2014/09/05

Te mato antes do fim

Matar tempo no Centro: ou tentava a sorte no cinema ou ia explorar a biblioteca. Opção número 2 foi a escolhida para aquele dia. Nos corredores, apenas quis organizar um protesto na Boca Maldita ao ver que a trilogia Millennium estava na sessão “Literatura Alemã”. Stieg Larsson teria um AVC seguido de mais um ataque cardíaco no caixão ao descobrir essa. Há tempos, depois da experiência bizarra que foi ler sobre as aventuras sexuais de um norte-americano em Paris, não pegava um livro da sessão “Literatura americana”, então resolvi procurar naquelas prateleiras algo curto para passar o tempo. Comecei o passeio por ordem alfabética e, ao chegar na letra H, avistei um fino livro de capa azul - eis uma cor que chama minha atenção sempre - e descobri que era um dos “clássicos americanos do século XX”. Esse mesmo, feito. Fui em direção às mesas e, ao sair do corredor, avistei um caderninho preto numa delas. Pensei em ignorar ou entregar a alguém que trabalhasse ali, mas a curiosidade falou mais alto. Abri na página onde a fita estava e comecei a ler algo escrito a lápis e a mão:


“Curitiba, 5 de setembro de 2014...”

Se fosse um pão, estaria saindo fumaça deste caderno (e talvez o padeiro tinha ido dar uma volta enquanto a massa esfriava). Cogitei largar a leitura, mas, não. Enfim, continuando:

“Quando ouço certas músicas
quando vejo certos filmes,
é como se meus pulmões
além de ar
se enchessem com algo bonito
mesma sensação que tenho
quando estou ao teu lado.
Às vezes, nem mesmo perto,
apenas pensando em ti, sou
invadido por um sentimento
semelhante ao que me invade
quando escuto algo, assisto
a algo, que me deixa num
estado pra lá do Amapá. Distantemente
bem. É como se todo meu peso,
que não é pouco aqui dentro, se
revertesse apenas em uma folha
de papel em que só é permitido
escrever coisas boas sobre.
Destas músicas, quanto mais
as ouço, mais me afundo
em você. E não quero sair dessas
águas. Quando deito pra ver estes
filmes que me deixam 'assim'
no final, parece que você
está deitada do meu lado
e nós dois estamos na
tela. Sim, eu te vejo até
naqueles romances trágicos,
mas sempre te mato antes
do fim pra te poupar de dores
piores. Aliás, assim deveria ser, espero,
entre nós, isso tudo PRECISA
acabar
antes de se transformar
em algo muito distante daquela
boa sensação que as
músicas e os filmes
e a tua presença
nos trazem.”

Ora, alguém chama o Houston, porque nós temos um problema conhecido como excesso de gostar de alguém. Qual é o número do "Conluio dos Amantes Excessivos"? O texto terminava assim trazendo boa sensação e me obrigou a relê-lo.
Entrei tanto na leitura que não percebi se havia mais alguém naquela grande mesa retangular. Fechei o caderninho e flagrei, na outra ponta, um rapaz, com as mãos repousadas na madeira, me observando seriamente. Antes que eu tentasse encontrar uma reação, ele disse:
- Oi, moça, pode devolver meu diário? Tinha esquecido aqui…
- E como eu vou saber que é teu?
- “A Náusea, tempo, 91".
- Que?
- Só abre na última página, faz favor.
Reabri o caderninho e encontrei o tal código “ANAUSEATEMPO91” que ele mencionara. O rapaz se levantou, fechou um botão rebelde de sua camisa azul  e veio em minha direção.
- Você gosta mesmo dessa pessoa, hein? - disse eu, querendo fazer amizade, apesar da beleza do rapaz, que me faria querer muito além de ser sua amiga.
- Você não me conhece. - Respondeu secamente, estendendo a mão. Atrapalhada como sempre, entendi o gesto de outra forma e apertei sua mão, num cumprimento ligeiro, dizendo:
- Prazer, eu sou a Eduarda.
- Ok, moça, eu sou o Raul, mas você poderia, por favor, devolver meu caderno? - Acho que ele estava um pouco incomodado com a situação.
Devolvi o pedido e ele partiu em direção à saída sem dizer nada. Virei-me para acompanhá-lo se distanciando (meu pai tinha uma camisa daquela cor...), mas logo parou e voltou. Assim que disfarcei o olhar, folheando o livro azul, ele disse:
- Desculpa minha grosseria… Eduarda… mas eu não estou num bom dia.
- Imagina, todo mundo tem dias assim…
- Pois é… Posso sentar? - apontou pra cadeira ao meu lado.
- Fique à vontade.
- Sei que a gente mal se conhece, mas eu preciso perguntar algo… pra qualquer pessoa... - por um instante, parou e estranhou o que disse -. Não que você seja qualquer uma…
- Fica tranquilo. Pergunta.
- Você leu o que estava marcado aqui, né? - apontou para o caderno, repousando na mesa.
- Sim, as duas últimas páginas… - fiquei receosa para comentar sobre o que li, vai que era algo extremamente confidencial, o que de fato poderia ser por se tratar de um diário…
- Então, o que achou?
- Sei lá, cara, eu não sei do que se trata…
Interrompeu rapidamente minha estúpida resposta:
- É sobre uma garota… Uma mulher… que me faz um bem desgraçado e não faço ideia de como falar tudo o que sinto pra ela ficar...
- É, escrever é uma boa forma de falar, digo, de se expressar.
- Qual você acha que seria a reação dela?
- Eu não sei, eu não conheço ela.
Não que nossa conversa estivesse alta demais, mas, por se tratar de uma biblioteca, fomos solicitados por uma senhora gentilmente a ou nos calarmos ou sairmos dali.
- Desculpa pelo vacilo - disse Raul.
- Vamos sair daqui, odeio esse lugar. - sugeri, cochichando ironicamente pra mulher ouvir. Deixei o livro azul sobre a mesa e partimos.
Sentamo-nos na padaria da esquina, pediu um pão de queijo e um café preto, pedi apenas um suco de laranja e começou a me contar sobre a garota e a história deles juntos. Quer dizer, juntos entre aspas, porque, durante grande parte do caso, eles mais passaram tempo distantes, alimentando desejos, do que propriamente lado a lado. Ficamos quase uma hora debatendo sobre o que ele deveria fazer e, ao dar a hora de meu compromisso, trocamos telefones e partimos cada um pro seu lado. Quanto mais ele falava, mais eu tinha vontade de invadir a casa dessa guria, pegá-la pelos braços e gritar:
- Puta que o pariu, mulher! O que você está fazendo aqui, sozinha, longe do Raul? Esse cara tá bem louco, num bom sentido, por você. Não demora!

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