2014/07/11

Em busca de Francisco

A história começa não-cronologicamente por José, que encontrou um sofá na livraria para se sentar e decidir qual dos quinze livros levaria pra casa. Tinha todo tipo de leitura. Tudo prosa, pois ele tinha preguiça de poesia. "É muito pessoal, não consigo entender”, reclamava. Com o canto de olho, observou que um vulto havia estacionado em sua frente, a dois ou três metros dele. Ainda cabisbaixo, encarando os livros, percebeu que a pessoa continuava parada. Levantou o rosto e descobriu uma morena de batom vermelho, que o observava estranhada. A moça fixou seu olhar no dele, sorriu timidamente, e partiu. José voltou a encarar os livros, mas ignorava o que tinha em mãos, apenas tentando entender o que é que tinha acabado de acontecer.

Inês vestiu sua mais romântica roupa, queria estar como a protagonista de um romance qualquer no primeiro encontro. Pegou carona com sua mãe e chegou mais cedo ao local marcado. Sentou-se num canto e começou a ler a primeira coisa que alcançou numa prateleira qualquer. Era algo sobre um casal que se reencontrou muito tempo depois de viverem um romance. Inês tinha pouco mais de trinta minutos para saber se os dois ficariam juntos novamente. Vinte minutos. Dez. Cinco. 19 horas, horário de Brasília. Quinze minutos de tolerância. Sete e meia. Sete e cinquenta... Inês já ignorava o livro que tinha em mãos. “Pelo amor de Deus, já passou das oito e ele não chegou ainda!”, desesperou-se. Não tirava os olhos da entrada principal da loja, então se lembrou que havia outra no segundo andar. Subiu as escadas olhando para todos os lados em busca do rapaz. Havia outros homens interessantes, mas nenhum deles era o que tinha marcado o encontro com ela. Percorreu o segundo piso e nada. Terceiro, ninguém. Voltou ao térreo e começou a andar pelos corredores entre prateleiras. Livros de bolso, nada. Filosofia, nada. Quadrinhos, nada. Auto-ajuda, não. Então perto de uma estante repleta de literatura russa, avistou um rapaz ansioso procurando algum título específico. Devia ser ele, mas Inês não lembrava muito bem, naquela noite no show de uma banda que ela nem gostava, do rapaz que se aproximou ao perceber que ela falava do relacionamento entre dois escritores do século passado. Aproximou-se lentamente e perguntou:
- Você é o Francisco?


Ele precisava provar para José que havia duas versões com títulos diferentes para uma mesma história de Dostoiévski, então Charles fez “não” com a cabeça para a estranha e continuou sua caça.
- Não consegui achar ainda, mas se te falo que tem, é que tem mesmo!
José nem ligava mais em estar errado, mas continuou o debate apenas para provocar o amigo:
- Cara, não pira, são duas histórias diferentes. Se você não consegue me provar, é porque tá mentindo.
- Tu vai ver.
Charles foi procurar um atendente que o ajudasse a localizar as duas versões do tal livro. José continuou sentado com seus catorze mil candidatos a aquisições literárias do mês. Era muita coisa para tão pouco dinheiro.

Depois de se constranger com o cara na sessão da Rússia, estava indo para o segundo andar novamente, quando, parada no pé da escadaria, viu um rapaz sentado com alguns livros no colo, lendo a contracapa de um conto sobre um capitão que abandonou o comando de seu navio. “Agora é ele!”, afirmou. Foi se aproximando lentamente alimentando a certeza de que enfim Francisco havia chegado. “Tão culto sentando desse jeito com os livros, parece que quer engolir todos eles”, encantando-se com o moço, que aparentemente ignorava qualquer outra vida naquela loja. Inês parou na frente dele e ficou o observando. Até que o rapaz levantou o rosto e fez uma cara estranhando a situação.

- Tá aqui, já te mostro que é a mesma coisa, só que um com uma tradução bem melhor. Mas, ei, você que é o Francisco?
- Não, prazer, sou Adalberto - disse José, oferecendo a mão nessa brincadeira que repetia  frequentemente.
- Cê viu uma morena baixinha passando? Ela chegou em mim perguntando se eu era o Francisco.
- Batom vermelho, cabelo amarrado num rabo de cavalo?
- Isso.
- Cara, que bizarro, eu tava aqui lendo a contracapa de um livro, ela parou na minha frente e ficou me encarando. Aí, quando olhei, me deu um sorriso toda sem jeito e foi embora.
- Coitada, acho que o tal do Francisco deu os canos nela.
- Será que ela tá por aí ainda?, vou dizer que sou o Fernando.
- Francisco.
- Isso, tanto faz.

