Era início de junho, na primeira semana realmente fria do ano. Com o tempo seco, para ele, que tinha os pulmões fracos, era difícil respirar após uma pedalada. Como achou que estivesse atrasado, pedalou com mais pressa ainda. Porém, ao chegar no lugar, foi só então que viu a sms do amigo dizendo que ele se atrasaria uns vinte minutos. “Ah, mas muita coisa pode acontecer em vinte minutos”, pensou consigo mesmo, lembrando do slogan de uma rádio. Cogitou ler, mas já era noite e não teria como ler na escuridão daquele lugar. Sentou-se no muro baixo em frente a casa onde entraria com o amigo. Preferiu não entrar de imediato por saber que podia não conhecer ninguém lá. Até que, veja só, um conhecido saiu de lá para fumar. Começaram a conversar, enquanto três ou quatro pessoas também tomaram o muro para completarem seus pulmões com fumaça, sobre a última vez em que se viram. Até que a aleatoriedade os levou a:
- Acho que estou com tuberculose ou algo parecido - disse o ciclista, rindo.
- Do que cê tá rindo?
- Da minha situação, tem que rir pra não morrer.
- Não seria “rir pra não chorar”?
- É que eu tô conseguindo respirar melhor quando rio.
O ciclista logo percebeu que uma garota, entre as que estavam no muro, escutava a conversa alheia disfarçadamente sorridente. Foi então que ele lembrou que aquele sorriso coberto por um batom roxo-vinho já cruzara seu caminho anteriormente. Cruzou, fuzilou, derrubou. Fora apenas mais um de seus platonismos eternos de bar. Continuou conversando com seu conhecido, ainda trocando olhares com a moça, até que o amigo atrasado chegou. Entraram na casa amarela, viram a exposição de desenhos, segundo o bicicleteiro, pintados com os dedos transcendentais de Thoreau e a performance de um cara dormindo; comeram, socializaram e voltaram ao muro para fumar.
A moça era conhecida do amigo do ciclista. Mais do que isso, na verdade, tiveram os dois um caso de três semanas. Ela se aproximou dos três, perguntando da exposição, até que novamente, a conversa tomou rotas aleatórias e:
- Na verdade, faz tempo, te vi numa festa, mas tenho certeza que você não se lembra. Eu lembro...
Então contou a moça sobra a vez que se cruzaram num bar onde ela deixou sua imagem cravada na memória dele por um tempo.
Não que ele tivesse forjado o encontro na noite seca de Inverno, não que ele tivesse intencionalmente comparecido àquele lugar sabendo que tal mulher estaria lá. Foi apenas coincidência, apesar de saber que ela também frequentava o lugar.
Os dois amigos entraram na casa, deixando os dois conversando sozinhos. Falaram tanto que se sentiam muito bem a sós, sem vontade de outras companhias. A tosse ainda interrompia as falas do rapaz, mas a presença da moça tranquilizava sua garganta, sua ansiedade, sua existência, sua escuridão, sua vontade.
Olhava para longe encarando o nada, com uma mão repousada sobre o muro, sentiu que ela pegara seus dedos, que, apesar do frio, estavam quentes. Ela queria conhecer o rapaz, invadir sua rotina. Só então percebeu que o peito do rapaz emitia uma luz vermelha que piscava incessantemente. Não acreditou na metáfora, fechou os olhos e riu sozinha. Curioso, ainda sem perceber o que acontecia com seu próprio peito, apertou carinhosamente sua mão. Deixou de encarar o nada e mirou o rosto da moça, que alternava entre vermelho e marrom. As únicas luzes que repeliam a escuridão da frente da casa amarela, tirando as que vazavam da janela, eram as dos olhares dos dois e a do peito do rapaz. Tudo ficou escuro então para os dois. Fecharam os olhos e se beijaram. A luz vermelha saindo do peito não acompanhou o coração, que estava mais acelerado que uma máquina de lavar em fase de centrifugação. Voltaram a encarar o nada da escuridão iluminada pela vermelhidão.
Naquele momento, ficaram bem.
Nos dias seguintes, se cruzaram por aí, mas a intensidade de suas luzes foi enfraquecendo rapidamente. Não demorou a apagar. No escuro, cada um se guiou conforme sua vontade. Colidiram com outros seres perdidos no imensidão obscura. Reencontraram a luz. Perderam-na. Rotina.
No final de tudo, não souberam dizer se era a presença de luz que os motivava a viver ou o desespero na escuridão de cair em buracos e dar com a cara em paredes que inspirava a busca por alguém que iluminasse suas existências.
Sobre a luz que saía do peito do rapaz: era apenas a luz traseira de sua bicicleta que ele guardou, com medo de ser furtada, no bolso da camisa.
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