2013/01/10

2/3 Irmã

...

Entrei no apartamento. Quinta-feira, três da tarde, era pra ele estar em casa. Conferi a cozinha, que estava organizada, exceto por uma faca suja e um pote de ketchup vazio, ambos, na pia. No lixo, um pacote de pão francês do mercado da esquina. Na sala, sobre a mesa aos pés da janela, que estava aberta, nada além de cinco carteiras de cigarro, um cinzeiro transbordando bitucas, um livro sobre inteligência emocional e o encarte de um disco, que estava no toca-discos. Quarto de visitas, como de costume, trancado. Banheiro aparentemente normal. Nada demais.
Eu sei que ele não teria as manhas de se matar, por mais melanco-deprê-pessimista-queria-ter-nascido-no-século-XVIII que fosse, mas... Nunca se sabe. Se bem que não encontrei algo que o encorajasse perdido pela casa, como uma garrafa de uísque. Mas, sei lá, “imprevisível” é o segundo nome do meu irmão.
Entrei no quarto principal. Era janeiro, mas a cama estava soterrada por cobertores. Demorei a distingui-lo em meio a tantas cobertas. Um pé, seguindo tradição que ele mantinha desde a infância, independente da temperatura, descoberto e pra fora da cama. Parada na porta, fiquei o observando. Enquanto dormia, sempre exprimia uma cara sofrida e apertada no travesseiro. E o coitado suava. Estava inteiramente molhado de suor. Ele esteva envolto em um sanduíche de cobertores, e, aparentemente, estava usufruindo de um gostoso e necessário sono. Mas eu precisava conversar com esse maldito.
Comecei a descobri-lo, que relinchou e virou-se para o lado oposto. Puxei o edredom que estava embaixo dele. Puxei com força. E ele foi rolando pelo colchão até cair no chão.
- Ah! Filhada, meu braço!
Ficou choramingando no chão até que começou a se levantar lentamente, me avistou e disse:
- Ô, lazarenta, por que fazer isso? – sentou-se na cama acariciando o braço esquerdo - Aliás... Por que você está aqui?
- Bem idiota você, né? Se isolou do mundo por quatro dias e ainda me pergunta o que vim fazer aqui.
- Não sabia que você tinha a chave.
- Claro que tenho.
- Tá, mas não te fiz nada. Você não devia se importar com isso tudo.
- A Olívia me ligou um milhão de vezes nestes últimos dias. Primeiro, pra te xingar sobre a merda que você fez, que, aliás, não sei o que foi, porque ela não quis me dizer. E depois, preocupada por você ter desligado o telefone e dito ao porteiro pra deixar ninguém subir aqui. Na tua cabeça, essa loucura pode ser normal, mas você precisa manter as pessoas que te querem bem despreocupadas com a tua situação.
- Foi por isso que me isolei. Fiquei quatro dias sem dormir numa insônia culposa pensando em como pedir desculpas pra Olívia.
- Mas... pra quê... se isolar?
- Remorso demais pra dar as caras por aí.
- Seu imbecil, tem nada de dar as caras... Cê só precisava dar notícias pra Olívia. Ela realmente ficou preocupada.
- Eis o problema...
- Quê?
- Olívia!
- Não entendi, o que ela fez de errado?
- Nasceu.
 - A culpa é dela por você ter feito merda?
- É!
- E... Por quê?
- Porque estou com medo... Passei muito tempo com ela pensando que não passava de algo passional entre nós... Pensei que eu seria capaz de ficar longe dela... De não me importar com ela... De pensar somente em mim... De viver a minha solitária... e depressiva vida... em paz. Mas aí...
Repentinamente, começou a tremer e confundir as palavras. Foi aí que percebi as lágrimas. Ele veio em minha direção, me deu um desesperado abraço e chorou mais ainda. Mais do que quando nossos pais faleceram. Ele realmente não estava bem. Ou estava bem demais, mais do que propriamente imaginava merecer.
- Inês, eu amo a Olívia! Eu não queria, mas ... Eu gosto dela de um jeito... sei lá... diferente. Que me faz deseja-la o tempo todo ao meu lado. Eu sei que isso é babaquice amantes de primeira viagem, mas... E, ah, ela cuida de mim de um jeito... Não sou ingrato, sei que você é minha irmã e que cuidou de mim muito bem desde que nossos pais se foram. Mas ela...
- Poxa, mas se você sente tudo isso, por que fugiu dela?
- Vergonha pelo que fiz.
- Ela não quis me contar... Você também vai se calar?
- Mas você sabe o que eu fiz.
- Eu sei, mas não sei.
- Contei pra ela sobre um fato específico do meu passado.
- Cê não tá falando de quando você...
- Sim! Não termina. Eu falei pra ela disso.
- Mas você é um... Então você realmente gosta dela. Não é qualquer pessoa que consegue mergulhar no teu passado. Nossa, você gosta muitíssimo dela.
- E esse é justamente o problema...
- Mas o que tem de errado em gostar dela? Ela é incrível. E se ela gosta desse teu jeitinho... bizarro de ser... agarre-se.
- Isso, eis o ponto. Eu não queria me prender. Eu não queria laços. Eu não queria amar. Porque depois que termina... dói, mas dói muito. É um negócio ardido. Uma dor absurdamente brutal, que abala de um jeito horrível...
- Cala a boca, você está dizendo isso baseado no que viveu com a Heloísa. Pense bem, essa Heloísa era um demônio maldito. Ela te fazia mal, mesmo enquanto você a amava. Eis o problema, você a amou demais, mas não foi recompensado. Ela nunca conseguiu retribuir, no mesmo peso, os sentimentos. Aí ela percebeu isso, e, se mandou.
- O bom é que o amor que eu sentia por ela, que não era pouco, se reverteu em ódio e, só assim, consegui me livrar das memórias.
- E a Olívia, poxa, dá pra ver que ela te ama. Não sei dizer se mais do que você ama ela, mas é grande também.
- Mas eu não quero que a depressão anêmica que eu vivi depois que a Heloísa me largou se repita.
- Cada caso é um caso. Não se prenda a fatos passado. Aliás, se você estivesse se baseando em algo bom, tudo bem, mas estamos falando daquela maldita. Alias, se não tem que ficar pensando no futuro, viva o agora, seu idiota.
- Clichê como sempre, você. Mas, sempre me dando as porradas necessárias.

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