Quando estou contigo, simplifico o entendimento sobre teus atos silenciosos ou pedidos inesperados, como quando, naquele quarto de hotel em Yacuíba, quando vivemos entre Bolívia e Argentina gravando aquele filme sobre um amor de fronteira, que terminava - tanto o filme quanto o amor - em um terremoto, você perguntou se podia deitar-se comigo, “por poucas horas”, você disse, mas acabou passando a noite toda a meu lado, respirando em um tom quase inaudível, fazendo com que eu me aproximasse do teu cabelo nunca pintado para ver se ainda respirava; ou aquela vez em que estávamos em um ônibus e você repousou sua cabeça sobre meu ombro, enquanto lhe falava sobre meu novo drama familiar, que ainda não havia nascido, mas já tirava-me o sono. Nessas ocasiões e em tantas outras, aprendia a não pensar demais no que você pretendia, pois, pelo seu excesso de silêncio, eu poderia interpretar em suas mensagens um sinal escondido nelas, se é que havia algum, e distorcer toda a sua verdade. O fluxo do tempo ventou na árvore de sentimentos que eu cuidava e só as folhas mais fortes resistiram, só os sentimentos mais sinceros sobreviveram. Depois de tanto tempo, como você não encontro ninguém, mas, desculpe-me, ainda é difícil não romantizar nossos caminhos, enfim, o quero dizer é que me permiti amadurecer e deixar espatifar no chão o masoquismo consciente que é sofrer por algo evitável. Esqueci o drama juvenil que li por tantos anos em algum lugar, talvez no vagão do metrô na nossa primeira semana morando longe da cidade que, para mim, hoje apenas conserva os anos de romances frustrados e traumas familiares.
É tudo muito incompreensível demais se visto de fora, porque as esferas afeto e amor romântico são satélites de um mesmo planeta e a anos-luz de distância parece que são a mesma coisa. O amor (licença para usar essa palavra que não seja em um roteiro) em mim por tudo que há em você é maior que qualquer montanha pela qual já sobrevoamos ou caminhamos, não há como medir, mas não é - talvez nunca tenha sido de fato (se foi, ilusão) - do tipo que faz correr na chuva de encontro a um beijo ou, sei lá, qualquer coisa tida como prova de amor romântico, porque o nosso romance acabou, mesmo que mal tenha sido um rascunho bagunçado, mas sobrevive o que mais importa: nós.
Parece confuso, e é, porque não sei escrever - imprimir num papel o fluxo de palavras que corre em minha mente enquanto você dorme pesadamente na cama de um hotel de nossa cidade natal. Estranho, não é?, sentir-se turista onde vivemos por vinte e alguns anos. Ficando nesse hotel da Inácio Lustosa, definitivamente, passamos a ser turistas de verdade nesse lugar.
[Fim da primeira parte que não é o primeiro capítulo mas um fragmento de um dia anos - muitos anos - após o início cronológico desta história em que quem a narra teima em assumir que não é um romance, que talvez tenha sido, porém é, sempre foi e continuará sendo até que não restem memórias ou registros materiais de tudo]
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Acostumei-me a sua quietude, agarrei-me a seus gestos de carinho e detestei-me por ter desistido de protagonizar um romance real contigo quando ainda era possível, passei a contentar-me apenas com a amizade, a cumplicidade e a carreira profissional juntos, neste quase mutualismo que é a nossa vida desde o momento que você aceitou dirigir aquela minha história sobre amantes/fumantes.
Há anos não conversamos sobre nós - diretamente - , apenas sobre tudo, não expomos os problemas possíveis de nossa relação, agora ou de anos atrás, únicos conflitos que exibimos são os vividos por nossos personagens, que muitas vezes coincidem com os que vivemos hoje ou antes, mas não conversamos nem sobre tais coincidências.
Meus monólogos nunca são claros, precisos, persuasivos, compreensíveis, concisos, transparentes, iluminados, descomplicados… Perco-me no meio do caminho e não consigo retornar a ideia inicial que me levou a falar ou escrever. Você sabe disso, entende tanto sobre mim que me assusta conhecer alguém com tantas armas contra mim, mas que nunca as usa.
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