2012/11/26

Devotas de um São Francisco alcoolizado


A amizade entre Naná e Lolita não se limitava às bebedeiras, mas era nestes momentos alcoolizados que elas mais se provavam amigas. Conheceram-se na matança de aulas no ensino médio e alimentam até hoje, cinco anos depois, uma relação inabalável. Obviamente, a cerveja fez com que elas vivessem alguns desentendimentos, que eram resolvidos assim que a ressaca terminava.
A Rua Trajano Reis, situada no bairro São Francisco, era um templo para Lolita, Nana e mais uma tonelada de pessoas, que passavam lá horas bebendo, conversando e fazendo coisas legais ou não. Era o local perfeito para viver. Era o local perfeito para fugir. Era o local perfeito para esquecer.
Apesar de irem à Trajano todo santo dia, elas não se enjoavam do lugar. A diversidade de bares lá e nas ruas transversais era tão grande que impede as pessoas de se cansarem do lugar.
Alguns até diziam: “A Trajano é meu pastor e cerveja não me faltará.”
Ambas estavam em períodos decisivos em suas respectivas faculdades; provas, trabalhos e todo o resto, portanto ficaram quase uma semana sem ir pra Trajano a fim de se dedicarem aos estudos. Porém, era sagrado que elas fossem pra lá sexta e sábado.
Enquanto os curitibanos que só saíam de casa para grandes eventos se preparavam para a tão estimada Virada Cultural, Nana e Lolita se recuperavam, a base de café, de mais uma sexta-feira muito louca. Elas não eram a fim da programação de tal acontecimento. Até porque a Trajano não estava incluída no calendário oficial. Mas, como a Trajano era quase que uma religião para muitos, alguns espertinhos organizaram um negócio à parte: A virada só que não. Seriam shows o dia todo só de bandas locais. Não locais de Curitiba, locais da Trajano. Podia-se dizer que a Trajano era musicalmente emancipada do resto da cidade.
Lolita e Nana não eram groupies, longe disso. Detestavam essa classe. Mas, elas possuíam o dom de encantarem os caras de banda. E essa virada seria meio que uma reunião de todos esses ex, pois suas bandas tocariam lá. As duas não ligavam muito para isso, só sentiam nojo das meninas escrotas que se jogavam sobre tais rapazes. Não as agradava saber que esses moços, que já as amaram eternamente durante uma noite, aceitavam ficar com gurias desesperadas tão sem graça.
Perto das quatorze horas, esvaziaram seus porquinhos, compraram seus cigarros e partiram rumo a mais uma jornada sem hora marcada. Elas só precisariam voltar pra casa na segunda de manhã, dia de provas na faculdade.
À caminho da Trajano, pararam num boteco pra aproveitar a promoção de cerveja. Beberam umas, levaram outra. Chegando na Trajano,  cumprimentaram alguns conhecidos, mantiveram distância de uns chatos e se instalaram próximo ao palco.
Em menos de cinco minutos, já estavam sendo observadas por possíveis affaires. Porém, ambas estavam a fim de rapazes impossíveis: um cara casado intensamente apaixonado e um gay. Contudo, o álcool foi as possuindo e criando vontade sobre outros homens.
Um antigo caso de Lolita estava observando Nana, que não deu bola e respeitou um antigo trato entre as duas de não reciclar o romance da outra. O cara veio as cumprimentar, perguntou como elas estavam, obteve respostas secas, ficou quieto e foi tentar chegar em outra. As duas se entreolharam e sorriram discreta e maliciosamente. Era quase que um vício desprezar rapazes.
Começou o show de uma banda que elas queriam ver, mas a falta de cerveja as fez correr atrás de um lugar barato. Acenderam seus cigarros e partiram em busca de mais álcool. No caminho, dialogaram sobre as pessoas permeavam a Trajano e sobre como elas conseguiriam sobreviver lá assim que o dinheiro acabasse:
- Por mais o Norman seja... O Norman... Acho que, se eu chegar com jeitinho, ele nos consegue uns tiros. – disse Naná.
- Bom, você que sabe. Topo tudo pra ficar louca.
- Tudo, Lolis, tudo mesmo?
- Claro... que não.
Logo encontraram bebida barata e voltaram ao show. O calor estava grande, mas, pra sorte delas e do resto, a rua é cercada por prédios com tamanho suficiente pra ocultar o sol depois das três da tarde. Pegaram o show da metade pro final, suficiente pra dançar até cansar, felizmente, sem suar.
O show terminou e deu lugar a uma discotecagem de Soul Music. Naná e Lolita não costumavam ouvir em casa, mas adoravam dançar esse tipo de música. Até porque não era algo difícil de ser dançado, ainda mais com o auxílio da cerveja.
De longe, Lolita percebeu que um cara estranho observava Naná. Tal rapaz apontou a moça para uma amiga, que meneou sua cabeça positivamente. Lolita estranhou e cochichou no ouvido de sua amiga:
- Olha aquele cara bizarro lá no canto, ele tá te querendo...
Naná riu e respondeu em baixa voz:
- Ô, sua retardada, não é um cara. É a Mia.
Surpresa, Lolita cochichou:
- Meu Deus, ela tá parecendo um cara...
- Cê não sabia que ela gosta de meninas? – indagou Naná.
