2015/04/27

Cobra acumuladora ou Loba não come baratas

Meses, anos, dias depois, ainda se arrastava presa escamas passadas. Não queria, não conseguia abandoná-las. Talvez por crer que aqueles pedaços carregavam restos importantes e impossíveis de serem desprezados do que um dia foi. Recusava-se a aceitar que aqueles resquícios cheios de cicatrizes de sua existência não mais lhe faziam bem.
Contudo, não tinha onipotência sobre si para controlar seu organismo, escamas caíam pelo chão. Matéria orgânica repousava no chão pronta para ser devorada. Não demorou a surgirem baratas pela casa cheia de garrafas vazias, manuscritos vomitados e escamas velhas - há registros de algumas com quase dez anos, ainda jogadas pelo interior da residência.
Insetos encontraram um agradável lar em meio as ruínas de um ser, um lugar com comida, aconchego e calor para os invernos pesados.
Desejava ser o "lagarto que tinha o costume de jantar suas mulheres", mentira, queria ser o próprio Galeano, porém a cobra era ela mesma. Sabia calcular a distância entre desejo e realidade, e sabia o quão difícil seria abandonar o campo das ideias e migrar para a vida real. O platonismo confortava o dócil réptil ao mesmo tempo que o corroía por dentro, as lembranças percorriam seu corpo espalhando caos e flagelação em cada célula ainda viva. O ser rastejante deitava em terreno áspero há meses, anos, dias, sem conseguir descansar. Não dormia, perambulava pela casa revirando gavetas, perambulava pelas memórias, perambulava sobre pedaços de si mesma. Enquanto mais um litro de uísque dançava em seu estômago, queimando tudo, declamava para si: “I Wander… I Wander… I Wander…”, o poema insistia em correr pela sala sem receios de trombar com a cobra fragilizada pelo álcool e derrubá-la. Ninguém a levantaria naquela noite solitária, nem o príncipe encantado, nem a musa inspiradora, nem as baratas, nem Galeano, nem a Loba de Diane di Prima, muito menos as memórias.
No chão, tentando alcançar na escrivaninha o copo de alumínio preenchido com quatro doses de destilado, pensava se havia se transformado na versão reptiliana de Gregor Samsa. Se as baratas que escalavam suas costas se fundissem a cobra, talvez sim, porém sua repugnância (interna) repelia qualquer ser de possível contato ou interesse.
Queria se desfazer das memórias transformadas em escamas. Queria se distanciar das baratas, únicas companheiras que conseguiu encontrar nos últimos meses, anos, dias. Mas sabia que não era capaz de fugir das escamas, dos insetos ou das memórias.

2015/04/18

Lonely People 10/11/12

***



Ele, que se perdeu em outros colos sem vontade de ficar neles por muito tempo, precisava do ataque de palavras da turista. Ela também se perdeu em outros cantos, sem permanecer neles, de uma maneira mais superficial, sem deixar de ser imersiva a sua própria maneira. Ambos se perdiam, iam e vinham, mas, nos últimos tempos, estavam presos um ao outro, (in)felizmente [como você preferir julgar], por uma corda invisível, intangível, que não machucava. [Atente-se ao tempo verbal].
Depois da visita dela, ele não quis mais saber de nenhuma moça de sua nova capital, nem mesmo da morena. Aprendeu sozinho a canalizar seus impulsos hedonistas em textos que mais pareciam uma continuação não-autorizada de Opus Pistorum, como se o protagonista tivesse embarcado da França para o Brasil. Quando teve uns dias de folga depois de cobrir as férias de uma colega, realizou uma visita surpresa antes do casamento a sua terra natal e mostrou os rascunhos para a mais nova psicóloga do pedaço, que analisou os contos como balzaquianos demais para pornografia.
- Quê? - Indignou-se o rapaz.
- Cara, quem é que descreve o corpo de uma mulher desse jeito tão apurado hoje em dia? - Fazia uma crítica completamente ironizada. - Cuidado que o Miller e o véio Buk vão puxar teu pé a noite. Faltaram uns palavrões aí no meio também.
- Nem todo homem fica soltando sacanagens verbais pra toda mulher. - Exaltando a voz, disse ao desviar o olhar.
- Esqueci de levantar a placa luminosa de “ironia”, foi mal… - Tirou a cara de riso e o encarou seriamente. - Cê sabe que gosto desse teu jeitinho inocente, sem putaria.
- Olha a boca, menina.
- Não dá, fica muito embaixo dos olhos, só se for no espelho, tem algum aí? - Extravasava nela euforia pelo reencontro quatro meses depois daquela noite em que seus corpos se despiram e se despediram do quarto 35, sabendo que estava tudo bem entre eles.
Era a primeira vez que ele pisava na casa dela, nem mesmo quando ainda moravam na mesma cidade entrara lá. Da rodoviária diretamente para o alto da C. Não fez questão de ir à casa dos pais, onde viveu por vinte e três anos. Um ano sem vê-los e nem um pingo sequer de saudade.
Foram três dias acompanhados de uma maratona incansável de desventuras em Litchfield e um afeto entre Eva e Jean cada vez mais crescente. Talvez ainda houvesse um resquício da timidez que os prendia ao passado, mas tal fraqueza se desfazia a cada novo minuto, a cada novo afago no cabelo, a cada novo gemido, a cada nova madrugada em claro, convertendo-se no que ambos queriam negar: Amor. Não que não quisessem mergulhar, mas o pessimismo os impedia de mergulhos profundos no mar que talvez tivesse potencial enérgico para abastecer seus corações por muito mais tempo do que acreditavam. Fechavam-se para falar sobre o que viviam juntos e não havia gigante capaz de destruir a muralha de medo. Só o tempo.
Na manhã de quinta-feira, o último dia do jornalista na cidade, a psicóloga recebeu o convite para acompanhá-lo em seu retorno à Curitiba naquela tarde. Para ele, ela ainda estava desempregada, desocupada, em busca de novas oportunidades.
- Mas você não tem mais uns dias de folga? - Disse ela, atingida por uma vontade de ficar com ele por mais tempo, enquanto a verdade lhe coçava a garganta.
- Tenho, mas vou resolver umas paradas do apartamento, o contrato termina mês que vem e não sei se a proprietária vai querer renovar.
- Que merda… Desculpa, mas eu não posso ir. Estava guardando a surpresa pra depois.
- Sem problemas, mês que vem tem o casamento de qualquer jeito... Espera… Surpresa? Meu Deus, cê tá gravida…
- Calma, não, credo… É que eu consegui um trabalho.
No banheiro, ele escovava seus dentes e cuspiu pasta no espelho ao ouvir a notícia.
- Sério? - Disse, com a boca ainda cheia de pasta de dente.
- Numa clínica bem interessante, só assistem crianças carentes.
Eva ainda estava deitada em sua cama, não queria sair dali, ainda mais ao saber que seriam suas últimas horas com Jean. Depois, só no casamento.
- Tudo a ver com tua monografia… - Secou o rosto e retornou para cama, lugar onde agora Eva conseguia repousar sem receio de ser apenas mais uma mulher a se deitar ali. Jean lhe deu um abraço de parabéns e ficaram deitados por mais uma hora, trocando afagos.
Ela preferiu não ir até a R. T. e ele nem fazia questão. Não reduziria a saudade, muito menos a ansiedade pelo próximo encontro. Estavam cada vez mais apaixonados, mas ainda incapazes de assumir.