Meses, anos, dias depois, ainda se arrastava presa escamas passadas. Não queria, não conseguia abandoná-las. Talvez por crer que aqueles pedaços carregavam restos importantes e impossíveis de serem desprezados do que um dia foi. Recusava-se a aceitar que aqueles resquícios cheios de cicatrizes de sua existência não mais lhe faziam bem.
Contudo, não tinha onipotência sobre si para controlar seu organismo, escamas caíam pelo chão. Matéria orgânica repousava no chão pronta para ser devorada. Não demorou a surgirem baratas pela casa cheia de garrafas vazias, manuscritos vomitados e escamas velhas - há registros de algumas com quase dez anos, ainda jogadas pelo interior da residência.
Insetos encontraram um agradável lar em meio as ruínas de um ser, um lugar com comida, aconchego e calor para os invernos pesados.
Desejava ser o "lagarto que tinha o costume de jantar suas mulheres", mentira, queria ser o próprio Galeano, porém a cobra era ela mesma. Sabia calcular a distância entre desejo e realidade, e sabia o quão difícil seria abandonar o campo das ideias e migrar para a vida real. O platonismo confortava o dócil réptil ao mesmo tempo que o corroía por dentro, as lembranças percorriam seu corpo espalhando caos e flagelação em cada célula ainda viva. O ser rastejante deitava em terreno áspero há meses, anos, dias, sem conseguir descansar. Não dormia, perambulava pela casa revirando gavetas, perambulava pelas memórias, perambulava sobre pedaços de si mesma. Enquanto mais um litro de uísque dançava em seu estômago, queimando tudo, declamava para si: “I Wander… I Wander… I Wander…”, o poema insistia em correr pela sala sem receios de trombar com a cobra fragilizada pelo álcool e derrubá-la. Ninguém a levantaria naquela noite solitária, nem o príncipe encantado, nem a musa inspiradora, nem as baratas, nem Galeano, nem a Loba de Diane di Prima, muito menos as memórias.
No chão, tentando alcançar na escrivaninha o copo de alumínio preenchido com quatro doses de destilado, pensava se havia se transformado na versão reptiliana de Gregor Samsa. Se as baratas que escalavam suas costas se fundissem a cobra, talvez sim, porém sua repugnância (interna) repelia qualquer ser de possível contato ou interesse.
Queria se desfazer das memórias transformadas em escamas. Queria se distanciar das baratas, únicas companheiras que conseguiu encontrar nos últimos meses, anos, dias. Mas sabia que não era capaz de fugir das escamas, dos insetos ou das memórias.