2017/06/29

(A linha tênue entre) o fim e os rascunhos

[Aquela epígrafe que só fará sentido para uma pessoa]


No momento em que abri os olhos, vi que ela me encarava apática, triste (com o mesmo olhar de quando me disse que gostava de mim, muito, mas acreditava na impossibilidade de ficarmos juntos naquela ocasião, muralha que desabou tempo depois, ressalto imediatamente não devo me ater novamente a definição qualquer de “tempo” porque, como Hans Castorp na montanha, não sei há quanto tempo estou aqui, aqui na situação de aparente persistência neste livro, ainda é o primeiro capítulo ou o último?). Quando abri os olhos, mesmo sonolento, imediatamente a reconheci, percebi em seu rosto a importância de nossa história à parte, sabia que não era um sonhador, vejo-a me observando e nossos olhares de divergiram quando seu amigo (que eu conhecia e, aliás, gostaria que fôssemos amigos, mas o timing não permitiu) disse meu nome, acenando, e o susto, tanto pelo chamado quanto pelo reencontro inesperado, me fez discretamente cerrar os olhos e fingir sono naquele ônibus onde não imaginava encontrá-la, afinal ela foi para lá e eu permaneço aqui (neste caso, geograficamente). Devia haver alguma atração artística que a trouxera para cá, ou um aniversário, não devia me importar com o quê, minha rotina não passava de work, work, work, e, apesar de minha formação acadêmica, não lia notícias, sabia das coisas pelo que comentavam no trabalho ou ouvia nos meios de transporte, se estivesse atualizado, saberia o que a trazia de volta. O que ouvi naquele instante de cansaço foi meu nome emitido pelo simpático comparsa da mulher com quem vivi (insisto em me convencer que nosso tempo verbal é passado) o romance mais frustrante para o público, pois se limitava ao platônico, intangível, na maioria dos capítulos, ninguém entendia, espectadores não aceitavam que aquilo era algo tão relevante para seus protagonistas, mas era - de certa forma. Seu amigo me chamou apenas uma vez, cerrei meus olhos tão rapidamente quanto os abri, me tornei invisível, esperei. Adormeci, fato que não se repetia desde minha infância, no constante trajeto entre Cabral e Cachoeira, porém, desta vez, despertei em um ponto do Centenário, sem saber quantas vezes fiz o mesmo percurso adormecido naquele veículo, o importante era que ela não estava mais lá, no ônibus, no desejo. 

Para uma história que se tornou tangível em um show estrangeiro, o último espetáculo à dois (desconsiderando a multidão inebriada ao redor) foi num bar falido com uma banda desconhecida local em que passamos o resto da madrugada abraçados, motivados tanto pelo frio quanto pela saudade gritando que deveríamos agora, enfim, com certeza, ficar juntos. Exatamente uma semana depois disso, me perdi e nego em compartilhar com ela a culpa, nem mesmo cito o episódio que motivou minha perdição, mais uma. Desde as primeiras páginas, me perdi constantemente, tentava voltar, reler o que havia sido escrito, retomar o rascunho com devida coerência, mas no último ano, com certo amadurecimento, concentrei-me para manter o foco, mas mesmo assim o álcool libertou minha persona mais desprezível, gostaria de também ignorá-la, mas restam consequências com as quais preciso lidar, sóbrio ou não, independentemente se quem fez o que fez foi eu ou eu. 

Em um canto sombrio deste mesmo quarto, há uma pilha de coisas que nunca te disse e os demais DVDs que jamais assistimos juntos, porque era um passatempo vê-los no silêncio de nossos solitários refúgios, ansiando por companhia, mas permanecendo nisso: ansiar. O querer sempre foi maior do que o ser/estar. “I love you longing for me”, como dito naquele filme que não vimos juntos, mas era como se ela estivesse ao meu lado ou fôssemos protagonistas em cena.

