E
A primeira poltrona da fileira, partindo do corredor em
direção à parede, ficou com a mochila daquele que queria fumar um cigarro antes
do show. A segunda, vazia, porém, estava reservada ao amigo do primeiro. A terceira,
já era ocupada pelo outro amigo, que, com as costas quase na horizontal,
encarava o teto do teatro. Os demais quatro espaços permaneceram vazios até
que, logo após os dois primeiros que voltaram se sentarem, um grupo de mulheres
chegou pedindo licença pra passar.
Iguais
O terceiro achou que as moças estavam junto com seus amigos,
tanto que cumprimentou com um singelo “Olá” a primeira que entrou na fileira. A
moça retribuiu a saudação, mas as outras, mais tímidas, não replicaram o ato.
Conforme passando por ele, o rapaz da terceira poltrona encarou uma a uma disfarçadamente. Morenas, franja, coque, bota, skinny jeans,
batom. A visão do rapaz começou a doer por observá-las com o canto de olho, mas
continuava. Como se combinando, cada uma carregava a cor bordô em
algum canto. A simpática tinha um cachecol. A da quarta vaga, calça. Sexta,
batom. Sétima, camisa. Encantou-se o terceiro pela ocupante da poltrona
vizinha, sentada com seu pé direito, e a bota “última tendência” - usada também
pelas outras da fileira, porém de modelos e marcas diferentes -, sobre o
assento, ficando o joelho apontado para o céu.
Faroeste oriental
Terceiro sinal. As luzes se apagaram. A banda apareceu no
palco. Começou o show. O setor da fileira E, onde estavam as quatro mulheres e
os três homens, ficava, da visão dos músicos, a leste do palco. A primeira
música, que também era a número um do álbum, foi para anestesiar a plateia, com
exceção do terceiro rapaz, que dividia sua visão entre o palco, as luzes, os sons, e a moça ao seu lado, que estava incomodada pela lotação
da fileira, mas ela era sempre assim, independentemente de quem estivesse ao seu lado, agorafóbica.
You look
pretty beauty in red lights
Ele estava, ao menos desejava estar, flutuando naquelas
luzes, queria ser aqueles raios verdes, vermelhos e azuis. Afundou-se na poltrona,
enquanto ela, inclinada para frente, apoiava os cotovelos nas próprias coxas,
como se para se aproximar do palco e absorver com maior eficiência as notas que
saiam de lá. Surgindo do palco, atrás do baterista, um raio de luz vermelho se
jogou sobre a plateia, atingindo principalmente a terceira poltrona da fileira
E. A moça, que começou a acompanhar as luzes depois de sair do próprio corpo
devido à osmose sonora, permitiu-se ser guiada pela iluminação e deixou sua
visão ir de encontro ao rosto do rapaz, completamente vermelho, de olhos bem
abertos e molhados. A moça achou que ele estivesse, mas de fato não
estava chorando. Mas as luzes, tanto a que atingiu quanto a que saia dos olhos
do rapaz, fizeram a moça se fixar ali por um tempo, pouco aliás, porém
suficiente para ele perceber que era observado.
Desfiladeiro
Surgiu um implícito desconforto entre os dois.
Individualmente, sabiam que estavam encantados pelo colega de fileira, mas não encontravam
a uma resposta para expor isso. Cansado de estar sentado na mesma posição há
tempo demais, cruzou a perna de maneira que sexistas afirmam ser de
“mulherzinha”. He just don't give a shit. Por este movimento, fez com que algumas coisas que estavam em
seu bolso caíssem no chão, embaixo do banco, mas nem percebeu, porque, ao
cruzar a perna desatenciosamente, fez com seu pé direito batesse no pé esquerdo
da moça, que cruzara as pernas da mesma maneira, contudo invertendo a perna que
repousava sobre a outra. Pé com pé. Perceberam instantaneamente o encontro, mas
deixaram assim, colados. Como se assim demonstrassem interesse.
