I
Como um pêndulo, com o movimento do ônibus, seu corpo balançava da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, ia e vinha, e... Meu Deus, como esse corpo era belo.
Sua altura certamente ultrapassava o 1,9 m, deixando sua cabeça no mesmo nível das barras de ferro amarelas do veículo.
Ele lia um livro de capa roxa, que não consegui identificar o título, mas, pelo rosto e seus sorrisos, parecia ser bom.
Sua cabeça, com cabelo e barba como se cortados na mesma altura propositalmente, repousavam sobre seu braço estendido que levava sua mão à barra d'ônibus.
Apesar de um sorriso fechado e alegremente desleixado, seus olhos entretidos com a leitura pareciam cansados. O olhar seguia o ritmo das palavras do livro com muito esforço, não conseguia saber se a história o levava a tal melancolia ou se sua vida estava assim, triste.
II
Sem conhecer o motivo real para tal, minha ansiedade naquela semana chegara ao nível "preciso fumar". Eu fumo às vezes. Não mantenho na nicotina um vício regular, pois meu pulmão, mesmo aos 24 anos, é fraco, somado a minha pressão arterial (9/6), me dão náuseas depois de dois ou três cigarros. Porém, em períodos que meu corpo fica mais acelerado sabe-se lá porquê, eu encontrava nos cigarros a calmaria.
Estava atrasado para a aula no ponto de ônibus há vinte minutos e fui invadido por uma grandiosa inquietação, que me fazia andar descoordenadamente da beira da rua ao muro atrás da parada. Eu não tinha sequer um cigarro e, naquela região, só havia venda em maços. Eu não queria comprar uma carteira, pois com toda certeza não fumaria tudo, abandonando o pacote de tabaco por aí.
Comecei então a procurar alguém no ponto que estivesse fumando para me doar um careta. Depois de pouquíssimo tempo encontrei... Encontrei ela.
Tudo o que eu precisava.
Cabelos de cigarro. Fios com pontas amarelas, meios esbranquiçados e raízes pretas. Nuca à mostra. Fumava de cabeça erguida, queixo levantado, encarando o céu. Parecia viajar. Queria viajar junto.
Meu nervosismo embaraçou minhas pernas, atrasando um pouco minha ida aonde a moça estava.
III
O rapaz que outrora pegara ônibus comigo, viajando num livro e me encantando, veio a mim:
- Oi, moça, você teria um cigarro pra me dar?
Olhei no fundo de seus olhos e percebi a escuridão lá dentro. Eu queria entrar. Respondi desconcertada:
- Sim... - demorei nessas três letras - Mas você fuma de filtro vermelho?
- Eu só não fumo pedra, moça. - sua voz era séria, mas o sorriso (ah, que lábios...) entregava o humor.
Entreguei-lhe o pedido.
IV
Ela riu do que eu recém falara, deixando os dentes a mostra e percebi que um deles era semelhantemente torto a um dos meus. Disse, curioso:
- Nossa, moça, olha aqui... - abri a boca mostrando meus dentes - o meu é igual o teu.
Ela parecia tentar entender o que eu queria provar ao dizer isso, mas eu mesmo interrompi o silêncio:
- Só que o teu é muito mais bonito.
Pedi-lhe fogo.
V
Eu já estava em chamas, querendo o levar a minha casa e... Aí ele me pediu fogo e um sorriso queimou minha cara.
VI
Quando me passou o isqueiro, peguei sua mão e senti seu calor.
VII
Seus dedos eram frios e esse choque com meu corpo quente gerou uma repulsa entre nossas mãos. Então ele acendeu o cigarro, deu um trago e me lançou o sorriso mais escancarado que vi saindo daquela boca.
Agradeceu a gentileza de tê-lo doado um cigarro. Acariciando meu braço, perguntou-me se eu pegava sempre ônibus ali. Ansiosa, respondi:
- Sim, aliás, já te vi no ônibus uma vez.
- E como é que eu nunca vi você - proclamou "você" com força - por aqui?
- Você estava acompanhado...
Interrompeu-me dizendo que não era possível, pois sempre pegava esse ônibus sozinho. Logo prossegui:
- De um livro. Você parecia viajar dentro dele.
- Ah... - riu - eu gosto de viajar.
VIII
Quanto mais tempo passava ali, mais eu me encantava por ela e desejava bagunçar aquele cabelo colorido, morder aqueles lábios e...
Criamos a rotina de nos encontrarmos diariamente no ponto de ônibus, dividirmos um cigarro e irmos dia à casa dela, dia ao meu apartamento. Meu Deus, como aquilo era bom, como ela era boa. Ah...
Porém, do nada, a partir de um dia qualquer, comecei a perceber a ausência de um sorriso naqueles lábios e um olhar desviado.
Desde o início, nunca cogitamos expor planos de um futuro juntos. A gente se via de segunda a sexta-feira e isso já nos preenchia e satisfazia imensamente. Eu gostava dela e disso que vivíamos. Não me incomodava em "ir para um próximo estágio" ou, até mesmo, discutir aonde queríamos ir. Até que...
IX
Só de pensar, me doía. Imaginar que aquele dente torto, aquela barba, aquela mão machucada, tudo o que ele era, em breve, estariam distantes da minha rotina, gerava-me um certo desespero. Eu nunca pensara que "amor" pudesse existir entre nós. Eu não queria pensar. Infelizmente, porém, pensamentos sobre nosso futuro, ou a impossibilidade disso, começaram a me perturbar quando recebi da chefia uma carta de transferência. Eu amo meu trabalho, é minha vida. Essa mudança levaria minha carreira às alturas, mas me afastaria dele, o rapaz que achava meu dente torto um encanto.
Pensei em apresentar-lhe a verdade e pedir suas palavras para que pudéssemos planejar como seguiríamos dali em diante. Não tive coragem. Quatro dias antes da despedida, uma melancolia me invadira e me atrapalhava quando estava com ele. Enfim, no último encontro, apenas respeitei nossa rotina e, ao sair de sua casa, enquanto dormia totalmente nu (como eu sentiria saudades daquelas costas suadas...), deixei ao lado da cama uma carteira de cigarros e um bilhete:
Nós fomos passageiros. Assim como os cigarros, tivemos um fim.
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