2015/10/28

Segundo

Romântica desde sempre, se a questionassem sobre seu estado - tanto físico quanto mental - atual, responderia que (na medida do possível) está “tudo bem”, generalizando tudo obviamente, sem a necessidade de guardar para si uma resposta sincera, “não, tá tudo uma merda, não consigo entrar num relacionamento saudável...”, pois deixara de se preocupar com o coração vazio, o que a deixava intensamente melancólica, para direcionar seu estresse a outros cenários de sua tragicomédia, como o emprego inexistente, o aluguel pendente, as amizades ausentes ou a tentativa de encontrar a razão e a culpa para todo esse desmoronamento contínuo no último ano, apesar disso, estava bem. Não que estivesse com o coração em paz, repousando no colo de alguém, fazendo programas de casal etc, não, continuava sozinha, e não era por vontade própria, mas porque se afastava de qualquer amor em potencial, enxergava suas próprias falhas e temia que pudessem repulsar a paixão platônica da vez, corria para longe de qualquer sorriso simpático por imaginar que se transformaria em ódio fulminante quando o romance deixasse cair o cenário fantasioso de perfeição e mostrasse somente a podridão real de seu teatro de aparências e as rachaduras de seu passado, percebia que a pessoa recém-conhecida não era tão desgraçada da cabeça quanto ela e mudava seu rumo para um lugar distante a fim de evitar que contaminasse a pureza de outrem com pessimismo e rancor, não queria desperdiçar o tempo que poderia usar para dormir ao lado de alguém, conjecturar sobre um futuro perfeito ou conversar sobre interesses em comum para dar lugar a declamações de seus monólogos egocentricamente depreciativos. Quantos amores eternos desperdiçou desse jeito?, cultivando quilômetros de distanciamento?, perguntava-se constantemente, quando não estava procurando por um novo emprego ou engolindo seu orgulho no seco para pedir dinheiro emprestado a sua família para pagar contas, porres solitários e carteiras de cigarro. Tão alheia a romance, amor e essas coisas que até esquecia de remoer seus sentimentos pela única que realmente se mostrou disposta a encarar seus demônios e embarcar em um relacionamento - supostamente - estável, mas recebeu apenas silêncio, relembrar da mensagem que não respondeu daquela que poderia ter se mudado para outro estado com a memória do corpo de quem a ignorou cravada em sua pele, tentar encontrar um meio de voltar a falar com a que se distanciou achando que era odiada, entre outros casos, dedicava pouco tempo a tais mulheres por mais que quisesse a presença de todas em sua vida. Não mais sabia como manter pessoas a seu redor, não conseguia, se é que algum dia soube ou conseguiu de fato. Adjetivavam-na como romântica, emotiva, apaixonada ou palavra similar, e ela não negava tal título, mas não tinha disposição para exercê-lo, o cansaço a impedia.
Passou pela Praça Osório, cabisbaixa, ignorando as árvores que costumava apreciar, e caminhava, melhor dizendo, tropeçava pela Vicente Machado no fim da tarde, início do horário de pico, passava por estudantes e pessoas que tinham o que ela queria, emprego, e precisava se concentrar em onde pisava para não trombar com alguém e cair, o que era provável devido a sua exaustão física. Tinha acabado de sair de um teste para uma vaga correspondente a sua graduação, a primeira em meses, mas deixou a ansiedade pelo resultado, que chegaria em três dias por email, na recepção da empresa. Quase foi atropelada no cruzamento com a Visconde de Nácar, local onde os semáforos sempre a deixavam confusa sabe-se lá porquê, por um. Pensou em parar na Excelência para comer um pão de queijo, mas, ao parar para cruzar a rua, o semáforo se avermelhou para pedestres, e as poucas moedas em sua bolsa gritaram que ainda havia metade da panela de arroz com legumes que sobrou do almoço. Seguiu andando. Pouco adiante, um impulso aleatório fez sua cabeça jogar seus olhos para dentro de um café, onde, num banco alto, bem na entrada, estava uma mulher, que imediatamente percebeu estar sendo observada por uma estranha na rua. Antes que os olhares se divergissem, naquele ligeiro instante em que se encontraram, surgiu o amor e o futuro, a paixão e a vontade. Foi um momento de certeza, ela deveria entrar ali e iniciar o maior romance de sua vida. Nunca antes se sentiu tão encantada por uma pessoa. O relógio parou. Esqueceu de respirar enquanto avistava a moça. No passo seguinte, quando a perdeu de vista, seguiu seu caminho e ignorou o fim dessa história que mal começou. Acendeu um cigarro, distraiu-se com seu próprio silêncio e seus próprios conflitos em meio a buzinas e palavras e continuou.

