- Você quer bolo de chocolate?
Atendi o telefone e logo ouvi a pergunta, mas, ao invés de
perguntar quem era imediatamente, preferi tentar reconhecer a voz. Estendi o
diáologo:
- Quero, mas cadê?
- No bolso do casaco da Marília, que tá pendurado na cadeira
– disse a voz feminina, que ainda não conseguia reconhecer. Também não lembrava
de conhecer nenhuma Marília.
- A Marília! Tia da minha mãe! Eu sei que você quer bolo,
pega lá.
Comecei a filtrar na minha cabeça todas as mulheres que
tinham uma voz semelhante a essa do telefone e cheguei a três candidatas. Ao
invés de perguntar quem era, insistia em tentar adivinhar. Podia ser minha
prima, mas ela não tinha nenhuma tia-avó chamada Marília. Talvez fosse minha
colega da faculdade, mas a voz do telefone não tinha sotaque catarinense.
Então, na sala, percebi uma terceira voz, que não me era
conhecida. Fui até lá e vi quem era que estava tomando café com minha mãe e minha
irmã. Ainda com o celular em mãos, cumprimentei-as e logo percebi quem era a
voz do telefone.
Eu estava a horas sob o sol incomum que resolveu visitar a
cidade. Minhas costas já estavam queimando por mais que eu estivesse de camisa
e regata. Indo em direção a lanchonete da praça, onde compraria uma cerveja
para refrescar meu grupo e eu, vi um grupo de meninas sentadas em frente a loja
vizinha, que estava fechada. Só olhei, porque faziam barulho.
Tempo depois, quando o sol estava a 90º e insuportável
demais, resolvi puxar o grupo pra sombra e nos sentamos ao lado das meninas
barulhentas, que naquele momento comiam um bolo de chocolate todo derretido por
causa do calor. O espaço para sentarmos era limitado e metade das pessoas que
estavam comigo tiveram que se sentar no chão, inclusive eu.
Sentei de modo que conseguia ver perfeitamente uma baixinha
de cabelos curtos e piercing no nariz. “Que olhos!”, gritei a mim mesmo. Ela
era a única das meninas que não estava comendo, apenas observava o movimento na
praça com olhos cansados. Os olhares iam de lá para cá, da esquerda para a
direita e quando vinham a minha direção, eu disfarçava.
Eu também estava tão cansando por causa do calor, que não me
empolgava pra conversar sobre coisa alguma com meus amigos. Eles falavam sobre
arte performática e o russo que ficou nu em Moscou, isso não me interessava.
Meu cansaço não me permitia nem tentar elaborar um diálogo com a moça.
As amigas dela, que estavam alcoolicamente alteradas, derrubaram
o bolo de chocolate, que mais parecia uma calda, no colo da
moça-olhos-cor-de-mel, justo sobre sua camiseta clara. Ela ficou irritadíssima,
xingou-as até a morte e, não sei porquê, olhou para um cara que estava sentado
próximo a ela, todo hipnotizado pela cena. Ela gritou:
- Você quer?
Era outono, época em que todas as estações do ano visitavam
a cidade na mesma semana, no mesmo dia às vezes. O que fazia com que minha
rinite atacasse brutalmente. Isso me obrigava a carregar um pacote de lenços
no bolso a fim de evitar qualquer constrangimento público relacionado a coisas
que saíssem involuntariamente do meu nariz.
Ao conseguir desviar do olhar da moça e focar em sua
camiseta suja de bolo de chocolate, puxei meu pacote de lenços e apontei à
garota.
Não sei o que deu nela, mas o olhar raivoso se transformou
em até-hoje-não-consigo-explicar-o-que-foi-aquele-olhar-pra-mim. Hipnotizada,
levantou-se, veio a mim, pegou o pacote de lenços e disse:
- Vem, me ajuda a limpar.
Nisso, tanto o meu grupo quanto o dela, estavam imóveis e
mudos. Levantei sem desviar meu olhar, percebi que sua altura batia nos meus
ombros e perguntei:
- Onde?
- Por aí – respondeu.
Para evitar que ela se constrangesse mais, tirei minha
camisa e dei a ela:
- Meu, tó, veste isso aqui.
- Eu preciso passar em casa trocar de roupa, depois a gente
pode dar uma volta por aí, pode ser?
Fomos até lá e não saímos mais naquele dia. Passamos a noite
toda trocando olhares, compartilhando experiências frustrantes de vida e deixando
marcas em nossas almas. Então parti, sem trocar números ou nomes. Queria que
tudo isso ficasse marcado em mim sem a necessidade de repetição. Quanto mais as
coisas se repetem, mais enjoam, mais perdem a graça. E eu definitivamente não queria
que o gosto daquela moça saísse de mim. Eu sei que poderíamos ter dado
muitíssimo certo. Era uma incógnita que eu preferi não decifrar.
Nesse mesmo dia do acidente com o bolo de chocolate, ao entramos na casa, conheci sua mãe, que pareceu não ter se importado com o fato da filha ter
levado um estranho pra casa. Uma senhora muito simpática que me ofereceu
empadão de frango, mas rejeitei respondendo:
- Não, obrigado, mas eu não como carne.
A moça olhou pra mim surpresa dizendo:
- Sério? Eu também. Há quanto tempo?
Deixamos a senhora sozinha na cozinha e começamos a conversar
sobre vegetarianismo.
Eis que quem estava com minha mãe e minha irmã era a tal
senhora que havia oferecido empadão de frango. Quem estava no telefone me
oferecendo bolo de chocolate era a moça dos olhos-cor-de-mel. Mas o que eu não
sabia e morria de curiosidade para saber era:
Quem é Marília?
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