Tinha sete minutos pra ir da Cândido Lopes à Nossa Senhora da Luz. Ou seja, sem tempo. Entreguei o livro para que a segurança pudesse liberá-lo, e, enquanto ela realizava os devidos procedimentos de liberação daquele conglomerado de papéis que eu havia esquecido a data de devolução e que, cheia de coisas pra fazer na rua, tinha lembrado do prazo ao passar pela Tiradentes, ansiosa, encarei o monitor, que mostrava o registro de livros que saiam da biblioteca, ao lado da funcionária.
“_______ _______ de _____”, seguido de um número e um título de livro, que logo sumiu e deu lugar ao meu nome. Ela esteve aqui. Antes de mim. A última pessoa atendida pela segurança antes da minha chegada. Quem sabe a menos de um minuto. Cadê? Saí com A Náusea. Peguei minha bolsa no guarda-volumes e parei no topo da escadaria. Busquei por aquele corpo distante em ambos sentidos da rua, mas nada. Aonde foi? Direita ou esquerda? Teria subido até a Tiradentes, descido pela Muricy, pego a Ébano, seguido pela Cândido ou entrado na Americanas procurar por dvds em promoção? Cadê?
Se não fosse dessa vez, motivada pelo impulso da surpresa, talvez eu nunca mais me inspirasse a querer resolver nossa treta. “Treta” que não passava da ausência de um diálogo concreto sobre nós. Eu queria vê-la, mesmo que fosse apenas para ver um sorriso seu.
Recorri ao celular pra acessar a internet e ver se ela deixara algum rastro sobre suas últimas aventuras. “33 seg - Cruz Machado, rua mais charmosa da cidade”. Então saí. Cândido. Parada no semáforo, fui abordada por um cara me perguntando se eu curtia funk, respondi que "é foda" e presenciei uma ligeira dança dele, seguida do comentário que estava desde sábado sem dormir. Sinal verde. Cruz. Comecei a descer sentido Visconde de Nácar, porque eu jurava saber aonde ela estava indo. Eu sabia que, por mais que lá fosse meio “fora de mão” em sua rotina de dias úteis, aquela pracinha era um de seus lugares favoritos da cidade. Deve ser pelo abandono. Ou semelhança. No meio do caminho de tanta gente, mas, um tanto distante da beleza que atraía turistas a outras praças da cidade, ignorada. Ela, a moça de quem eu corria atrás passando por bares, casas noturnas, restaurantes, bordéis, boite shows, sei lá como, oficialmente, são definidos aqueles estabelecimentos na Cruz, também era assim, abandonada, invisível na multidão. Eu não era a multidão. Quer dizer, dentro de mim havia uma multidão de tormentas e desejos, mas ela era muito visível e tangível para mim.
Já havia desistido de meu compromisso marcado às 18h no Seminário, as pessoas lá me perdoariam. Entre tantos transeuntes, ônibus, carros, passei despercebida, por mais que eu corresse de um jeito meio desajeitado. Estava chegando na Visconde do Rio Branco, toda suada, ofegante, desajeitada, quando percebi que meu celular alertava uma mensagem: “As mocinhas da cidade são bonitas e correm bem”. Na pressa, minutos antes, passei distraída, imaginando que fosse encontrar a moça lá perto da 29, correndo pela esquina da Alameda Cabral sem prestar atenção em um dos outros lugares favoritos dela. Dei meia volta e acelerei ainda mais o passo.
Minhas canelas doíam tanto, como sempre fazem quando exagero na corrida, que me fizeram parar logo quando avistei aquela morena sentada num degrau ao lado do monumento. Faltou ar, chão, perna, pressão, visão, equilíbrio. Caí. Apaguei. Acordei dentro de uma loja com calçados everywhere, sei lá se era sapataria ou brechó, e umas cinco pessoas me encarando, inclusive ela, a possível razão do meu desmaio, que segurava um copo, que logo foi ao encontro da minha boca. Soro caseiro. Percebi então que eu estava deitada num sofá no meio do lugar, usando minha própria bolsa como travesseiro. Eu sentia A Náusea apontando minha cabeça.
Saímos juntas do brechó-sapataria, depois de me justificar aos espectadores de meu desastre que tudo fora culpa do excesso de calor e ausência de água, e, ainda paradas, deixei que ela, até então silenciosa e de poucos atos, tomasse-me pela mão e me guiasse a qualquer lugar. Perguntou:
- Aonde quer ir?
- Comer, acho, mas só se você não tiver outro compromisso.
- Na verdade, tenho… tinha...
- Pode ir então.
- Meu compromisso era ver se você viria atrás de mim.
- Quê?
- Te vi na biblioteca…
Fiquei indignada:
- E você não veio falar comigo? Puta que o pariu, olha o tipo de joguinho que você vem pra cima de mim!
- Mas eu…
- “Mas eu”, o caralho! Olha, você me vê e resolve brincar de esconde-esconde?
Ela tentou falar alguma coisa, mas não dei espaço. Paramos na esquina da Carlos de Carvalho e me livrei de sua mão, de seu calor, de seu afago.
- Porra, você sabe que a gente não tá se entendendo desde que você… Enfim, não quero falar sobre ela… Mas você sabia que eu gosto, quer dizer, gostava de você… Muito… E você ainda mostrava que gostava de mim. Essa coisa de a gente não se falar me faz mal, meu…
Assim que dei um pausa para o ar invadir meus pulmões, antes de continuar meu monólogo raivoso, fui interrompida por um beijo e, em seguida, fuzilada por um olhar tranquilo e um sorriso um tanto dissimulado:
- Você entendeu tudo errado.
- Ah é? Você escreve apenas “numa boa com a namorada”, caralho, e acha que eu entendi tudo errado?
- Meu perfil foi invadi…
- A puta que o pariu foi invadida. Eu sei que se alguém tivesse postado alguma coisa no teu nome, você teria excluído na hora que descobrisse. Aposto que aquela merda ainda tá lá.
- Não pira…
- Já pirei. Você sabe que eu sou toda neurótica. Se não queria essa pira na tua vida, que fosse embora encontrar alguém normal da cabeça e parasse de me encantar.
- Cê vai me deixar falar?
- Não tem o que falar, tchau.
Tentou uma última vez pegar minha mão, até conseguiu alcançar alguns dedos, mas, furiosa, fugi desse carinho e corri. Corri com força além da usada antes do desmaio. Ela gritou meu nome pedindo pra eu parar, mas eu só queria correr. Fugir. Correr tanto que eu pudesse alcançar a velocidade da luz e deixar que minha alma se desintegrasse e deixasse pra trás todo o sentimento. Todos. Todas. Apenas correr sem sentir. Lágrimas começaram a escorrer de meus olhos involuntariamente, ou talvez meu subconsciente estivesse protestando contra minha atitude de fugir da moça que me fazia bem, apesar dos pesares, apesar de mim, apesar de eu dar motivos para as pessoas fugirem. Era eu quem fugia naquela quarta-feira ensolarada.
Na esquina com a Ermelino, um carro virou rapidamente sem dar a seta e me atingiu. A pancada me apagou na hora. A única preocupação em minha mente era não perder a data de devolução do livro. “Preciso entregar” rodava em looping na minha cabeça, como se estivesse o resto tudo bem. Como se fosse tranquilo eu não conseguir acordar, abrir os olhos, andar etc. A única merda de preocupação que eu tinha, enquanto vagava no limbo, era devolver a desgraça do livro dentro do prazo.
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