2012/09/04

Dercy

Miguel tem problemas.


- Cara, qual é a tua?
- Que foi, Roberto?
- Miguel, a Clara...
- Que que tem?
- Meu Deus, velho, qual é o teu problema?
- Se você me dissesse o que tá rolando...
- Há quanto tempo vocês se conhecem?
- Uns quatro anos, por aí.
- Quem é sua melhor amiga?
- Ela.
- Quem te vê com mais frequência?
- Ela.
- Quem, tirando eu, sabe de todas as porcarias que você já fez.
- Ela.
- Quem, tirando tua mãe, já limpou tua sujeira?
- Ela...
- Então!
- Então o que, seu coisa?
- Cara, tem um negócio muito explícito no ar que você está censurando.
- É, tão explícito que ainda nem vi.
- A Clara está a fim de você!
- Claro, a Clara... Como?
- Cara... Você já viu ela pegando outros caras, mas não percebeu que ela anda na seca há um tempo?
- Ela ficou com o tal do Gilberto.
- Isso faz mais de um mês.
- Tá... E?
- Nos últimos rolês ela tem ficado na boa, sem se atrair pelos caras e rejeitado qualquer um que chegue nela.
- Ela me disse que não quer se estressar com romances de uma noite.
- Por que será? Ah... Será que ela tá a fim de se dedicar um cara só? Será que ela já não deu algum sinal disso?
- Ela tem intimidade o suficiente pra chegar na minha cara e assumir que está a fim de alguém. Se ela não fez isso, é porque ela não está a fim alguém!
- Cara, não é a mesma coisa. Não é fácil chegar pra uma pessoa que você conhece há milanos e falar esse tipo de coisa.
- Ela tá perdendo tempo.
- Ela não assumiu, mas já lançou vários sinais fatais.
- Que sinal?
- Numa festa, na minha casa, meio beba, ela perguntou a um inocente rapaz se ele nunca teve vontade de beijá-la.
- Velho, ela disse isso pra mim. Ela estava seiscentos por cento bêbada.
- E o que você respondeu?
- Mandei a besta dormir, porque ninguém mais estava aguentando a chatice dela.
- “O amor pode estar adormecido na amizade. Mas, assim que acordar, não pode voltar mais a dormir”.
- Que besteira é essa?
- Fabrício Carpinejar.
- E daí?
- Cara, todo mundo vê vocês dois como um casal. Estão sempre juntos. Dão-se muito. Tem uma intimidade gigantescamente gigante. Não ligam para o que o outro faz ou fez. Só o que falta é vocês ativarem o botão “namoro”. Vocês, não! Você!
- Ah, não... Roberto, todo mundo sabe o quanto eu gosto dessa maldita. Acho que depois da minha mãe, ela é a mulher mais legal que existe. Mas tenho que te contar uma parada...
- Você é gay.
- Não! Já te contei como conheci a Clara? Detalhadamente?
- Sim, mais ou menos, acho.
- Então, eu e sei lá mais quem lá na frente do finado bar do Credo... Bem na época que terminei com a Heloíza, eu estava louco pra conhecer altas gatas.
“Daí, ficava o tempo todo olhando pras multidões a procurar das mulher. Então, apareceu uma guria que me deixou meio travado. Uma mina muito gata. Estava meio perto, meio, fumando e conversando com uma galera. E eu, cê sabe, quando prego os olhos numa magrela, não me solto tão fácil. E eu olhava e olhava e olhava e pensava ‘vou chegar nela, vou chegar nela, mas, calma, ainda estou consciente demais pra isso.’
Continuei meu rolê. Trombei com ela dentro bar, fora do bar, dentro, fora, dentro, mas não tive moral pra chegar nela. Numa das saídas pra fumar, fiquei perto dela. Tipo, ao acaso do destino. Aí que eu fiquei ‘puts, vô chegar nela agora, vô chegar nela...’ Eis que ouço sua voz e desisto na hora. Aí numa outra noite, num outro bar, ela chegou em mim perguntando se eu estava no bar do Credo em tal data e blablabla. Começou a amizade sem maiores intenções, porque eu já tinha perdido a pira.”
- Espera... Ainda não entendi o motivo pra você não ter dado em cima da Clara.
- Velho, eu sei, tenho problemas, mas sou de cismar com voz feminina.
- Pelamor, que que tem de errado com a Clara? A voz dela é igual à de alguma ex?
- Parece a Dercy Gonçalves, velho! Voz de velha rabugenta.
- Não, calmaí, tem algum trauma com a Dercy?
- Não, cara, assim, me xingue o quanto quiser, mas tenho essa pira. Pra mim, sei lá, a voz tem importância na hora do flerte. Não tô falando de entonação, tô falando de voz mesmo, a natural de cada pessoa. E tem alguns tipos que me desagradam. Sei lá, essas meio escarradas, gritadas e agudas. Voz de bruxa da Disney, sabe?
- Falando em Disney, você é mais imbecil que o Pateta. Sério...
- Posso fazer nada.
- Tirando a voz, o que mais te impede de ficar com ela?
- Sei lá, acho que só a voz e o fato de que eu não quero jogar nossa amizade no lixo.
- Você tem medo de arriscar.
- Uma vez na friendzone, pra sempre na friendzone.
- “Friendzone é um mito”.
- Quem disse? 
- Uma amiga minha.
- Já pegou essa tua amiga aí?
- Não, não peguei.
- Então como você pode acreditar que a friendzone é um mito?
- Cara, a única amiga com quem namorei foi minha namorada por meia década, fora os dois anos antecedentes de amizade.
- Duvido que ela tenha sido a única. Por exemplo, a Dália é tua amiga mais gata, aposto que cê já foi a fim dela.
- Ela é a guria mais linda que já conheci na vida. Mas, não, credo, não ficaria com ela. Você não tem noção do quão doente aquela guria está por um outro cara aí.
- Acho que você é feio demais.
- Não, vá se ferrar. Ela é bem específica na hora de amar. Se um dia ela tivesse qualquer atração por mim, por menor que fosse, ela chegaria na minha cara e diria.
- Fala isso pra Clara. Fala pra ela fazer o mesmo que a Dália e me falar tudo na real.
- Não, a tua Clara funciona de outro jeito. Ela dispara sinais, abre espaço e deixa o resto por sua conta. Você é quem tem que agir. Seja pra dizer que quer nada, seja pra dizer que quer dar uma chance.
- E se der merda? E se eu magoá-la? E se isso for só coisa da tua loucura.
- Se, se, se... Manda o “se” se f#der. Vou cantar um pagode.
- Adoro pagode, ferinha.
- “Deixa acontecer naturalmente...”
- Por acaso, você conhece o resto da letra?
- Não, não conheço. E nem quero conhecer. Mas essa frase te serve de conselho.
- Sei lá... A Clara costuma pirar frequentemente. Talvez, seja só uma vontade mal pensada.
- O “talvez” é irmão do “se”. Você tem que ignorar essa família. Você é que tem que fazer alguma coisa. Sério, você ficaria com ela?
- Cara, ela é a coisa mais incrível de todos os universos. Tô falando dentre homens, mulheres, cachorros, esquilos, lugares e hambúrgueres.
- Sério?
- A Clara, meu Deus, a Clara é um negócio fantástico...
- Nossa, que bonito. Isso não é coisa que se costuma dizer de uma amiga. É coisa que aquele senhor de oitenta anos fala sobre seu casamento de mais de cinquenta anos.
- É, você está começando a me convencer que eu preciso dar um rumo nesse rolo.
- Se joga, louca!
- Mas e se não der certo?

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