Primeira vez que estive em seu quarto, “só pra ver uns filmes”, avisava o convite, ao entrar, espantei-me com o tamanho do lugar. Um rapaz tão alto, tão grande por dentro, tinha um espaço um tanto quanto minúsculo para repousar com sua alta estatura e sua cabeça tão lotada. Preferiu não apresentar-me ao resto da casa e, enquanto ele fazia sei lá o quê no banheiro, aliás, um quarto pequeno, mas uma suíte, comecei a estudar o ambiente.
Uma cama de solteiro, porém menor que as comuns, com um abajur que servia de suporte para um gorro preto preso a cabeceira; sobre um armário conjugado de duas portas e quatro gavetas, caixas , tênis e roupas atrás da porta; uma escrivaninha (que não combinava com o restante da mobília do quarto - único móvel além da cama-armário) repleta de papeis, um copo sujo de roxo (suco ou vinho?) e um computador. Sobre tudo isso, uma prateleira um pouco diferente. Vertical. Partindo da base e indo além da metade da coluna, livros ficavam um em cima do outro, até que começavam os dvds, também empilhados. Mais literatura do que cinema. Acho que a capacidade máxima já havia se excedido há alguns livros atrás. Tinha todo tipo de leitura, incluindo quadrinhos, histórias juvenis e uma trilogia sueca. Preso a dois livros, havia um pedaço de papel, em que pouco menos de cinco centímetro ficavam dobrados e presos entre livros e o resto da peça fazia uma curva perpendicular para que seguisse pela parede da coluna, com um desenho em vermelho de uma silhueta feminina acompanhada de “nadamerestaalémdetudo”. O mais estranho dessa coluna de livros, dvds e um desenho feito no verso de uma folha de um bloco de notas distribuído por uma empresa qualquer, eram dois cordões que saiam de baixo de diferentes livros. Sob a prateleira, presas à base, duas espécies de etiquetas de roupas com desenhos góticos, incluindo uma mula sem cabeça ou coisa parecida de ponta cabeça, e um post-it com uma lista que depois descobri serem títulos de filmes que ele pretendia de assistir.
Demorei a perceber que atrás da torre de arte, havia mais arte: um quadro de fundo preto com traços verdes, amarelos azuis e roxos. Era um desenho selvagem, silvestre, abstrato. Sem assinatura. Acredito que não era intencional deixar que esta pintura ficasse ocultada por livros e dvds, mas talvez não tivesse tempo de arranjar um prego e um novo local para o quadro.
Ele finalmente saiu do banheiro e nos arrumamos para assistir filmes em seu computador. Lá pelo fim do terceiro, dormimos antes que algum de nós ousasse colocar mais um. Não deu tempo. O sono estava com pressa. Dormimos nós dois juntos, abraçados e apertados numa cama tão pequena para tanta gente. Fiquei com as costas coladas na parede. Acordei pouco antes dele, que dormiu no lateral que dava para fora da cama, quase caindo de um metro de altura do chão, e fiquei observando o quarto novamente. Então vi uma folha saindo, escapando, também deitada entre os mínimos espaços, de dois livros. De olho e de longe, consegui averiguar que era um papel mais grosso. Da minha perspectiva conseguia visualizar apenas a face inferior, branca, com minúsculas manchas pretas. Fiquei curiosa para saber o que estava escondido ali. Uma carta, uma foto, não tive tempo de descobrir, pois logo ele acordou, levantamos e saímos.
Sabia que dele expirava certa inocência repleta de timidez, mas achei que tal condição mudasse em seu território, já que todos nossos outros encontros foram em locais públicos e abertos, impedindo-o que ele “me agarrase” à força. Pensei que ele fosse tentar me seduzir naquela noite. Estava enganada. Nada forçou e nada fizemos relacionado a nudez e suor. “Só quero fazer o que costumo fazer sozinho, só que com você ao meu lado dessa vez”, disse ele ao me convidar para conhecer, conforme sua própria descrição, seu “quarto que mais parece um calabouço mas, na verdade, é uma releitura contemporânea do quarto do Rodka com traços de hotéis japoneses minimalistas e dormitórios de naves espaciais como os daquele filme com a atriz que fez a Lisbeth”.
Não tive tempo de descobrir o que era aquele pedaço de papel na primeira ocasião em que estive lá, mas tive outra chance. Tempo depois, não muito, retornei. Novamente, ao chegarmos, tive de espera-lo fazer sabe-se lá o que no banheiro. Resolvi então tentar saber o que estava soterrado e escondido entre aqueles livros, mas seria trabalhoso desmontar aquela torre de coisas. Além de invasão de privacidade, convenhamos. Decidi parar por suspeitar que talvez fosse algo que ele realmente quisesse esconder. Talvez não. Tomei chá de impulso e comecei a desmontar o prédio. Peguei diretamente sob o livro superior a folha grossa que sustentava o restante de coisas que havia acima dele e levantei tudo. Susto. Tudo ao chão. Assustei-me com a saída repentina dele do banheiro e derrubei tudo que havia em minhas mãos. Abaixei a cabeça esperando que ele fosse surtar comigo e pedi desculpas. Ele veio em minha direção, abaixou a cabeça para me olhar nos olhos e deu um sorriso tímido.