Nas poucas noites em que meu corpo se desintegrou com a colisão subatômica e se fundiu ao seu, julguei não mais ser viável ter um corpo individual, só meu, atrelado apenas a minha mente, porque, em algum momento, senti nossa unidade fluir sólida, firme como a mármore de construções que visitamos juntos. A ilusão de que dois pode ser um, desprezando a realidade física de que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço, estraçalhou-se no espaço desfeito. Minha fé em nós era maior do que a ciência, achei que a gente era uma grandeza maior, contudo, em decorrência de tanto, sei que a única força a fluir ininterruptamente é o tempo; nós não, éramos uma força hipotética, que sobreviveu somente em teorias, no papel.

Escrever sobre o passado, que seja descrever o que não há entre nós (ou o que há, o nada), não representa apego ao desejo, afinal não existe mais, só menos. A personagem habita em meus textos mesmo que o desejo não habite meus dias. Na névoa das lembranças, o desejo pode se confundir com a nostalgia dos bons momentos e fazer crer que ainda deveria existir contato, carinho e o resto, não o fim. Então prefiro a distância para não me perder novamente no que éramos, se é que existia algo além de um sonho nublado, evitar o querer é o caminho pelo qual optei.

Esta história é como aquele disco que eu tinha, que ela nunca ouviu na minha casa, mas estava no mesmo armário da mesma sala em que nos desintegramos em uma madrugada de novembro (poderia dizer que não me lembro da data, mas "I remember it well"), o vinil sempre se repetia em um trecho, “Penny LanePenny LanePenny Lane…”, até que eu largasse a louça ensaboada na pia, porque costumava ouvir este álbum fazendo algo na cozinha, e corresse para arrumar a agulha, por mais que gostasse da música, não dava pra deixar um disco riscado se repetir à exaustão. Abandonei discos, gostos e pensamentos, só não abandonei a escrita porque aqui permaneço vivo, mesmo que ela não leia, ao contrário do nosso romance, que não só leu como escreveu e também descartou.

Muito cinismo, muitos parênteses e nenhuma conclusão decente.

2017/04/27

A longa falácia do desapego

Não pense que é sobre você e as memórias e vazios deixados por esses teus dois metros de altura, isto é sobre mim e tudo que sou capaz de recordar dos atos tangíveis e das palavras não ditas no tempo em que queríamos habitar o mesmo recinto, feito que se tornou impraticável devido aos conflitos emergentes das profundezas de questões não resolvidas entre nós.
Não é sobre você, não é para você, é sobre meu egoísmo, para meu egocentrismo. Afinal, desconheço-te agora, não lembro se te conheci na Nilo Peçanha ou sob o neon inebriado de uma festa qualquer, portanto torna-se refutável, se isto fosse uma monografia, relatar as causas e causos de um episódio histórico sem fonte estritamente confiável - neste caso, minha própria memória. O astigmatismo afetivo transforma os momentos marcantes em borrões mudos, em que se torna suspeito saber se você me afagava ou me afogava, se dizia “vamos casar” ou “vamos terminar”, ao fim tudo se torna um grande bolo fecal de lembranças, os momentos felizes coabitam o mesmo buraco das crises. 
Da minha perspectiva, sou o protagonista de todas as minhas histórias, tanto quando tenho vários monólogos quanto quando sou o coadjuvante passivo.
Nada disso é teu, apenas o passado e os resquícios de nós que permanecem insistentes em minha garganta, escapando em forma de palavras, e minhas artérias, bombeando meu coração cada vez menos pulsante, por tua causa ou - mais provável - não, ele vai parar e a escuridão que surgir após será infinita e infinitamente mais perturbadora do que despertar sem você ao meu lado, afinal não despertarei.
O peso de minhas palavras me arrasta a algum lugar, elas me enganam com a sensação que é para longe de ti, novas paisagens, mas quando percebo a narrativa sai do nublado para percorrer novamente tuas mãos. teus olhos e tudo se repete.

