Entrei no apartamento. Quinta-feira, três da tarde, era pra
ele estar em casa. Conferi a cozinha, que estava organizada, exceto por uma
faca suja e um pote de ketchup vazio, ambos, na pia. No lixo, um pacote de pão
francês do mercado da esquina. Na sala, sobre a mesa aos pés da janela, que
estava aberta, nada além de cinco carteiras de cigarro, um cinzeiro
transbordando bitucas, um livro sobre inteligência emocional e o encarte de um
disco, que estava no toca-discos. Quarto de visitas, como de costume, trancado.
Banheiro aparentemente normal. Nada demais.
Eu sei que ele não teria as manhas de se matar, por mais
melanco-deprê-pessimista-queria-ter-nascido-no-século-XVIII que fosse, mas... Nunca
se sabe. Se bem que não encontrei algo que o encorajasse perdido pela casa,
como uma garrafa de uísque. Mas, sei lá, “imprevisível” é o segundo nome do meu
irmão.
Entrei no quarto principal. Era janeiro, mas a cama estava
soterrada por cobertores. Demorei a distingui-lo em meio a tantas cobertas. Um
pé, seguindo tradição que ele mantinha desde a infância, independente da
temperatura, descoberto e pra fora da cama. Parada na porta, fiquei o
observando. Enquanto dormia, sempre exprimia uma cara sofrida e apertada no
travesseiro. E o coitado suava. Estava inteiramente molhado de suor. Ele esteva
envolto em um sanduíche de cobertores, e, aparentemente, estava usufruindo de
um gostoso e necessário sono. Mas eu precisava conversar com esse maldito.
Comecei a descobri-lo, que relinchou e virou-se para o lado
oposto. Puxei o edredom que estava embaixo dele. Puxei com força. E ele foi
rolando pelo colchão até cair no chão.
- Ah! Filhada, meu braço!
Ficou choramingando no chão até que começou a se levantar
lentamente, me avistou e disse:
- Ô, lazarenta, por que fazer isso? – sentou-se na cama
acariciando o braço esquerdo - Aliás... Por que você está aqui?
- Bem idiota você, né? Se isolou do mundo por quatro dias e ainda me pergunta o que vim fazer aqui.
- Não sabia que você tinha a chave.
- Claro que tenho.
- Tá, mas não te fiz nada. Você não devia se importar com
isso tudo.
- A Olívia me ligou um milhão de vezes nestes últimos dias.
Primeiro, pra te xingar sobre a merda que você fez, que, aliás, não sei o que
foi, porque ela não quis me dizer. E depois, preocupada por você ter desligado
o telefone e dito ao porteiro pra deixar ninguém subir aqui. Na tua cabeça,
essa loucura pode ser normal, mas você precisa manter as pessoas que te querem
bem despreocupadas com a tua situação.
- Foi por isso que me isolei. Fiquei quatro dias
sem dormir numa insônia culposa pensando em como pedir desculpas pra Olívia.
- Mas... pra quê... se isolar?
- Remorso demais pra dar as caras por aí.
- Seu imbecil, tem nada de dar as caras... Cê só precisava
dar notícias pra Olívia. Ela realmente ficou preocupada.
- Eis o problema...
- Quê?
- Olívia!
- Não entendi, o que ela fez de errado?
- Nasceu.
- A culpa é dela por
você ter feito merda?
- É!
- E... Por quê?
- Porque estou com medo... Passei muito tempo com ela
pensando que não passava de algo passional entre nós... Pensei que eu seria
capaz de ficar longe dela... De não me importar com ela... De pensar somente em
mim... De viver a minha solitária... e depressiva vida... em paz. Mas aí...
Repentinamente, começou a tremer e confundir as palavras. Foi
aí que percebi as lágrimas. Ele veio em minha direção, me deu um desesperado
abraço e chorou mais ainda. Mais do que quando nossos pais faleceram. Ele
realmente não estava bem. Ou estava bem demais, mais do que propriamente imaginava merecer.
- Inês, eu amo a Olívia! Eu não queria, mas ... Eu gosto
dela de um jeito... sei lá... diferente. Que me faz deseja-la o tempo todo ao
meu lado. Eu sei que isso é babaquice amantes de primeira viagem, mas... E, ah,
ela cuida de mim de um jeito... Não sou ingrato, sei que você é minha irmã e que cuidou de mim muito bem desde que nossos pais se foram. Mas ela...
- Poxa, mas se você sente tudo isso, por que fugiu dela?
- Vergonha pelo que fiz.
- Ela não quis me contar... Você também vai se calar?
- Mas você sabe o que eu fiz.
- Eu sei, mas não sei.
- Contei pra ela sobre um fato específico do meu passado.
- Cê não tá falando de quando você...
- Sim! Não termina. Eu falei pra ela disso.
- Mas você é um... Então você realmente gosta dela. Não é
qualquer pessoa que consegue mergulhar no teu passado. Nossa, você gosta
muitíssimo dela.
- E esse é justamente o problema...
- Mas o que tem de errado em gostar dela? Ela é incrível. E
se ela gosta desse teu jeitinho... bizarro de ser... agarre-se.
- Isso, eis o ponto. Eu não queria me prender. Eu não queria
laços. Eu não queria amar. Porque depois que termina... dói, mas dói muito. É
um negócio ardido. Uma dor absurdamente brutal, que abala de um jeito
horrível...
- Cala a boca, você está dizendo isso baseado no que viveu
com a Heloísa. Pense bem, essa Heloísa era um demônio maldito. Ela te fazia
mal, mesmo enquanto você a amava. Eis o problema, você a amou demais, mas não
foi recompensado. Ela nunca conseguiu retribuir, no mesmo peso, os sentimentos.
Aí ela percebeu isso, e, se mandou.
- O bom é que o amor que eu sentia por ela, que não era
pouco, se reverteu em ódio e, só assim, consegui me livrar das memórias.
- E a Olívia, poxa, dá pra ver que ela te ama. Não sei dizer
se mais do que você ama ela, mas é grande também.
- Mas eu não quero que a depressão anêmica que eu vivi
depois que a Heloísa me largou se repita.
- Cada caso é um caso. Não se prenda a fatos passado. Aliás,
se você estivesse se baseando em algo bom, tudo bem, mas estamos falando
daquela maldita. Alias, se não tem que ficar pensando no futuro, viva o agora,
seu idiota.
- Clichê como sempre, você. Mas, sempre me dando as porradas
necessárias.
...
...
Nenhum comentário:
Postar um comentário