2015/10/20

Casa (des)construída

Não sabiam se eram dominados pela raiva de terem aguentado tanto tempo para finalmente enxergar o buraco onde estavam ou pelo desespero de perceber que o tão temido fim enfim estava ali, com os dois, no quarto cheio de vazio e dor. Além de lágrimas, derramavam ansiedade e abnegação sobre o chão do apartamento congelado por memórias apagadas de um tempo distante repleto de afeto e carinho.
Enquanto Ele pressionava uma mão com a outra, após ter socado a parede a fim de tentar abir uma rachadura que deixasse sair toda a melancolia presa na casa que o afastava d'Ela, que estava sentada a seu lado no chão, puxava um botão de sua camisa com mãos trêmulas, quando, querendo arrancar a mágoa que impedia o amor que guardava em por Ele de se manifestar, acabou arrancando a peça de roupa.
- Não sou mais capaz de te amar, de viver aqui, mas tô perdida, porque também não sei não te amar, não consigo ficar longe, é como se você mantivesse todos os meus cacos de vidro da minha existência unidos… Mas o que quer que seja que você usa pra colar meus pedaços, tá me machucando. Ou talvez sejam meus próprios cacos de vidro que estão me cortando cada vez mais, abrindo minha pele, deixando qualquer coisa boa que sinto por você fugir. A gente chegou num ponto que o comodismo se enraizou entre nós e nos prende juntos, mas não dá pra arrancar porque já não dá pra diferenciar sangue de raiz.
- Talvez seja melhor deixar o vidro se quebrar inteiro e tentar remendar com mais calma. Olha pra mim, eu não queria que acabasse assim, com a gente numa dança entre raiva e choro, eu queria que não acabasse, na verdade, do fundo da minha existência, você é a pessoa que mais me entendeu, apoiou, amou... Só você conseguiu aguentar essa minha bagunça por tanto tempo, mas... Mas eu sinto que meu egoísmo foi o que mais nos distanciou, o que mais prejudicou nossa convivência desde sempre, vendo agora, percebo que o que fiz por você não chega nem perto de tudo o que você fez por mim.
Quando o silêncio começou a perturbá-los, lembravam, cada um em sua própria mente, da primeira vez que se encontraram, do chaveiro, do bilhete, das relíquias e memórias que guardavam em suas bolsas e carteiras e seus corações desde a noite em que se conheceram em outra cidade, em outra vida.