2017/02/28

Do mesmo discurso

Não queria soar como mais um dos homens que lhe prometeram espaço, liberdade, ar e tudo mais que ela esperava de um relacionamento (não-tóxico), porque sabia que ela estava acostumada, definitivamente cansada, com esses tipos de promessas corroídas pelo tempo, tornando-se mentiras e feridas na memória. Queria evitar chantagens, cinismo ou quaisquer palavras que a convencessem a fazer algo que ela apenas aceitaria devido a insistência manipulando suas próprias vontades.
Não queria se apropriar de seus gostos, forçar-se a gostar da mesmas coisas que ela apenas para ter sobre o que conversar, aonde ir, mas, sem querer, compartilhavam a mesma atmosfera nas artes, na melancolia, no olhar, na vida, assim como habitavam outras atmosferas apesar das dificuldades de adaptação.
Não queria que sua existência a cansasse, machucasse, drenasse toda sua vitalidade. Estaria disposto a "dar-lhe" (como se houvesse a obrigação de ser concedido algo) tempo e espaço, esperaria, desde que ela soubesse que ele permaneceria lá, a sua espera, ou aonde quer que ela o chamasse, iria.
Queria ouvi-la cantar “I Gotta To Find Peace Of Mind” e responderia, com certa dor justificável, que se afastaria - ou até sumiria - caso fosse ele o distúrbio em sua paz. A racionalidade se confunde quando a paz de uma pessoa se torna a guerra de outra.
Queria não soar grosseiro quando sua intenção era ser apenas comicamente sarcástico. Queria não machucá-la de qualquer maneira. Queria não ter estragado qualquer possibilidade nos últimos anos como tanto fez. Queria não perder o foco do restante de sua vida quando ela aparecia, afinal nada parecia interessante ou saudável se comparado a qualquer capítulo da história deles, para que não se viciasse a ponto de autodestruição, sabia da potencialidade de um vício tanto para construir quanto para destruir.
Queria que ela entendesse de alguma forma sua bagunça e suas idas e vindas.
Queria rotina, mas, paradoxalmente, não uma rotina que estragasse a essência da existência de um na vida de outro, vice-versa, não queria que se repetissem apenas por conveniência, não, queria repetir apenas como se fosse uma música repetida tantas vezes na mesma noite por ser a melodia mais incrível que poderia ser ouvida em momento específico. Queria assinar caderno de visitas em exposições com todos os nomes possíveis que lhe surgissem em mente.Queria chegar em casa, qualquer casa, e encontrá-la repousando, lendo, cuidando das plantas que cultivariam juntos, deixando que felinos amassassem pães em seus braços, enfim, dividir o mesmo espaço, mesmo que apenas durante as horas de sono e maratonas na TV, pois a demanda profissional sugaria grande parte de seus tempos.
Queria nada. Queria tudo. O que suas rotas trouxessem.
Queria que o tempo não dependesse de passado, presente e futuro, de mágoas, rancores e toda sorte de traumas. Queria todo o tempo do mundo. Se ela lhe dissesse “não”, guardaria a memória desse amor em um local que pudesse ver, sentir, cheirar e fim.

