2014/07/06

Chaves, barcos e amores


“Eu pensei
que morrer de amor fosse só

jeito de falar.”

Todo largado na poltrona, sorriu quando ela puxou seu braço ao fim de uma música. Aparentemente indignada, perguntou:
- Morrer de amor é algo tão… besta.
Pensou que o rapaz fosse concordar e replicar com algo que complementasse sua ideia. Não:
- Morrer a gente vai de qualquer maneira, mas acho que faz sentindo escolher um jeito que seja bonito. Morrer de amor… Sim. - sorriu novamente.
Logo o moço se calou para se concentrar no show que havia sido retomado enquanto ele terminava sua fala. Ela também emudeceu, mas não tanto pelo show, mais por espanto ao que seu par havia dito.
Não que ela fosse uma extrema pessimista em relação ao amor… Quer dizer, só um pouco. Era mais um distanciamento para evitar se machucar. De novo. Como se fosse uma alergia surgida depois do excesso. Amou demais anteriormente e as feridas coçavam até sangrar. Ela dizia que “o problema do amor é que ele tem uma chave-mestra das pessoas, que faz o ser abrir todas as portas de sua existência, sem deixar um cofre sequer seguro. Aí quando o amor acaba, quando ele finalmente parte… Deixa tudo aberto, aí entra vento, chuva, black bloc… Te deixa uma bagunça. Pra piorar, antes de sair, quebra todas as fechaduras e leva todas as cópias das chaves consigo".
Apesar das ideias, preferia não ataca-lo com isso. Não queria passar a imagem de que era uma rabugenta anti-sentimentalismo. Afinal, pelo contrário, era sentimental à sua maneira. Era difícil encontrar um tradutor que interpretasse seu jeito de sentir as coisas, as pessoas.
Já ele… Ele parecia não se importar com essa raiva dela. Aparentemente, sabia lidar com isso. Ou apenas era reativo demais para tomar as rédeas e pôr tudo em ordem entre eles. Algumas moscas repousavam sobre os olhos dos dois e não tinham coragem de tirá-las dali. Na verdade, ambos não se importavam em votar por uma liderança do relacionamento. Deixavam-se ir… Quando ele, dois centímetros mais baixo que ela, não alcançava o chão e começava a ser puxado pra dentro do mar, davam um jeito de voltarem juntos pra areia. Quando ela, Rainha das Vertigens, aproximava-se demais da beirada da torre, era enlaçada por uma corda ao corpo dele - se caísse, não estaria sozinha.
Sobre morrer de amor, ele queria cair, se afogar. Com alguém.
Sempre tão inseguro para decisões, refletindo quarenta e doze vezes antes de agir, temeu por muito tempo pensar em entrar na vida de alguém. Menosprezava-se demais. Não que fosse um ser miserável de ideias, sentimentos e demais itens básicos de sobrevivência social, mas possuía suas incoerências e maldades - que, para ela, não eram incômodas. Enfim, ele demorou tanto tempo porque a vontade de estar com alguém precisou crescer muito para derrubar o medo de se arriscar. Arriscou. Amou. Se perdeu. Desmoronou. Demorou mais tempo ainda do que antes pra encontrar um barco em que houvesse alguém disposto a remar apesar de alguns furos no casco. Sozinho, numa correnteza forte qualquer, acabou se enroscando com ela, também perdida na maré, e começaram a andar, nadar, voar juntos.
O rapaz acreditava que morrer de amor, sim, seria algo bonito, porém, apenas se enquanto estivessem no auge. E que o golpe que o abatesse fosse fortíssimo a ponto de fazê-lo apagar isento de dor. A queda, como o casal estaria no topo, teria uma brisa confortável. Na verdade, ele nunca refletira seriamente sobre morte amorosa. O rapaz apenas dissera aquilo por estar anestesiado pela companhia da moça. Não estava muito apto a reflexões concretas.
Assim que saíram do show, foram jantar, exageraram no vinho, foram pra mesma cama e morreram afogados num amor de consequências eternas geradas pela consumação carnal de duas almas. Uma criança comprara passagem pra esse cruzeiro no barco furado chamado Vida. O mundo parece ter dado voltas demasiadamente aceleradas que deixaram o casal tonto, mais que o normal, e precisaram de um tempo para se estabilizarem e reencontrarem o Norte. Ele acabara de ser efetivado na empresa onde estagiou antes de se formar; ela, admitida numa universidade estrangeira e… Surgiu então a suspeita de que precisariam arranjar barcos diferentes e seguir sozinhos. Decidiram morrer de amor. Afogaram-se juntos nos olhos da criança que nasceu trazendo respostas que o casal precisava. Foram os três morar no exterior e ele se tornou correspondente internacional de sua firma. “Morrer de amor não é de fato morrer, mas algo constante que vai acontecendo enquanto vivemos” foi o tema do Trabalho de Conclusão de Curso dela.
O cruzeiro dos dois, abandonado pela criança quando a mesma completou vinte anos e seguiu com seu próprio barquinho, foi interrompido e começou a naufragar sem chances de resgate quando surgiu o inevitável iceberg Morte, a morte mesmo, que não diferencia amor, câncer, ônibus ou qualquer outra coisa como causa. Primeiro, a dama, que teve um negócio envolvendo água nos pulmões. Não muito tempo depois, foi ele, que não morreu de amor, mas, ironicamente, de algo no coração.

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