Lembravam pedaços do primeiro capítulo deste romance, a integridade dele, assim como a de suas mentes, havia se diluído nos litros de álcool ingeridos naquela noite. Primeira cena, estavam no fumódromo de um bar, cada um com seu grupo de amigos, então Ele procurou um lugar para se sentar quando sua cabeça começou a pesar demais. Conseguiu um espaço, entre uma goteira e algumas pessoas, e repousou a cabeça no próprio colo. A pressão baixa o fez companhia até que Ela percebeu a situação, deixando seus amigos, sem conhecê-Lo, perguntando se estava tudo bem. Ele só teve força para levantar uma mão e fazer um gesto de positivo. “Você tá sozinho? Quer alguma coisa?”, perguntou Ela. Recuperando-se aos poucos, o rapaz levantou a cabeça, sorriu e respondeu que estava bem e completou, ainda extrovertido por conta das bebidas: “Falei pra mim mesmo que devia parar de beber tanto assim e tentar ficar sóbrio em festas, mas, como é meu aniversário, achei que precisava de uma despedida do álcool...” “É seu aniversário? Parabéns!”, empolgada pela vodca, deu um  abraço, “vou te dar um presente, tenho um chocolate aqui, você gosta desse?”, tirou o doce da bolsa e, com a resposta afirmativa d'Ele, entregou ao rapaz, “Falando em despedida, hoje é a minha também, mas não do álcool, da cidade”. No meio da conversa, quando o desejo já era grande e recíproco, Ela o ajudou a se levantar para fumar, "Mas isso não não vai fazer tua pressão cair de novo?", "Talvez", mas não encontravam seus esqueiros. Ela deu alguns passos para pegar um emprestado de uma fumante, e, na volta, chutou alguma coisa, sem perceber, que foi na direção do rapaz. A moça tinha por costume soltar a fumaça com o queixo levantado para ver a noite absorver o gás carbônico, e, numa dessas, o rapaz rapidamente se abaixou para pegar o objeto que Ela havia chutado há pouco. Guardou no bolso a miniatura de Torre Eiffel e os dois continuaram conversando sobre tudo. Quando o relógio bateu duas da manhã, as pessoas começaram a se descolocar para o balcão do bar, pois havia começado open bar de vodca com energético. Terminaram seus cigarros e entraram para se enebriarem ainda mais. 
Não sabiam como foram parar da Liberdade à Consolação, os dois compartilhavam um momento de euforia - e uma garrafa de vinho, que ambos odiavam, mas era o que tinha de mais barato no posto de gasolina que encontraram no meio do caminho. Fizeram o trajeto caminhando, conversando, como se não fosse quatro da manhã e não houvesse possibilidade alguma de assalto ou coisa pior. Graças a D… Graças ao acaso, de não terem encontrado ninguém mal intencionado no percurso, nada aconteceu além de um afogamento: caminhavam de mãos dadas, como se tivessem intimidade estabelecida há anos, e procuravam por um hotel. Abraçavam-se a cada parada para atravessar a rua e se distraíam com calorosos e alcoolizados beijos. Subconscientemente, acreditavam, de maneiras diferentes que apenas o sexo amenizaria a paixão explosiva que emergia cada vez mais forte e devastadora. Enfim entraram num quarto e o que sentiram durante a noite toda - desde o "Você tá sozinho?" até o beijo de despedida na manhã seguinte - ecoou por tanto tempo quanto durou a paixão, o amor e a saudade.
Após se jogar nos braços d'Ela e antes de se entregar a Hipnos, pegou o chaveiro e jogou dentro da bolsa d'Ela, aberta e jogada no chão.
Acordou no meio da noite, na verdade, o sol já gritava lá fora, acendeu um cigarro e observou o corpo daquele que teria potencial para ser alguém em sua vida e pensou na despedida que deveria acontecer em seguida. Terminou o cigarro, alcançou sua bolsa, seu bloco de notas e uma caneta, "de todas as profissões do mundo, tinha que aparecer outro jornalista", riu sozinha e escreveu algo para o rapaz. Deitou-se novamente e cochilou por duas horas ou menos. Queria continuar ali, queria continuar com Ele, mas precisava sair.
Sob seu celular no criado-mudo, havia uma nota de vinte, outra de dez, e um pedaço de papel:
“Precisei partir.

O dinheiro é minha parte pra pagar o quarto.

Meu telefone: […]
Mande notícias.”

2015/10/05

Cabou (Não tenha dó)