2017/02/08

Nos frêmitos roxos da tua carne

Nós fomos um erro. Nós fomos um erro. Nós fomos um erro. Queria escrever com interrogações para elucidar a falsa afirmativa, mas, depois de você jogar tantas vezes a verdade em que queria acreditar na minha cara, eu, teimoso, esperançoso de que não, entendi que sim. Enfim aceitei o fato que ignorava a cada gole de vontade. O sentimento era de que a gente devia ter esperado um pouco - ou muito. Esperar que algo bom - e não corrosivo - surgisse do magnético vácuo entre nossos corpos.
Se digo que estou bem ou - pior ainda - se sorrio para você, rio, qualquer seja o motivo, é mentira. Mentira é uma das faces da desonestidade, a outra é a omissão, e minto se permaneço imóvel perante o desconforto de não sermos mais dois corpos na mesma cama, mas sim dois seres distantes. Convenhamos, sem te culpar, apesar do tom contraditório deste meu grito emudecido, não há maneira humana possível de se estar bem depois de tudo, depois de nós, “depois” na condição de algo que jamais se repetirá, as repetições que se cravaram em minha pele para dificultar o desentrelaçamento das lembranças. Se não houvesse o contato físico, seria mais fácil para sair correndo, fugir para longe de você, mas tropeço na memória e na vontade que tento apagar, mas caio, me queimo e me deixo dominar tudo aquilo que queria e abandonar- deveria, para manter minha sanidade em um nível tolerável - , considerando a não-reciprocidade sobre o que poderíamos ser. Você me quebrou, me magoou, "me usou", como você mesma disse, e cada movimento do ponteiro do relógio, cada instante distante do passado repentino que vivemos, as lágrimas invisíveis escorrem ásperas riscando meu rosto com o líquido todo que ingeri quando decidi comigo mesmo estar pronto para me afogar em você. Se fui uma distração, uma miragem no teu deserto solitário, naqueles momentos em que você se distraiu com a minha pele eu podia jurar que você queria mais, mais me iludia.
Por um lado, sinto-me aliviado quando passo alguns dias acompanhado da sua ausência, é um tempo sem você e sua luz, sua energia, seu sorriso, seu cheiro, sua pele, seu andar, seu cabelo… e a distância só seria prejudicial se você me quisesse de fato em sua rotina, mas, como não quer, como não devíamos estar presentes no passado, ver tudo isso que faz de você a pessoa com quem eu gostaria de tentar sermos maiores não contribui para a desintoxicação. Por um tempo, afoguei a saudade em garrafas e mais garrafas de cerveja, porém afogar um vício em algo que nos despertou estava me deixando ainda mais próximo de nosso ponto de partida.
Não te odeio, nem o contrário, apesar de vestir a máscara do rancor e jogar ao vento palavras e atos que te façam me odiar, me desprezar, mas amaldiçoo o Cosmos, teu grande amigo, pela nossa colisão; e também cultivo ódio por mim mesmo por ter deixado a vontade florescer, por ter aceitado teu convite naquela atípica sexta-feira.
Naquela noite, se eu não tivesse despertado de meu porre, naquela maldita noite, se eu não tivesse me virado para o lado que você ocupava naquele sofá desconhecido, por que aquela inebriada noite existiu?, não haveria nós, não haveria repetição, não haveria mágoa nem sequer arrependimento por ter feito o que queria, o que queríamos. A gente devia ter reprimido o desejo até o fim de nossos dias, não deveríamos ter conversado, muito menos descoberto interesses em comum, e, importante, você jamais deveria ter feito meu mapa para confirmar que os astros se alinhavam para que a gente tinha acontecesse, porque, se dependesse de uma prévia do que de fato aconteceria entre nós, eu jamais teria aceito.
Todas as vezes que me disse, convincentemente, que fomos um erro, trucidava-me imperceptivelmente. Demorei pra notar que suas palavras me mutilavam por dentro, ao perceber o sangue abstrato já escorria pela minha boca e eu apenas balbuciava mágoa em forma de qualquer outra coisa. Qualquer coisa que te irritava, que gerava fagulhas para um tipo de incêndio diferente daquele que devia existir entre nós. Então, quando me expôs seus reais motivos, sua nova vida, minha imaturidade, eu já estava quebrado o suficiente para não perceber os pedaços de mim rachando a ponto de se dividirem em outros menores e indecifráveis.
[...] apenas corpos celestes opostos e semelhantes[...] quando recorri a métodos quaisquer para completar no meu peito a falta que você passou a fazer, [...] a tua ausência e [...] me perseguiram por dias, [...] precisava me agarrar a algo já que não mais poderia agarrar a tua pele suada deslizando pela cama.
