Querida personagem,
Toda e qualquer característica física sua será desconsiderada e ignorada nos seguintes parágrafos - de mais uma carta que você não quer ler. Os longos cabelos castanhos, que, repentinamente, ficaram acima da nuca, os olhos tão instáveis quanto o humor, ora verdes, ora castanhos, a pinta no pescoço que formava uma constelação com outras espalhadas pelo corpo, os três dentes frontais-inferiores levemente inclinados para frente devido a insistência em usar chupeta até os seis anos, a cicatriz na mão, resultado de um acidente envolvendo piso molhado e copo de vidro, as olheiras cada vez mais profundas e simultaneamente entristecedoras e encantadoras (pois, de um modo muito muito subjetivo, mostram uma fração da sua profundidade, fração magnética, que me atrai - ou atraía, não quero deixar rastros de um possível resquício de desejo, apesar de sempre deixar aonde quer que eu vá ou o que quer que seja que escreva) - para o núcleo de sua existência [passando pelas diversas camadas de seu planeta numa velocidade maior que aquela necessária para me destruir quando você disse que (você sabe, não tenho forças para repetir, mesmo em prosa, suas palavras naquela tarde)… voltando a carta:] cuja temperatura pode me dilacerar antes mesmo de encostar nele. Enfim, tudo o que poderia causar algum tipo de encanto e/ou admiração deve ser repelido tanto deste texto quanto de minha mente, pois os gestos e gostos tiveram maior relevância, mas, seja a essência, aparência ou qualquer outra caraterística, não importa mais. Não deveria importar, mas contradição corre solta.
Hoje, apenas restam o rancor e a vontade de encontrar uma falha na linha espaço-tempo para retornar à estação de trem e tomar outra decisão que não escolher ficar com meu pai ou partir com minha mãe… Espera, não, essa é outra história, não a que está sendo relembrada a fim de causar em mim a mesma repulsa que há em mim (ou deveria existir). Não que de fato haja alguma gota de repulsa em minha língua, garganta ou qualquer lasca de minha carne, o contrário do que essa carta tenta dizer. Tentar, afinal, nunca condiz com a intenção em si. Não sei mais do que estou falando, certamente prolongo as palavras para de alguma forma te fazer gastar mais tempo comigo através minhas palavras. Percebe como podemos manipular o tempo? O tempo alheio, de mudar toda a trajetória espaço-temporal de uma pessoa ao simplesmente gastar seu tempo com algo que você poderia evitar. É óbvio que já percebeu que me perdi - como sempre desde sempre, mas de um jeito diferente de como me perdia ao seu lado - de minhas intenções no primeiro parágrafo. Escrever impulsivamente em fluxo de consciência causa o entendimento de como as vontades fluem, alternam-se, desaparecem e ressurgem em questão de poucos minutos. Resumindo o assunto que já se perdeu, gostaria de ter feito outra coisa, não há certeza em relação ao dia certo para tal encruzilhada surgir a minha frente. Insistir ou desistir, melhor dizendo, seguir para longe de quem te despreza ou te mantém como um plano B, uma caixa de primeiros socorros. “Em caso de solidão, quebre o vidro”.
Saber que não seria o par romântico da protagonista, mas um personagem também importante de alguma maneira tanto para ela quanto para o resto da história. Não sei mais se apenas escrevo ou se sou personagem (não que seja inviável ser ambos) me fez separar todas as páginas desse romance para tentar reorganizá-lo de algum jeito que ficasse menos bagunçado, mas são tantas folhas que talvez precise de ajuda para transformá-lo em algo. Alguma coisa que me faça parar de escrever. E começar a viver. As tentativas de “começar” foram tantas em tantas novelas que se tornou menos doloroso escrever e escrever.
Com todo amor que pode haver na desgraça,
Personagem.
Notas (sobras) que não se encaixaram em linha alguma desta carta
Todas minhas roupas, toalhas e roupas de cama estão sujas de rancor, não conseguia limpar as manchas de ódio, talvez porque a máquina de lavar e a água também estejam sujas, contaminadas com um ódio infundado.
Não te amo, o amor que conservo imerge na personagem que co-escrevemos através de minhas idealizações e suas poesias.