2014/08/17

Papel dobrado

Na saída do prédio, eu tinha que virar à esquerda, depois à direita e esquerda novamente para pegar a Conselheiro Araújo. Era só isso, apenas isso, o que eu tinha de fazer. Mas, ah, teimosa, cismou que tinha que passar na lanchonete do outro lado do pátio pra comprar água. Tantos outros lugares pra comprar a maldita água no caminho certo que eu tinha que pegar, o da esquerda, e resolvi virar à direita. Talvez tenha feito isso impulsivamente. “Tenho que comprar água”, devo ter pensado instantes antes de sair do Dom Pedro II, “ah, vou ali na lanchonete do Dom Pedro I”. Deus castiga. Se bem que não foi um castigo que me aconteceu, foi mais um soco no estômago. Daqueles que eu não precisava. Eu só queria pegar minha garrafinha d’água, caminhar até o ponto de ônibus e chegar em casa. Comer, dormir, assistir algumas coisas e ler. Esses eram os meus planos para depois da aula, de sexta-feira até domingo. Mas, ah…
Já se passava mais de um mês que não nos encontrávamos. Nesse meio tempo, só desencontros. Quer dizer, ele se perdeu em sua própria confusão. Pude fazer nada. Veio, por meio de mensagens via celular, pedir desculpas esses dias atrás. Simplesmente não entendi porquê. Na verdade, ele não tinha feito nada que me prejudicasse diretamente (tirando a distância entre nós que não era bem o que eu queria). Não arrancou meu braço fora, não matou meus pais, não incendiou a biblioteca pública, não… Apenas foi o que ele mesmo dizia que era, perdido, vai e volta. Ele foi e me acostumei tanto a isso que passei a não me importar mais se não voltasse. Segui com a minha vida. Não fazia mais questão de sair com ele. Eu estava bem. Muito bem. Até aquela sexta-feira, 18 horas e alguns minutos.
Estava sentado sozinho num banco e levantou imediatamente assim que me viu. Congelei. Fiquei entre sair correndo e enfiar um tiro em sua cara, mas congelei. Veio vindo. Meu corpo mirava o prédio mais alto da Reitoria, meus olhos queriam olhar pra lá também, mas encaravam aquele cretino que vinha em minha direção. Veio vindo com as mãos no bolso do casaco. “Pronto”, pensei, “deve estar achando que fiz algo de errado pra ele, vai tirar uma arma do bolso e vai me matar aqui no meio dessa multidão.” Mas ele, fascinado pela arte serial killer não seria tão idiota de fazer isso em público. Parou em minha frente, inspirou, expirou, encarou o céu nublado que previa um final de semana de chuvas e filmes em casa e disse, direto:

- Prefiro não falar agora, sei lá, talvez eu não fale exatamente o que quero, o que tô sentindo. Você sabe, às vezes, não sei falar muito bem. Prefiro escrever. Isso é pra você. - tirou um papel do bolso e me entregou. Despediu-se com um ligeiro “se cuida”, passou por mim e foi em direção à Doutor Faivre. Pensei em correr atrás, mas o peso daquela folha me prendeu. Sentei no banco onde o filha da mãe estava.
Era um A4 branco dobrado duas vezes. Uma das faces estava vazia. Noutra, dividida em três colunas feitas de caneta, palavras em esferográfica. Nem letra de forma, nem de mão, uma mistura. Percebi que teria dificuldade pra ler aquilo logo na primeira linha devido a bagunça que eram aquelas letras. Segue:

“Porém, minha existência faz sentido e tem forças quando não só existo em tuas frases unidas que criam uma bela ficção. Preciso existir do teu lado. Por algumas horas que sejam da semana, pra enfrentar o resto da minha existência ao longo dos dias sem você.
1 Com você, eu (tenho) tinha sensação que (existo) existia. É simples: Existo. Apenas isso, existo. Me sinto vivo.Não só pra mim. Existo para alguém mais. Existo e inspiro. Existo, inspiro, expiro. Tiro de mim os tumores de uma vida sem sentido. Engulo tua existência aos pedaços, sem pressa. Existo pra você e não só pro meu solitário quarto com livros, séries e filmes.
2 Minha existência seguiria de qualquer jeito. Comigo ou sem. Contigo ou sem. Pelo fato de existir, um dia que fosse, estaria eternizado. Mas existindo para alguém me motivo a existir ainda mais.”

Ele tinha razão. Imagina se fosse me dizer isso ao vivo, com sua voz confusa de falas improvisadas. Ficaria eu ainda mais confusa. Ainda mais.
Pensei em ligar pra ele, mas a desgraça do meu celular estava sem bateria. Olhei para todos os lados mas, não encontrei o rapaz. Eu definitivamente não tinha o que fazer além de ir pra casa e digerir aquelas palavras. Fui de onde estava até o ponto de ônibus olhando para todos os lados a fim de encontrá-lo. Nada. Cheguei em casa e iniciei minha agenda do final de semana. Não estava sozinha. Além da presença de meu namorado, que não percebeu que eu não estava ali, existindo de verdade, passei três dias acompanhada do efeito daquela carta. Só na segunda-feira, ao ler pela vigésima segunda vez aquelas palavras, resolvi abrir o papel por completo. Do outro lado, havia um mapa. Do centro da cidade. Conhecia aquelas ruas. Eram perto de onde costumávamos nos encontr… Ah, espera… Não, eu não fiz isso. Eu simplesmente demorei três malditos dias pra abrir aquela folha e perceber que haviam nela instruções, do jeito que ele gostava de comunicar, de onde deveria encontrá-lo? Mandei sem jeito uma sms perguntando se ele tinha me esperado por muito tempo na sexta. Respondeu só:
- Tem só dois números na carta. Data e hora.
Era segunda-feira, dia 12, dez horas e dezesseis minutos. Saí da faculdade às 11h30 e fui resolver minha vida. Não só a minha. Tentar também acertar aquela que existia não só em meus textos. Era verdade, eu estava cansada que existíssemos apenas em textos. Queria que houvesse nossa existência em todos os cantos. “Mas e teu namorado”, perguntariam-me vocês. Ah, essa é outra novela. Virem a página e descubram. Talvez.

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