2014/06/04

Joe/hurt, Sally/heal

- Não, eu tenho muitas feridas, vai me machucar mais ainda.
Porém, não havia cicatrizes que Sally não conhecesse:

- Eu sei de todas as suas outras feridas, as internas.
- Mas essas aqui são diferentes, sangram de verdade.
- Quero cuidar delas, de todas.
- Não, Sally, - disse lentamente - eu não quero nem mostra-las - pegando forte nas mãos da moça. - Por favor.
Percebeu no olhar dele que as cicatrizes deveriam permanecer intactas naquela noite. O desejo poderia esperar.
Oficialmente, eles não sabiam qual encontro era esse. Para os mais conservadores, seria tempo suficiente para dizer que ela não era “moça de família”. Para Sally, assim como ele, os conservadores que se fodam. Ela também queria foder. Se foder. Com ele. Ele também queria. Não podia.
Sally, que tinha jogado o rapaz na cama, preferiu respeitar a dor do rapaz, que em pouco mais de dois meses, já dera motivos suficientes para permanecer na vida dessa mulher. Ele também queria que ela ficasse, armasse acampamento, fizesse de sua rotina algo digno de ser vivido, porém ele ainda estava inapto a proporcionar-lhe, na opinião deste humilde narrador que vos transmite esta bela história, algo que sempre afetou e sempre afetará negativamente todo e qualquer romance vivido por qualquer casal: Sexo. Não presta. Traz intimidade física, ok, mas com isso vem tudo quanto é tipo de obrigação implícita para casais. O desejo manipula as pessoas inconscientemente. Todo mundo age na loucura de saciar a vontade. Esquecem de pensar. Eu prezo pela razão. O sexo que se foda... com ele mesmo e pare de estragar pessoas, relacionamentos e filmes.
Perdão, deixem-me voltar ao quarto de Sally.
- Eu quero, você não consegue imaginar o quanto, mas eu… - com a mão, que descia da barriga a virilha, expressou uma face cansada - Sério, desculpa.
- É muito grave?
- Nada que o tempo não ajude. Só espero que você ainda queira me ver quando esse dia chegar.
- Olha, não pretendo me mudar. Você sabe meu endereço.
- Vou indo já então, boa noite - quando foi ao rosto de Sally para dar-lhe um beijo, ela interrompeu:
- Ei, não é porque a gente não vai transar que você precisa ir. Já tá tarde, não quero que você saia essa hora da noite.
- Mas e como eu fico com a vergonha?
- Joga ela na fogueira. Tá frio, fica aqui pra gente se esquentar.
Com licença, outra coisa que não entendo nas pessoas é essa “obrigação”. Esse negócio de ter que transar. Se duas pessoas dormem juntas, elas necessariamente precisam trocar nojeiras corporais. Sério? Pessoalmente, prefiro o platônico, nada de contato, saliva etc. Mas tem quem goste da carne. Para tais, recomendo: Vocês não precisam transar todo dia, o tempo todo. Mundo está cheio de crianças e AIDS já. Moderem. Juro que foi minha última interrupção. Enfim.
Deitaram-se e o rapaz decidiu se abrir. Contou sobre como se machucou, desde o primeiro corte. Sally ouviu tudo atenciosamente. Até que no primeiro silêncio, caíram no sono. Ele afundou o rosto nos cabelos dela, adormeceu estasiado. Alternando posições, dormiram até tarde.
Por fora, cicatrizes atormentavam o rapaz, mas, por dentro, ah, ele estava muito bem. Dia seguinte. Saiu do trabalho às nove da noite e lá estava ela, ao lado da porta, esperando-o, toda apaixonante.
- Desculpa vir sem avisar, tem compromisso agora?
- Comer e dormir - desde que a encontrara, não tirava um sorriso largo de seu rosto.
- Cê pode fazer isso lá em casa, pode ser?
Sally preferiu não encostar tanto no assunto de noite passada quanto nas partes baixas dele. Afundaram-se numa pizza gigante e atolaram na cama, embriagados de queijos, tomate, champignon e palmito. Ficaram um tempo calados esperando a comida descer. Aproximando-se de Sally, o rapaz deu-lhe um beijo na boca e permaneceram assim, com lábios e narizes se encostando, por um tempo. Olhos se conectavam com força. Afogaram-se.

Há quase um mês dormindo juntos, Joe não queria mais esperar a cicatrização. Ele queria conhecer os pontos de Sally que ainda não explorara. Foi bom? Nossa. Doeu? Sim, não sabia se seus próprios gemidos eram de dor ou prazer. Quis repetir? Não, não depois que viu seu sangue quando terminaram o ritual. Correu constrangido ao banheiro para se limpar. Sally foi atrás e procurou curativos.
Deitou-se na cama e virou pra parede, envergonhado. Sally tentou invadir essa muralha, mas… Ele dormiu se escondendo, mas não proibiu que a moça afagasse suas costas enquanto pegava no sono.
Acordou e viu que Sally estava se vestindo ainda com o cabelo molhado depois do banho.
- De onde eu tiro coragem pra olhar na tua cara?
Ela se sentou na cama, aproximou-se e disse encostando seu nariz no dele:
- Daqui - empurrou o no colchão e o beijou. Que beijo… Parece que todo o constrangimento nele morreu afogado com o fogo que saíra dos lábios de Sally. 
- Sério, vou parar de fazer curativos. Sério, prometo que vou ao médico resolver isso de vez e… você já sabe.
Permaneceram juntos até que as cicatrizes de Joe se extinguiram e deram lugar a feridas verbais, discussões, egos inflados, carência extrema e obrigações desnecessárias. Ele preferia o sangue do que o ódio que começou a sentir por Sally. Ela gostava mais de dormir abraçada com ele do que não conseguir olhar na cara dele de tanta raiva. Ambos saíram machucados e foram em busca de quem os curasse. Novos curativos. Novas feridas. Machucariam-se novamente. Curariam-se novamente. Ad infinitum até serem curados pela morte.

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