2014/08/28

Interrogatórios e monólogos raivosos

Ato II ou IV

- Acho meio imbecil esse negócio nos filmes de sempre os entorpecentes levarem personagens a cometerem erros. Como se todo mundo fosse influenciável somente por drogas.
- Ser humano é estúpido naturalmente, nem sempre precisa de droga pra fazer merda. As pessoas simplesmente… erram.
- Mas por que o cinema sempre bota droga no meio? Tem um monte de filme em que a grande virada ocorre quando alguém bebe demais, dá uns tiros ou sei lá.
- É que o público não entende que personagens são humanas, humanos, enfim, e capazes de errar pelo simples fato de existirem.
- Besta, isso é... muito besta.
- Ok, Kevin, esconde esse arco aí.
- Se cuida, Karol.
Antes de entrar no ônibus, ela virou-se e disse:
- Me avisa quando chegar no último email dela.
- Me avisa quando quiser sair de novo - disse ele quando a porta já havia fechado. Ela só teve tempo de disparar um sorriso enquanto o veículo se distanciava.
Estava tão anestesiado pelas quatro horas seguidas com Simone/Karol/Cindy/Peggy/Era-tanta-gente-dentro-de-tão-pequena-moça que, assim que pegou seu ônibus e se sentou, sacou seu caderno e pôs-se a escrever um conto sobre o vestido azul e os olhos profundos de uma personagem que obviamente era inspirado em Elise/Alice/Adèle/Simone/Tantos-nomes. Aliás, não havia um texto sequer escrito por ele nos últimos três meses ou quatrocentos e poucos dias que não tivesse um pedaço do cabelo dela, um olhar tímido como os dela ou apenas um tanto de vontade de que as palavras se transformassem nela, que a aproximasse dele. Começou a se preocupar com seus textos. Achou que estava se repetindo demais em semelhantes situações, personagens, lugares e conflitos. Deus estava em crise criacional. - toda pessoa que escreve tem licença para ser Deus. Mas, em se tratando de seu interior, não havia crise alguma. Não existiam problemas pelo menos instantes após se despedir da moça. Estava bem com ela, consigo mesmo. Encontraria formas novas de contar a mesma história. Seu único receio era talvez estar vivendo na ilusão de um futuro que só existia em sua cabeça, impraticável. Como se estivesse vivendo o que para ela fosse apenas mais um capítulo forçado e entendiante de sua biografia descrito apenas a fim de construir uma trama mais complexa, talvez apresentando determinado personagem e dando aparente importância a ele apenas para distrair o leitor. Havia a possibilidade de que ele não fosse tão importante para ela, desconfiava que tinha certo protagonismo, mas, por se tratar de histórias escritas por mentes alheias e como não tinha poder sobre estas, não lhe importava. Ele queria que suas confabulações mentais se concretizassem no que correspondia ao romance com aquela de tantos nomes. Para ele, mesmo que para mais ninguém, a história fluía bem e poderia durar mais quatrocentas páginas ou ser interrompida, sem um final proposto, pela Morte.

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