Não lembro se estávamos em uma de nossas camas ouvindo a chuva ou em uma praça sob o pôr do sol, nem se estávamos bêbadas ou chapadas, nem se seu corpo estava nu, coberto pelo edredom azul claro, ou com pedaços de grama, ao lado do meu e nós acompanhadas do silêncio que não dizia - nem mesmo implicitamente - que havia algo errado, porque realmente não tínhamos do que reclamar em relação ao nosso relacionamento naquele dia específico. Ao menos essa era a impressão que eu tinha, e olha que eu tinha um sensor bastante preciso para identificar problemas entre nós. Na verdade, nosso porre durou tanto tempo, mais do que eu conseguia imaginar que era capaz de me manter ébria e viva, que já não sei se este específico episódio ocorreu de uma vez só, com introdução, desenvolvimento e conclusão (e referências bibliográficas), ou minha memória mantém apenas uma colagem das diversas vezes que conversamos sobre isto: o fim. O terceiro e último ato de nosso romance dramático com extensos períodos cômicos, leves e saudáveis, como já deixei a entender: não sei se começou sob o céu nublado da cidade ou o teto branco de um quarto, apenas mais uma das diversas incertezas que me assolam agora, depois do adeus, mas lembro que a trilha-sonora começou silenciosa, contemplativa, como o prelúdio de Tristan und Isolde, e seguiu em um crescendo, tornando-se cada vez mais ruidosa, como uma caixa de som estourada reproduzindo We’re No Here. Perdi o roteiro completo da cena, a primeira fala se perdeu no breu da memória, hoje resta apenas o enorme vazio que ela deixou, como se eu tivesse um braço fantasma, apenas a sensação de ainda ter algo que não existe mais. Quer dizer, ela ainda existe, mas não aqui. Não é que eu a queira de volta, mas ainda dói.
Um discurso que repeti tantas vezes com seu consentimento - ao menos, ela dizia que concordava, mas hoje entendo que talvez fosse apenas para não me irritar, conhecendo a facilidade para eu cismar com quem me contradizia -, consistia, resumidamente, em aceitação e inevitabilidade de um término. Acontece e não há nada que se possa fazer para evitar, apenas adiar. Talvez nós tivéssemos adiado despropositalmente, acomodadas pela calma porém venenosa rotina. De tanto que insisti nessa fala, talvez sua mente tenha se convencido, ou se deixado vencer pela exaustão, que o fim estaria ali, no próximo instante. Mas eu não esperava que fosse justamente quanto estávamos tranquilas.
Chega uma hora que cansa, chega uma hora que chega, a partir de um dia qualquer, quando menos se espera, toda e qualquer imperfeição, espera, ignore essa palavra inexistente, melhor dizendo… Todo e qualquer detalhe que incomodava mas era ignorado passa a ser algo repulsivo, e até mesmo o que mais lhe agravada na pessoa se transforma em ódio. A mordida no ombro quando dormíamos juntas, nós apertadas embaixo de uma pequena sombrinha - enquanto seus dedos subiam e desciam pelo meu braço, as discussões sobre qual o melhor livro da Gillian Flynn, o melhor episódio de Mad Men ou o melhor disco da Nina Simone - nunca chegávamos a um consenso em ambos temas -, ela me puxando para dançar quando eu não queria dançar, as unhas que ela roía para pegar no sono jogadas pelo chão dos quartos, todo o nosso universo particular de carinhos e esquisitices, eu aceitava tudo isso, ignorava a possibilidade que um desacordo sobre Artes, ou um desleixo higiênico, qualquer coisa, pudesse nos distanciar de nós mesmas. Eu acreditava que éramos maiores que isso tudo. Fomos gigantes até não sermos mais. Fomos intensas até não sermos mais. Fomos amantes...
Quando nosso roteiro enfim apontou para o desfecho definitivo, a raiva se apossou de mim, prejudicando minha memória, eu não queria aceitar que o que eu tanto previ desde o prólogo estava realmente acontecendo. Tentei, e continuo tentando, lembrar de todos os instantes precedentes ao “acho que está na hora de terminarmos”, nem me recordo quem disse isso, mas essas palavras foram ditas e permitiram que toda uma onda de frio e vazio invadisse meu litoral até então ensolarado e repleto de vida. Se eu ainda conseguisse descrever em detalhes nosso último dia juntas, escreveria algo muito mais bonito, visceral, dilacerante, sensível, qualquer coisa diferente desse relato incompleto de uma memória destroçada, arruinada, abandonada nos escombros de uma despedida inevitável. Assim como nossa história poderia ter ido muito além do dia de sua morte - do amor, não da mulher que o despertou, ela continua viva, não sei onde nem com quem-, ser algo completamente diferente; esse conto teria potencial para continuar por muitas páginas, tornar-se uma novela, um romance, nossa Comédia Humana, mas, como não sei cuidar de amores nem de rascunhos, apenas os abandono, por mais que pudessem ser algo maior que meu pessimismo seja capaz de imaginar. Tanto na escrita quanto na vida, que são quase a mesma coisa para mim, eu me perco de uma maneira tão confusa e definitiva que fica difícil convencer alguém a insistir, persistir, retornar, o que seja, em mim. Sinto saudade daquela que se deitou ao meu lado para concluirmos que deveríamos ter um fim naquele exato momento, e deixo ela, a saudade, me abraçar, me corroer, me matar pouco a pouco até que eu renasça em outro amor e deixar o ciclo fluir novamente.