- Tá com inveja da minha coleção, moça?
- Tô… - novamente pedi desculpas, constrangida - Eu só queria ver o que estava entre os livros.
- O que? - olhou para a prateleira curioso como se também não soubesse o que havia lá e pegou a folha - Nossa, isso! Nem lembrava - então me mostrou o que era.
Desenho de uma mulher em aquarelas azuis e amarelas num fundo branco. No rosto, um ar meio triste, meio blasé ou apenas indiferente. Morri de vontade de perguntar se a assinatura era de uma fantasma, de alguém que havia destruído seu coração ou coisa parecida, mas ele se antecipou:
- Comprei de uma conhecida que estava precisando de grana. No impulso.
- Pelo visto, você gosta de desenhos sem molduras… - disse apontando com o olhar ao “nadameresta…”
- Ah, esse é meu mesmo. Fiz durante uma aula entediante enquanto criava na cabeça uma história semelhante ao momento em que estava na minha vida.
- O que essa frase quer dizer?
- Olha... - tentou achar respostas encarando a parede, demorou mas continuou - Às vezes, isso há quarenta e doze anos antes de Confúcio, encontrei-me vazio, sabe?, sem ter o que me preencher, como se nada fosse capaz de fazer isso, mas aí pensei… Só me resta uma coisa: buscar de possíveis alternativas, mesmo que superficiais talvez, que…
- Preenchessem teu nada.
- Por isso esse tanto de livro e filme - encarando o desastre que cometi.
Começamos a juntar e empilhar seus pertences, logo tudo estava de volta a seu devido lugar. Filmes, sono, sonho, despertar, partir. Um ritual que, após o culto, me deixou um pouco anestesiada e saudosa, querendo repetir o quanto antes.
Próximo encontro não foi em sua casa, porque fomos ver uma estreia no cinema. Digo, pretendíamos. Chegamos lá e encontramos todas as sessões lotadas para aquele dia. Sentamo-nos num banco próximo a bilheteria e ficamos conversando até a hora que precisei ir pra casa. Minha. Sem ele.
Aí veio o fim de semestre para ambos e o clichê “não há tempo para nada além de seminários, resenhas, provas etc”. Ficamos um tempo distantes nos dedicando à vida acadêmica que tanto sono tira e tando estresse dá. Depois de algumas provas finais e notas lançadas, enfim, chegaram as férias e um cansaço do tamanho da Terra, que poderia ser abatido naquele quartinho esquisito.
Depois de alguns encontros em teatros, cinemas e bancos aleatórios, voltei à casa dele.
- Por que você demora tanto tempo no banheiro? - perguntei assim que entrou no quarto.
Ficou meio sem jeito, pensou, encarou o chão e respondeu:
- Tomo remédios contra ansiedade, então fico lá dentro até começar a dar efeito.
- Pra quê cê toma isso?
- Pra controlar impulsos.
Aquele assunto parecia lhe ser indigesto.
- Que impulsos?
- Nem eu sei direito, mas fiz coisas das quais me arrependo muito.
Encarei-o um tanto assustada. Não respondi. Até que ele continuou:
- Eu sou uma bagunça, moça, devia ter avisado antes. Sou problemático demais…
Interrompi assim que percebi em sua voz e em seu olhar certa aflição:
- Todo mundo é, cara.
Riu e contestou:
- Não, cê não sabe o que fiz.
Peguei-o pelos braços, encarei fixamente seus olhos e ordenei:
- Me conta, quero saber - então fiz o que me restava a fim de comprovar que ele estaria seguro comigo. Depois de um longo silêncio gerado pelo abraço que disparei, deixando ambos sem ar, começou a relatar seus traumas e supostos erros. Não poderia condená-lo por tais atitudes, não eu. Nem eram fatos tão graves, mas suficientemente pesados para serem carregados por um só ser, que dificuldade para lidar com determinados fardos.
Percebi que ele era muito maior que a capacidade que aquele quarto conseguia abrigar. Sua grandeza vazava pela porta e soterrava o prédio, a cidade. Soterrava-me. Apaixonei-me por essa inundação de timidez, ansiedade, filmes, traumas e desmoronamentos de tantas outras coisas. Terminamos a lista de filmes a serem assistidos daquela lista no papelzinho amarelo e começamos outras.
A partir desse dia no confessionário, comecei a ver nele exalar uma liberdade para falar o que lhe vinha em mente. Livre também ficou para não tomar remédio toda santa vez que eu visitava seu quarto. Livre para… Com licença… Retirem-se do recinto por gentileza. Não quero que ninguém veja o que acontece neste quarto assim que os créditos de qualquer filme começam a aparecer.
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