesmo.
Fugindo do prédio, o impulso tomado para desabar em palavras ora dura horas ora dura dez minutos e me força a continuar a escrever mesmo sem vontade, digo, sem certeza de onde parti ou aonde quero chegar. O que começa como um pedido de desculpas, passa por algo como “sinto sua falta” e chega a nada, não apenas em texto chego a nada, e em algum momento começo a me questionar: “Por que razão/emoção perdida no meio do caminho, talvez no primeiro parágrafo, comecei a escrever?” Mais um cansado rascunho sem respostas, seja sobre porquê escrever, porquê me arrepender de algo que fiz ou não, porquê parti, porquê deixei partir, porque acabou.

2016/04/05

Futuro passado/Passado presente ou Rascunho perdido em algum lugar entre Santiago e Macondo depois que jogamos nosso bonsai no lixo

Quando estou contigo, simplifico o entendimento sobre teus atos silenciosos ou pedidos inesperados, como quando, naquele quarto de hotel em Yacuíba, quando vivemos entre Bolívia e Argentina gravando aquele filme sobre um amor de fronteira, que terminava - tanto o filme quanto o amor - em um terremoto, você perguntou se podia deitar-se comigo, “por poucas horas, você disse, mas acabou passando a noite toda a meu lado, respirando em um tom quase inaudível, fazendo com que eu me aproximasse do teu cabelo nunca pintado para ver se ainda respirava; ou aquela vez em que estávamos em um ônibus e você repousou sua cabeça sobre meu ombro, enquanto lhe falava sobre meu novo drama familiar, que ainda não havia nascido, mas já tirava-me o sono. Nessas ocasiões e em tantas outras, aprendia a não pensar demais no que você pretendia, pois, pelo seu excesso de silêncio, eu poderia interpretar em suas mensagens um sinal escondido nelas, se é que havia algum, e distorcer toda a sua verdade. O fluxo do tempo ventou na árvore de sentimentos que eu cuidava e só as folhas mais fortes resistiram, só os sentimentos mais sinceros sobreviveram. Depois de tanto tempo, como você não encontro ninguém, mas, desculpe-me, ainda é difícil não romantizar nossos caminhos, enfim, o quero dizer é que me permiti amadurecer e deixar espatifar no chão o masoquismo consciente que é sofrer por algo evitável. Esqueci o drama juvenil que li por tantos anos em algum lugar, talvez no vagão do metrô na nossa primeira semana morando longe da cidade que, para mim, hoje apenas conserva os anos de romances frustrados e traumas familiares.
É tudo muito incompreensível demais se visto de fora, porque as esferas afeto e amor romântico são satélites de um mesmo planeta e a anos-luz de distância parece que são a mesma coisa. O amor (licença para usar essa palavra que não seja em um roteiro) em mim por tudo que há em você é maior que qualquer montanha pela qual já sobrevoamos ou caminhamos, não há como medir, mas não é - talvez nunca tenha sido de fato (se foi, ilusão) - do tipo que faz correr na chuva de encontro a um beijo ou, sei lá, qualquer coisa tida como prova de amor romântico, porque o nosso romance acabou, mesmo que mal tenha sido um rascunho bagunçado, mas sobrevive o que mais importa: nós.
Parece confuso, e é, porque não sei escrever - imprimir num papel o fluxo de palavras que corre em minha mente enquanto você dorme pesadamente na cama de um hotel de nossa cidade natal. Estranho, não é?, sentir-se turista onde vivemos por vinte e alguns anos. Ficando nesse hotel da Inácio Lustosa, definitivamente, passamos a ser turistas de verdade nesse lugar.

[Fim da primeira parte que não é o primeiro capítulo mas um fragmento de um dia anos - muitos anos - após o início cronológico desta história em que quem a narra teima em assumir que não é um romance, que talvez tenha sido, porém é, sempre foi e continuará sendo até que não restem memórias ou registros materiais de tudo]

***

Acostumei-me a sua quietude, agarrei-me a seus gestos de carinho e detestei-me por ter desistido de protagonizar um romance real contigo quando ainda era possível, passei a contentar-me apenas com a amizade, a cumplicidade e a carreira profissional juntos, neste quase mutualismo que é a nossa vida desde o momento que você aceitou dirigir aquela minha história sobre amantes/fumantes.
Há anos não conversamos sobre nós - diretamente - , apenas sobre tudo, não expomos os problemas possíveis de nossa relação, agora ou de anos atrás, únicos conflitos que exibimos são os vividos por nossos personagens, que muitas vezes coincidem com os que vivemos hoje ou antes, mas não conversamos nem sobre tais coincidências.
Meus monólogos nunca são claros, precisos, persuasivos, compreensíveis, concisos, transparentes, iluminados, descomplicados… Perco-me no meio do caminho e não consigo retornar a ideia inicial que me levou a falar ou escrever. Você sabe disso, entende tanto sobre mim que me assusta conhecer alguém com tantas armas contra mim, mas que nunca as usa.

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