O sexo nem foi tão surreal assim, poderia ter sido se tivéssemos nos dado mais diálogos e tempo para que meu corpo, meu toque, pudesse memorizar todo o relevo do teu corpo, todas as linhas das tuas tatuagens ligadas intrinsecamente ao âmago do teu prazer. E nem sei se meu corpo, além das mãos que admirou por um tempo agradável, mas dias depois desprezou comicamente na frente de pessoas que não faziam ideia que eram cúmplices de um caso encerrado, era tão estimado assim a ponte de te fazer querer mais do meu suor nos teus lençóis. Então restam as chagas memoráveis e intangíveis do que existiu e a expectativa do que poderia ter acontecido. Tão pouco tempo para ter em mim as marcas constantes de suas unhas, de seus dentes, não sinto a vermelhidão rotineira das cicatrizes e a saudade cínica daquelas noites me fez querer mais mesmo sabendo que não.
Tudo - o prólogo, o início, o meio e o fim - foi tão rápido que não deveria ser aceitável tanta dor, tanta mágoa ou, antes da dor, antes da mágoa, tanto desejo, tanta intensidade em inspirar que aquilo, nós dois, tão diferentes, pudesse se concretizar como algo físico e - pior ainda - emocional, afetivo, visceral, o que quer que seja isso que sentia por você. Assumo, não guardo cada detalhe dos melhores momentos da minha vida, de nenhum, então as minúcias de nós dois escorreram de minhas mãos e permanecem lá, longe, no passado, no chão, em algum canto daquele quarto onde você não mora mais.
Você não devia ter me dado atenção, afeto e espaço, devia ter dito “não” - para mim e para si mesma - no primeiro momento em que nós surgimos, mas como saberíamos que estaríamos arruinados em tão pouco tempo? Há certo alívio pelo início do desfecho ter surgido tão cedo, antes que surgisse a perspectiva de votos e confirmações em um ritual matrimonial, antes da vida conjugal, antes dos partos. Imagina se o real desafeto surgisse no aniversário de quatro anos de Nina, nossa terceira filha. Eis então certo alívio: sempre pode piorar.
Quanto mais conversávamos sobre a impossibilidade, mais incompreensível se tornavam nossos diálogos, mais espontâneos se tornavam nossos conflitos e mais questões eu tinha sobre a real impossibilidade de tudo isso e me perguntava, por não ter coragem de te jogar na parede mais uma vez, se seu escudo de hostilidade (me atacar aleatoriamente após qualquer fala minha) era apenas para não deixar infiltrar em você a vontade de ter algo comigo, vontade que conseguiu expulsar de si. Se foi isso, entendo porque já fiz isso de deixar nascer um sentimento camuflado de ódio para repelir o encanto, um modo de extinguir qualquer afeto para seguir em frente. Falando em seguir em frente, o mundo girou tão rápido enquanto tivemos nosso caso que fiquei tonto e perdi o caminho para qualquer lugar que fosse aonde pretendia ir antes de nos cruzarmos.
A exaustão por fugir de um sentimento que corre incessantemente atrás de mim é tão pior quanto o próprio sentimento, porque aceitei que ele continuará me perseguindo até que o tempo se encarregue de diluí-lo, a perseguição persiste independentemente se o afeto crescer ou diminuir, a única coisa que encolhe é a quantidade de ar que respiro quando tuas lembranças me estapeiam, não, não!, que cesse o sentimentalismo, o que perde tamanho é o sentido no que falo a seu respeito, pois, na tentativa cínica e ilusória de te ter novamente, apesar de nunca tê-la de fato, afinal ninguém tem ninguém, as palavras se unem desesperadamente em mim como se ruídos convencessem você a acreditar que poderíamos ficar juntos - por tempo suficiente para percebermos que devemos nos separar, tempo que acreditava eu não ser viável quando nos distanciamos afetivamente, [...].
Desculpa a insistência de meu corpo e minhas palavras. Há semanas me empenho nesta carta, (in)conscientemente tentando te mostrar o que não consegui dizer pessoalmente, mas toda vez que releio quero acrescentar mais páginas até que não sobre um buraco nessa carcaça baleada, até que tudo seja dito, até que a fonte se esgote e eu não tenha uma gota sequer de afeto, saudade ou vontade. Cada vez mais meu eu-lírico faz menos sentido, não condiz com o que o eu-eu quer, por prezar mais pela escrita poética do que pelo sentimento puro, destilado pela ambição de ser citado por alguém, de se tornar epígrafe, de ser relevante para alguém além desse ser egoísta que escreve sobre e para si a fim de convencer mais alguém de que vale o esforço em enfrentar, ignorar, toda a bagunça de alguém que se perde - e perde o foco - ao sentir, escrever e ser compreendido. Evidentemente, contigo, não funcionou. Chega.
Saudade da rotina que não tivemos.

