2014/05/31

Magnético ou Perdida na escuridão (em pedaços)

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Eu estava na lanchonete com meu namorado, mas só meu corpo estava. Minha mente não estava ali, eu não queria estar ali. Ele me contava sobre seu trabalho, que estimava tanto, até mais que sua mulher. “Ano passado, atingi minha meta em menos de duas semanas”, ouvi ele dizer em uma das poucas vezes em que prestei atenção nas bobagens que soltava. Olhava para a rua, para o cruzamento vazio esperando que passasse algo interessante, o que não seria difícil já que o que eu tinha era uma pessoa irritante, da qual eu não sabia como me livrar, um terrível cheiro de gordura típico de lanchonetes do Centro e uma televisão exibindo a novela das sete, mais um motivo para eu odiar teledramaturgia. Foi quando me faltou ar e e o som de tudo sumiu, o mundo meio que parou quando lá na esquina oposta a da lanchonete onde eu estava avistei aquela pessoa do ônibus. Cruzou a rua diagonalmente como se viesse ao meu encontro e seus olhos miravam o chão, já que não havia trânsito para se preocupar. Ao passar em frente a lanchonete, levantou os olhos e os jogou diretamente em cima de mim. Sorriu. Um tiro a queima roupa. Sumiu, seguiu sua rota. Eu quis cair no chão, mas só minha alma fez isso. Se meus pulmões diminuíram ou o ar engrossou, não sei, só sei que faltou-me ar. Eu quis sair correndo atrás daquele ser tão… Pela direção que tomou, eu sabia exatamente aonde ia.

Peguei meu celular, ainda ignorando o que meu namorado dizia, mas soltando “sim”, “nossa”, “e aí?” etc, aleatoriamente, e mandei uma sms. “Amiga, vamos dar uma volta mais tarde?”, perguntei sabendo que ela aceitaria. Era só me despedir desse inútil que tinha que voltar para sua loja fútil e ir em busca daquela pessoa que tanto me tirava o sono. Eu não sabia exatamente o que queria, mas tinha certeza que sua atmosfera me forçava a ficar por perto, mesmo que só observando.

Minha procura começou no pequeno balcão do bar onde nos cruzamos uma vez, seguiu ao mezanino onde vi aquela alma repousar tão calmamente e nada. Voltei a calçada, onde a maioria dos clientes estava, caminhei até a esquina fazendo questão de olhar todos os seres que estavam lá e… nada ainda. Tinha me perdido de minha amiga, que logo surgiu acompanhada de uma garrafa de cerveja e dois copos. Começamos a beber e decidi contar a ela que estava cogitando a dar um término em meu namoro. Eu sabia que minha amiga diria que “ele só pensa nele mesmo, fica trabalhando todos os dias e você aí sofrendo sozinha…”
Preferi não citar o real motivo para aquele passeio pelo São Francisco, apesar de achar que estranharia de qualquer modo, já que não costumávamos sair às sextas-feiras. Eu queria guardar tal razão pra mim mesma. Quer dizer, eu nem sei se “razão” existia em mim naquela época. Eu queria sentir aquela pessoa dentro de mim.
Começamos a conversar e reclamar sobre a vida e, com tanta coisa pra falar sobre tudo, esqueci por um tempo do meu coração, que não estava comigo desde o primeiro dia que peguei ônibus com aquele ser humano que estava no das vinte e três horas sentado perto da porta quatro e que riu sozinho quando viu que não consegui chegar à porta a tempo de descer. Ignorei naquele momento e desci na estação seguinte. Não que essa pessoa tenha roubado meu coração todo imediatamente, mas, a cada novo encontro, a cada coincidência na escolhas de rotas e destinos, eu ficava sem um pedaço de mim.
Algumas cervejas depois, como faço sempre quando alcoolizada, comecei a soltar frases em outros idiomas. Encarei seriamente minha amiga, peguei-a pelos braços e disse:
- Oh my dog, je suis desoleé… - fiz uma pausa dramática - La amore c’è anche per chi non fa la doccia and i need to go to the bathroom. Au revoir, Shoshanna. - antes de me levantar e ir, dei um beijo na testa dela, que apenas riu e pediu mais cerveja.
A um metro dos banheiros, onde portas do feminino e do masculino eram vizinhas de parede, havia um banco que mais parecia um sofá de madeira. Havia uma pessoa sentada ali, demorei a reconhecer e travei ao perceber quem era. A pessoa que me roubou de mim mesma estava ali, sentada, encarando o chão. Surgiu das trevas, apareceu repentinamente naquele bar. Entrou em forma de ar ou personificado em outro semblante, não sei. Levantou o rosto, sorriu para mim e perguntou:
- Quer sentar? - dando espaço para que eu coubesse no banco.
Acho que demorei tempo demais para responder ou a pessoa que estava no banheiro masculino queria impedir esse contato assim que saiu do cubículo dando a vez pra pessoa que me entorpecia se levantasse, sem olhar para mim, e entrasse lá. Eu queria quebrar aquela porta, invadir aquele pequeno espaço, entrar naquela alma e repousar, mas a força daquele “quer sentar?” me deixou tão tonta que não consegui agir por um tempo. Logo o banheiro feminino ficou livre e entrei querendo descer pela privada e me deixar ser levada ao mar, sumir, afundar-me.
Aproximei minha cabeça a parede e ouvi:
- I’m going there... to see my father…
Demorou um pouquinho, mas então percebi que estava acompanhando a música que tocava no bar. A voz foi se distanciando e sumiu. Terminei e saí do banheiro com tanta pressa que quase me esqueci de lavar as mãos. Lavei-as e afundei meu rosto na pia. Quis que água levasse a confusão em mim pro esgoto. Sequei cara e mãos e saí com pressa.

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