- Tá explicado o visual dela então. Mesmo assim, acho que ela tá te querendo. – disse Lolita dando uma cotovelada em sua irmã de álcool.
- Puts, mas ela não faz meu tipo.
- Oi? Mas qual é o teu tipo?
- Homens. Além do mais, é amiga do Campos... – Naná, dizendo o nome do ex com nojo. - Definitivamente, não quero me misturar com o bando dele.
- Mas... – Lolita fora interrompida por alguém que chegou as assustando.
Era Norman, que apesar de ex da Naná, continuava amigo delas. Disse:
- E aí, senhoritas, como vão?
- Bem... – Responderam as duas cordialmente sem retrucar a pergunta.
- Vamos dar um rolê? – Disse o rapaz mostrando algo em seu bolso.
Naná e Lolita responderam sorridentemente:
- Vamos. – E foram à primeira aventura ilícita do dia.
Desceram até a Paula Gomes e encontraram um recanto. Enquanto Norman preparava a diversão, as duas fumavam seus cigarros ansiosamente. Há tempos elas não faziam o que estavam prestes a fazer. Após, enfim, matar a saudade, o trio se sentou na calçada e começou a dialogar sobre o ritmo do vento que os acariciava. A conversa se estendeu à temas estranhos, que sempre surgem quando há droga na mente dos interlocutores.
- Ô, meu, que horas são aí, por favor? – Perguntou Norman ao se levantar.
Naná não se importou em responder, pois Lolita já estava revirando sua bolsa em busca de seu celular. Enfim respondeu:
- Cinco e vinte...
Norman exclamou um palavrão e disse:
- Meninas, eu tenho que ir, minha banda vai tocar em dez minutos. Cês vão ficar aí?
Ambas negaram e seguiram o rapaz.
De volta a Trajano, Naná furiosamente reclamou à Lolita:
- Estamos sem cerveja!
- Isso é um grande problema. – Lolita pegou Naná pelo braço. – Vamos comprar mais!
Ao chegar no mesmo bar que compraram cerveja antes, se depararam com a resposta do dono:
- Meninas, todas as cervejas estão quentes, mas... - Mal ouviram o que o homem disse, agradeceram e saíram a procura de outro bar.
Chegaram a outro e se frustraram ao ver que lá só havia a pior cerveja do mundo. “Nem a pau que eu tomo isso”, disseram ao sair.  Iniciaram, então, uma jornada em busca de cerveja boa e barata.
Chegando ao sexto bar, encontraram um amigo junkie e o questionaram:
- Tem cerveja aqui ou cê já tomou tudo, Charlie?
- Já tomei tudo. Tá tudo quente agora.
Sabendo o que Charlie fazia nas horas vagas, Naná perguntou:
- Mas cê tem alguma outra coisa aí?
- Não, aqui não. Mas vamos dar uma volta, que eu já arranjo.
Acompanhado de dois amigos, Charlie levou as meninas aonde se fornecia de suas ilegalidades. Encontraram o que queriam, desfrutaram, viajaram e uma hora depois estavam de volta a Trajano.
Cada vez mais loucas, as músicas se tornavam mais fáceis e interessantes para se dançar. Elas já não queriam rapazes, só desejavam ficar lá tirando uma pira nas linhas do Soul.
Entre bandas e a discotecagem, elas davam voltas a procura de cerveja.
A última banda começou a tocar e as moças começaram a se perguntar sobre que fariam após esse show. Aproveitaram as lentas baladas para dançarem com seus copos. Apresentação encerrada e elas ainda não haviam decidido aonde ir. Ficaram lá até o lugar esvaziar e Norman aparecer com mais um passeio.
Após a caminhada, as meninas se despediram de Norman e se encaminharam à área nobre da Paula Gomes.  Deram uma voltinha por lá e, a procura de cigarro, chegaram numa moça, que lhes deu um que elas odiavam. Pegaram o presente, saíram andando e foram abordadas por um rapaz que disse:
- Moças, vocês têm um cigarro?
- Só tenho esse aqui, mas se quiser trocar... – disse Lolita assim que avistara o que o rapaz segurava.
- Pode ser, mas vocês têm seda? - disse o moço já fazendo o escambo.
- Pode deixar que a gente dá um jeito. Obrigada!
Despediram-se do cara e, já que na Paula havia nada de interessante, foram andando sentido Trajano. Lá, também, nada demais. Resolveram apreciar, na esquina da Inácio Lustosa, o presente que receberam. Mal terminaram o momento de degustação, Norman aparece novamente as chamando para mais uma aventura.
Já era quase uma da manhã e elas, bem loucas, estavam no banheiro de um bar lendo as frases na parede, quando Naná perguntou:
- Quanto de grana cê ainda tem?
- Zero vezes zero... – respondeu, tristemente, Lolita – E você?
- Haha, pega o que você tem e multiplica por zero também.
- E agora, o que a gente faz?
- Não sei, vamos na Trajano ver se alguém nos paga uma béra.
Encontraram ninguém e, deprimidas, sentaram-se. Refletindo, cada uma consigo mesma, como era bom viver deste jeito alucinado, ficaram lá até os efeitos passarem e a vontade de ir pra casa chegar.
Algumas pessoas estranhavam esse estilo de vida, mas Naná e Lolita estavam satisfeitas. Não ostentavam coisas impossíveis. Contentavam-se em ficar na Trajano vivendo coisas que a televisão não retratava. Fazendo de suas vidas um conto de João Antônio ou uma foto de Nan Goldin.

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