2015/10/05

Cabou (Não tenha dó)

Não lembro se estávamos em uma de nossas camas ouvindo a chuva ou em uma praça sob o pôr do sol, nem se estávamos bêbadas ou chapadas, nem se seu corpo estava nu, coberto pelo edredom azul claro, ou com pedaços de grama, ao lado do meu e nós acompanhadas do silêncio que não dizia - nem mesmo implicitamente - que havia algo errado, porque realmente não tínhamos do que reclamar em relação ao nosso relacionamento naquele dia específico. Ao menos essa era a impressão que eu tinha, e olha que eu tinha um sensor bastante preciso para identificar problemas entre nós. Na verdade, nosso porre durou tanto tempo, mais do que eu conseguia imaginar que era capaz de me manter ébria e viva, que já não sei se este específico episódio ocorreu de uma vez só, com introdução, desenvolvimento e conclusão (e referências bibliográficas), ou minha memória mantém apenas uma colagem das diversas vezes que conversamos sobre isto: o fim. O terceiro e último ato de nosso romance dramático com extensos períodos cômicos, leves e saudáveis, como já deixei a entender: não sei se começou sob o céu nublado da cidade ou o teto branco de um quarto, apenas mais uma das diversas incertezas que me assolam agora, depois do adeus, mas lembro que a trilha-sonora começou silenciosa, contemplativa, como o prelúdio de Tristan und Isolde, e seguiu em um crescendo, tornando-se cada vez mais ruidosa, como uma caixa de som estourada reproduzindo We’re No Here. Perdi o roteiro completo da cena, a primeira fala se perdeu no breu da memória, hoje resta apenas o enorme vazio que ela deixou, como se eu tivesse um braço fantasma, apenas a sensação de ainda ter algo que não existe mais. Quer dizer, ela ainda existe, mas não aqui. Não é que eu a queira de volta, mas ainda dói.
Um discurso que repeti tantas vezes com seu consentimento - ao menos, ela dizia que concordava, mas hoje entendo que talvez fosse apenas para não me irritar, conhecendo a facilidade para eu cismar com quem me contradizia -, consistia, resumidamente, em aceitação e inevitabilidade de um término. Acontece e não há nada que se possa fazer para evitar, apenas adiar. Talvez nós tivéssemos adiado despropositalmente, acomodadas pela calma porém venenosa rotina. De tanto que insisti nessa fala, talvez sua mente tenha se convencido, ou se deixado vencer pela exaustão, que o fim estaria ali, no próximo instante. Mas eu não esperava que fosse justamente quanto estávamos tranquilas.
Chega uma hora que cansa, chega uma hora que chega, a partir de um dia qualquer, quando menos se espera, toda e qualquer imperfeição, espera, ignore essa palavra inexistente, melhor dizendo… Todo e qualquer detalhe que incomodava mas era ignorado passa a ser algo repulsivo, e até mesmo o que mais lhe agravada na pessoa se transforma em ódio. A mordida no ombro quando dormíamos juntas, nós apertadas embaixo de uma pequena sombrinha - enquanto seus dedos subiam e desciam pelo meu braço, as discussões sobre qual o melhor livro da Gillian Flynn, o melhor episódio de Mad Men ou o melhor disco da Nina Simone - nunca chegávamos a um consenso em ambos temas -, ela me puxando para dançar quando eu não queria dançar, as unhas que ela roía para pegar no sono jogadas pelo chão dos quartos, todo o nosso universo particular de carinhos e esquisitices, eu aceitava tudo isso, ignorava a possibilidade que um desacordo sobre Artes, ou um desleixo higiênico, qualquer coisa, pudesse nos distanciar de nós mesmas. Eu acreditava que éramos maiores que isso tudo. Fomos gigantes até não sermos mais. Fomos intensas até não sermos mais. Fomos amantes...
Quando nosso roteiro enfim apontou para o desfecho definitivo, a raiva se apossou de mim, prejudicando minha memória, eu não queria aceitar que o que eu tanto previ desde o prólogo estava realmente acontecendo. Tentei, e continuo tentando, lembrar de todos os instantes precedentes ao “acho que está na hora de terminarmos”, nem me recordo quem disse isso, mas essas palavras foram ditas e permitiram que toda uma onda de frio e vazio invadisse meu litoral até então ensolarado e repleto de vida. Se eu ainda conseguisse descrever em detalhes nosso último dia juntas, escreveria algo muito mais bonito, visceral, dilacerante, sensível, qualquer coisa diferente desse relato incompleto de uma memória destroçada, arruinada, abandonada nos escombros de uma despedida inevitável. Assim como nossa história poderia ter ido muito além do dia de sua morte - do amor, não da mulher que o despertou, ela continua viva, não sei onde nem com quem-, ser algo completamente diferente; esse conto teria potencial para continuar por muitas páginas, tornar-se uma novela, um romance, nossa Comédia Humana, mas, como não sei cuidar de amores nem de rascunhos, apenas os abandono, por mais que pudessem ser algo maior que meu pessimismo seja capaz de imaginar. Tanto na escrita quanto na vida, que são quase a mesma coisa para mim, eu me perco de uma maneira tão confusa e definitiva que fica difícil convencer alguém a insistir, persistir, retornar, o que seja, em mim. Sinto saudade daquela que se deitou ao meu lado para concluirmos que deveríamos ter um fim naquele exato momento, e deixo ela, a saudade, me abraçar, me corroer, me matar pouco a pouco até que eu renasça em outro amor e deixar o ciclo fluir novamente.

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