Mandou uma sms perguntando quanto tempo mais deveria esperar. Tentou ligar, mas foi direto para caixa de mensagens. Inês estava há mais de duas horas na livraria esperando por Francisco. Cruzou com os dois rapazes que foram confundidos por ela com o caloteiro e baixou o rosto envergonhada. Cansada, resolveu ir pra casa e esquecer Francisco. Não conseguiu, passou a noite toda sentindo raiva de si mesma por ter aceitado o convite de sair com ele. Dormiu, se duvidar, pouco mais de duas horas, e não conseguiu mais. Retomou então a leitura da indecisão de Félix entre Henriqueta e Lady Dudley, e como ele encontraria Natália. Fechou o livro na página 313 e foi tomar banho.

A caminho do estacionamento, Charles foi contando sobre seu trabalho atual e como ele estava cansado de ler. “Nem bula de remédio, tô ficando cego de tão cansado”, reclamou.
- Não esquece de pedir minha bermuda no sábado - pediu José.
- Imagina, a guria vai querer me bater.
Deixou o amigo em casa e foi pra casa jogar videogame, já que estava sem internet para ver série e cansado pra qualquer outra atividade. Charles não aguentou muito tempo de jogatina. Trocou algumas mensagens com sua namorada antes de dormir, desmaiou e acordou atrasado para trabalhar.

Graças a um vizinho que resolveu acordar a família na base do grito, às seis e meia da manhã, José se lembrou que tinha trocado de escala do plantão com uma colega que precisava viajar naquela sexta-feira. Ainda frustrado por não ter comprado um livro sequer na noite anterior, primeiro por indecisão, segundo porque seu cartão de crédito não tinha virado ainda, resolveu ir pedalando pro trabalho, já que não teria o que fazer no ônibus além de encarar pessoas na ausência de uns pedaços de papel.
Numa esquina qualquer, alguma entre a 24 e a Westphalen, esperando o sinal abrir, ouviu um ruído pesadamente irritante vindo de uma outra bicicleta que se aproximava do cruzamento. Virou-se, sorriu e perguntou:
- E aí, encontrou o Francisco?

- Não, mas reencontrei você.
- Orra, sacanagem… O cara te deu os canos?
- Azar o dele - disse Inês com sorriso muito distante daquele embaraçado que lançou para José na noite passada.

Mesmo sem o batom vermelho, algo que costumava deixar as mulheres mais bonitas, na opinião dele, aquela estranha conseguiu quase derrubar José da bicicleta. Disse, sem jeito:
- Babaca esse cara. Eu não te daria os canos, mas nem que me pagassem.

Assim que saiu da festa junina, com a bermuda recuperada para o amigo, Charles ligou para ele, perguntando se estava em casa. José não atendeu, mas respondeu via sms:
- Cara, tô aqui procurando o Francisco.
Charles foi entender a mensagem na semana seguinte, quando foi tomar chimarrão com José na praça e obteve a explicação.

Na semana seguinte, Inês ligou de um telefone diferente para Francisco, que até então não tinha pedido desculpas por não ter aparecido naquele dia nem dito qualquer outra coisa depois, sumiu. “Oi, Francisco, aqui é a Inês. Então… Sobre nosso encontro: Obrigada. Você não foi sei lá porquê, mas foda-se”, e desligou. Foi na tentativa de encontrar alguém que julgava ser-lhe ideal, que encontrou uma bagunça imperfeita que não se importava com o fato de Inês sair encarando pessoas na livraria. Não encontrou Francisco, porque o Deus da coincidência, ah, sempre ele, preferiu que Inês se encontrasse com José. Mais tarde, desencontrou-se dele. Encontrou Charles e fim.

José lia de tudo, mas nada poderia explicar como foi que conseguiu se desentender com Inês. Porém, apesar da mágoa enraivecida, nada pode fazer quando percebeu entre Inês e Charles uma intimidade, um magnetismo que... Bem, nada poderia fazer para inibir o potencial de "dar certo" entre os dois. Nada além de desaparecer.

Charles, que, de tão constantemente cansando, esperava nada da vida e alimentava nenhuma expectativa, acabou por des-cansar ao lado de Inês, que conseguia  enxergar algo nele invisível para ele mesmo. Alguma coisa que a fazia esquecer Francisco, Antônio, José, Federico, Simone e todos os problemas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário