Um ano após aquele show em São Paulo, muita coisa aconteceu. História digna de ganhar um livro de seiscentas páginas (quiçá uma trilogia se não morrermos antes de terminarmos), uma série com dez temporadas ou simplesmente bastante espaço no campo das memórias. Eu, como sempre, fui e voltei, perdi-me várias vezes principalmente na minha própria bagunça interna. Ela, ah, silêncio magnético, olhares com canto d’olho , novo par de óculos (não sei o que se passou com o primeiro vermelho, agora é um rubro-negro), diversos pingentes que se alternam semanalmente em seu peito, tudo, continuava a mesma da época que a conheci: incrivelmente encantadora e me atraindo cada vez mais. Não que ela não tenha se perdido também, claro que sim, é um direito dela. Não posso obrigá-la a fazer o que ela não quer, nada posso fazer contra isso, até porque, de certo modo, apoio essa causa. Acho que as pessoas têm mesmo é que se perder... sozinhas, acompanhadas, como for, desde que se encontrem. E, no caso dela, que se perca, que se vá, mas, por favor, volte.
Muita coisa aconteceu desde que saímos pela primeira vez, não só apenas entre nós dois, mas comigo e outras; ela e… Não quero saber se ela saía ou ainda sai com outros e não porei na mesa todas as minhas cartas. Curiosidade havia, mas eu sei, ah, como eu me conheço nesse sentido, que surgiria em mim um ciúme que despertaria um sentimento de posse que outras pessoas costumam manter quando namoram. Não, espera, eu e a moça dos gostos estranhamente compatíveis não assumimos namoro, nem mesmo um ano depois. Do meu lado, não desejava que criássemos um laço que apertasse tudo entre nós que flui muito bem. Não que eu não quisesse construir um império ao lado dela. Nossa construção era algo que eu chamaria de intangível, silenciosa, invisível pra vocês. Conversávamos sobre namoro, mas de outras pessoas e o que achávamos de coisas estúpidas que alguns casais se submetiam. Pagar mais de cem reais num par de argolas de metal (imagina, com essa grana dá pra comprar bastante comida e livros), seu par quer exclusividade e obriga distanciar-se das velhas amizades, ligar a cada novo passo para alertar que está dando um novo passo, ir a eventos que não gosta só para "agradar" (aí ambos não se divertem), etc. Esse negócio de aliança no dedo é, segundo ela, pra marcar território e eu completava que “o importante é manter firmes as alianças com o amor de Jesus”. Obviamente, ríamos juntos.
Distanciei-me de minhas amizades, mas não por causa dela, a estranha, foi por causa da naturalidade em que surge a distância nas relações interpessoais, ela simplesmente aparece do nada como um fantasma que ninguém quer por perto. Coisa natural da vida, convenhamos, “as pessoas vão embora”, como gritou uma das moças com quem me envolvi quando a informei que não queria mais seguir com ela do jeito que estávamos (e decidi seguir em busca de algo sério com a mulher que cantou “I wanna hear what you have to say about me” comigo em São Paulo). “Algo sério”, não saberia definir o que seria isso, nem se seguimos de fato desse jeito. Não houve nesse mais de um ano uma reunião que definisse o status entre nós dois. Tínhamos, acredito, certa dificuldade para levantar determinados assuntos ou era apenas paranoia minha que atrasava tudo. “Paranoia”, pra não dizer “medo de abrir a boca e ouvir o que ela tinha a dizer", pois, sim, eu tinha isso às vezes e sei que podia estar perdendo a oportunidade de que ela falasse algo que pudesse me motivar ainda mais a seguir nessa nossa estrada, mas tinha e ainda tenho medo de ouvir o que não quero. Ou algo ruim, aí entra o terror. “Ah, mas olha o tipo desse cara se rejeitando a ouvir o que a guria tem a dizer”. Se tivesse que falar, ela vai falaria, eu sei. Mas, calma lá, não é que eu não queira saber o que se passa na mente dela, mas cogitar que algo negativo em relação a nós passa por sua cabeça me assusta muito, porque realmente não quero que tudo isso acabe de forma dolorosa. Quer dizer, acabar vai de qualquer jeito hora ou outra, mas não quero sofrer demais. Apesar de dor ser um item obrigatório na aterrissagem dessa viagem, prefiro pegar o pacote básico. Minhas analogias metafóricas que só eu entendo...
Agora vocês vêm me perguntar como anda nossa vida sexual. Se corre a mil por hora ou estagnou no zero. Olha aqui, ninguém mais preza pela intimidade particular. Intimidade. Particular. Redundância? Sim, porque o termo “intimidade” se desfez com o tempo, foi remoldado e adquiriu novas formas líquidas. Tipo aquela em que as pessoas têm a grande necessidade de mostrar tudo a todos. Beijos públicos, agarramentos em festinhas, gêmeos siameses no ônibus... Ora, não, por favor, dispenso tanto esses tipos de exposição quanto ficar falando sobre intimidades entre duas pessoas para outras. Não, obrigado. Aliás, não é só de sexo que um casal sobrevive. Tem mais. Todo ser humano aliás, até os solteiros, tem o que fazer além daquilo. "Por que o sexo é a definição de ser próximo de alguém?", como disse o vulgo Donald Draper.
Quando disse, há 365 dias, que deixei meu desejo explodir, não esperava que fosse algo tão fora de controle. Comecei a juntar os pedaços, me distraí, me perdi, fui a outros lugares procurar o quê acreditava me faltar. Ah, esse meu jeitinho cretinamente babaca de ser. O que mais me espanta é toda a paciência dela pra esperar eu me encontrar. Ela deve ter nascido de dez meses de tanta calma que tem nesse corpo compacto por fora, imenso por dentro. Essa coisa de gestação faz muito sentido: saí da barriga da minha mãe logo no início do oitavo mês. Ansiedade.
Preciso de mais espaço e tempo pra expor nossas vivências, aquelas que não rompem a barreira da intimidade, pois acredito seriamente que a união de nossas vidas, desde antes de nos (des)encontrarmos (juntos), deveria ser contada num livro, num filme, num disco, numa série, num anúncio publicitário, numa igreja, num encontro de dependentes químicos ou apenas para nós dois.
Não conversamos, eu e ela, sobre alguns assuntos, porém, entendo que fica subentendido entre nós o consenso de que não falamos de tais coisas e ponto. Ou, eu e meu “pensar quarenta e 12 vezes antes de agir” julga um erro pôr essas coisas na pauta. Eu sou um belo de um covarde pra certas coisas.
Já acho meio desnecessário ficar expondo minha vida, mas “I am a pretty anxious person and creating is a way for me to deal with it” (DELPY, Julie), ainda mais sobre romances particulares. Criar, escrever, imaginar, viajar, que seja, é preciso. Dentre outras coisas, algo que me agrada nela, a magnética-hipnotizante-minha-vontade-de-envolvê-la-em-meus-braços-se-mostra-quando-o-ar-fica-pesado-e-meu-corpo-começa-a-ficar-mole-fazendo-com-que-eu-precise-me-escorar-em-algo, é esse jogo de referências que participamos. Pelo menos enxergo isso, vai ver apenas eu, vai ver ela nem se empolga com isso. Às vezes, penso que estou numa ficção. Não sei se sou Franz, Dean, Martín, Alex ou eu mesmo. Perco-me em minhas próprias ficções, aquelas que escrevo em minha mente antes de ela chegar, no meu caderninho pra ninguém ler ou aqui. É muita coisa escrita, pensada, guardada, vivida. Posso ser a soma disso tudo, dos personagens, que, somado a toda essência dela, que também recebe influência ficcional, algumas diferentes das minhas, torna o nós algo muito diferente de tudo que assistimos, lemos ou absorvemos por aí. Nesse um ano e tanto, as referências aumentaram, assim como o que sinto por ela aumentou. Aí vocês me perguntariam: “Ah, mas o que você sente por ela? Amor?”, calem suas bocas, por gentileza. Não quero dizer, quero sentir, o que quer que seja. E se eu dissesse o que ainda não sei traduzir da língua das emoções, pode ter certeza que não seria para vocês. No máximo, num momento delirante, eu sairia pela rua gritando seu nome.
Falando em ficção, além de tudo que ela é, incluindo a dona do corpo que faz o meu amolecer e perder a força ao seu lado, seja por seu campo gravitacional ou magia divina, não sei; esta mulher considera filmes que te deixam despedaçado no final o melhor tipo. Sério, não dá pra mensurar o que senti quando terminamos “Alabama/Monroe” e olhei para cara dela de “e agora?”. Consegui apenas desejar envolvê-la em meus braços para afundarmos juntos. Enquete: O que leva duas pessoas a assistirem um filme trágico mais de uma vez? O que me levou a fazer isso? Ela. O que me leva a sair de casa num domingo, dia que costumava guardar para hibernar? Ela. O que tem me curado do astigmatismo na vida? Ela. Ela, seu um metro e “altura que bate nos meus ombros”. Ela e seu olhar desconfiado quando começo a encará-la com meu apelo em forma de olhares dizendo “beija-me antes que eu me afunde sozinho”. Ela e tudo nela que não consigo construir uma descrição metafórica ou entre aspas. Ela.