Assim que o filme terminou, decidiu sair para comprar comida. Entre as duas quadras que separavam seu apartamento da
barraca de cachorro quente, ficou pensando sobre o filme e como uma pessoa
viciada tem dificuldades para largar um vício. Não que a história ou seu
desfecho tivesse deixado o rapaz melancólico, mas o deixou pensativo. Ficou admirado com o encanto da atriz que encarnou a protagonista, sobre como algumas
pessoas que têm tudo conseguem se contentar com nada ou desejam se afundar em
coisas “ruins”. Não que estivesse nessa situação, mas ficou pensando.
Fez o pedido, trocou algumas palavras com a já conhecida
atendente e se distanciou para que outros clientes pedissem seus lanches.
No centro da praça onde ficava a barraca, havia um busto em
bronze da mulher que batizava o lugar e, perto dali, estava um cachorro olhando
todas àquelas pessoas comendo seus lanches. O animal parecia faminto.
Então o rapaz olhou para a lixeira ao seu lado e recolheu alguns
restos de comida para dar ao cão. Sentou-se ao lado do animal que mal respirava
e engolia tudo como se fosse sua última refeição. Talvez fosse. Eis a vida de
um andarilho na metrópole egocêntrica.
O rapaz então se sentou junto ao cachorro ao pé do monumento
e ficaram os dois ali observando a noite, as pessoas. De repente, o rapaz se
levantou, foi à barraca e perguntou se seria possível que lhe dessem duas ou
mais vinas para que ele alimentasse o cachorro.
Depois do banquete, o cachorro seguiu seu rumo incerto. O
rapaz então começou a andar pela praça a espera do pedido, mas havia muita gente na frente. Na barraca, havia uma televisão, que chamou a atenção dele.
Não foi o programa a ser exibido que o paralisou, foi a
moça que estava sob o aparelho esperando seu pedido. Olhos verdes, cabelos
loiros e cacheados, camiseta verde com “India” e uns desenhos estampados. Assim
como ele reprimia sua ansiedade roendo unhas, ela parecia fazer o mesmo ao
mexer na corrente de prata que repousava em seu peito.
Porém, o que mais chamou a atenção do rapaz na moça foi que
ela era incrivelmente parecida com a atriz do filme que ele recém assistira. Um dos
personagens do longa definia a protagonista como “olhos melancólicos” e isso
reforçava a semelhança entre as duas mulheres. Além de não parar de mexer em
sua corrente, seus olhos estavam dispersos, livres da gravidade, iam e viam a
todos os cantos da barraca, da praça, das pessoas. De vez em quando, a rota do
olhar colidia com a do rapaz, que tinha dificuldade em prender o foco a outra
coisa que não fosse a moça.
Ele não podia chegar nela. Ouvindo as conversas, descobriu
que as duas mulheres que estavam ao seu lado eram sua mãe e sua vó. As três se distanciaram da barraca e se recostaram sobre o carro delas. Com a demora para o pedido sair, as duas mais
velhas entraram e se sentaram. A mais nova permaneceu encostada no veículo e,
de tão ansiosa, tirou a corrente e a repousou sobre o próprio rosto como se
fosse um bigode. O acessório quase caiu e ela riu sozinha. Quer dizer, o rapaz
também riu consigo mesmo da cena.
O observador estava de braços cruzados, e, ao ser flagrado
pela moça e perceber que ela estava na mesma posição que ele, deixou um sorriso
escapar. A moça disfarçou olhando para a calçada e sorriu. Tímida, parecia que
ela queria que o rapaz visse o sorriso que lançou. Ela gostava de sentir que
pessoas percebiam sua existência, já que ela não era explícita a ponto de
gritar literalmente que existia (ou não queria ser vista). Com o canto do olho, ainda
sorrindo, mirou o rapaz, que ainda a observava também sorrindo.
Ela queria pega-lo pela mão e levar os olhares e sorrisos
tímidos a lugares que só os dois pudessem desfrutar.
Ficaram ali se comunicando silenciosamente por um bom tempo.
- Pedro! Dois simples pra viagem.
Pegou os lanches e partiu. Não olhou para trás,
mas sentiu (e sorriu para si mesmo ao acreditar na possibilidade de) que a moça
estivesse o observando a distância. Nunca mais se encontraram novamente. Ele se
casou duas semanas depois e foi morar em outra cidade. Ela morreu em um
acidente de ônibus em um feriado santo.
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