2017/01/07

Rápido

Quando há visceralidade emocional no afeto físico, tudo piora, pois se somente os laços intangíveis do platonismo, nada aperta, nada rasga, nada corta. A negatividade de determinada situação se fortalece por inviabilidade de toque, tato, pleonasmos físicos, seja por bad timing-and-placing ou divergências astrais, não há critérios suficientes nesta narrativa para apurar a absoluta razão para o inconclusivo fim de duas pessoas. Inconclusivamente sem desfecho devido a ausência de um diálogo final devido a continuidade de contato devido a gama de interesses em comum devido ao desentendimento devido a tudo.
Se pensasse em dizer que se sentia um homem melhor a seu lado, mentalizava a cena e se via chorando, porque assumir tal mudança seria um ato tão difícil para quem tão problemático para se expressar clara e sinceramente que romperia as barragens lacrimais depois de alguns segundos, ou minutos, contendo-se para abrir o peito com a escandalosa verdade. Vazaria, explodiria, e pensava que ela era digna da causa de tudo isso: a vontade. De fato, o pessimismo se esvai diante de tudo que a compõe, o sorriso largo ora fechado ora irradiante, os traços tanto naturais quanto os tatuados, a bem-aventurada liberdade, a desavergonhada sinceridade, a admirável curiosidade, a disfarçada reciprocidade… Tudo (agora lembranças impraticáveis) é capaz de encher o peito com lâminas enferrujadas pelo remorso do que não devia ter sido dito ou feito ou sentido ou nada faz sentido quando a mente escapa e flui e não quer encontrar justificativa concreta para o distanciamento e só encontra a dor cínica causada pela possibilidade inicialmente abraçada com receios, sem tanta dedicação, mas então envolvida com todas as forças que agora precisou ser abandonada no meio da correnteza, talvez pelo intenso aperto com cara de obsessão. "Eu não sei nadar”, disse ele, “deixa de ser pessimista”, disse ela, “nada mais profundo que um mergulho no seu corpo”, diria ele (mesmo que desconexo ao diálogo, lembrando-se daquele domingo) se naquele momento se lembrasse perfeitamente da frase pixada em um poste a poucas quadras de onde se conheceram. Quando recordou do que deveria ter dito, não era a única coisa obviamente, envolveu-se novamente pela saudade, que era inversamente proporcional ao tempo de início dessa história, julgava-se incapaz de se apegar tanto a alguém em pouco mais de um mês, mas então seu pensamento jogava uma carta escondida, há mais tempo do que a previsível colisão ocorrera havia o condicionamento emocional para poder sentir calorosa e intensamente mais uma vez depois de outrora destroçado por outros amores, reconstruiu-se quando o determinado encontro aconteceu e, de tanto entender ao longo dos dias a possibilidade de algo maior, aceitou que ela contribuísse de toda e qualquer maneira em sua reconstrução, abriu a porta das obras, mas ela não entrou.
Não havia nada mais convincente do que se permitir sentir tanto a ponto de se tornar visível para quem o sentimento era devido, mas, neste caso, ainda era insuficiente.
Escancarou a porta e não se importou em arrumar a bagunça antes que o alguém esperado entrasse, contudo a desordem, quando excessiva, não merecia ordem.
Os fios da história e dos sentimentos, ambos entrelaçados, perdem-se e arrebentam, restando o que se conseguiu reunir do emaranhado arruinado de tudo que se conseguiu recuperar dessa confusão.
Até que se aceite que não há mais qualquer afeto cultivável, resta o constante e inevitável apodrecimento das emoções que em algum momento do passado foram consideradas em um diálogo franco o futuro adequado.