Como ignorar uma pessoa simpática e efusiva
Saideira. Aplausos. Biz. Mais aplausos. Acendem-se as luzes.
Fila pra sair. Já fora do teatro, na calçada, os três amigos comentavam sobre
as novas músicas e o efeito semelhante ao de “Ára bátur” que algumas das canções recém-apresentadas
possuíam, quando o terceiro ouviu seu nome pronunciado através de um grito
estridente. Há cerca de dez metros, estava a amiga de uma fantasma dele que
estava com um dos braços estendidos como se fosse um farol indicando que o
rapaz deveria aportar ali e trocar saudações, palavras e saudades. Ele,
transformado em uma pessoa mais coerente com seu interior, diferente daquela
que existia na última vez que se cruzaram sob a escuridão da cidade, não sendo
mais o tipo de pessoa que se obrigava a encarnar uma persona falsamente
simpática perante as demais, apenas sorriu sem mostrar os dentes, levantando
rapidamente as sobrancelhas. Queria ele evitar o constrangimento de uma
possível reação da estranha que envolvesse aproximação, procurando qualquer
coisa em outro lugar para se focar. A estranha desviou o olhar.
Au revoir, bordeux
Dialogando, ainda em frente ao teatro, sobre música local
com os dois amigos, o rapaz da terceira poltrona encarava o chão, quando
percebeu uma calça bordô se aproximar. A moça da quarta poltrona, reconhecendo
os três rapazes que dividiram o mesmo setor da fileira E durante o show,
apareceu com uma caneta preta e um celular em mãos, perguntando se era de
alguém. O terceiro, surpreso por não ter percebido que deixara cair tais
pertences, soltou um suspiro e um “muito obrigado” acompanhado um sorriso. A
moça então respondeu com um “Imagina, ainda bem que te encontrei” e se foi. Ele
acompanhou, com o olhar, a moça se distanciar com suas três amigas. Antes de
atravessar a rua, ela disparou um último olhar, uma despedida, "foi bom te conhecer" ou coisa do tipo.
Atingido pelos castanhos da moça, não teve reação além de um sorriso aberto.
Logo os olhares se perderam na noite e se foram.
Isso destruirá o céu de Gizmo, o imperador negro
Hora depois, num bar de uma região noturna popular da
cidade, estavam os três moços bebendo na rua e conversando sobre o quão
assustador era o monstro com quem o rapaz na cena da lanchonete sonhara na cena da
lanchonete em “Cidade dos Sonhos”. Foi quando o celular daquele que quase
perdera seu telefone alertou o recebimento de uma mensagem. “Antes de devolver
teu celular, peguei teu número. You look pretty beauty in red lights”. Tentando
disfarçar a alegria que lhe invadira, sorriu sozinho, enquanto os outros dois falavam
sobre os litros de vinho que tragaram na noite anterior, viu que no registro de
chamadas realizadas havia o mesmo número que enviara a mensagem, e respondeu:
“Desculpa por ter te chutado durante o show”. A conversa prosseguiu com “Não
aceito desculpas via sms”. Ansioso, respondeu diretamente “Onde você está?” Com
as três amigas do show e os namorados de duas delas, estava num bar novo, antes
desconhecido por ela. “Não sei o nome, é do lado do antigo Chinaski”, respondeu
a moça, que agora queria mais do que antes reencontrar o rapaz da terceira
poltrona e chutar seu pé, pintá-lo de vermelho, assistir a outros shows, roubar
sua caneta preta... Preferiu não responder, despediu-se rapidamente dos amigos
e correu uma quadra inteira quase sem respirar. Virou a esquina, atravessou a
rua e a viu, nas mesas externas do novo bar, a dona da calça roxa e do canhão de
castanhos que havia no lugar de olhos, sentada, com as pernas cruzadas como
quando se bateram os dois no teatro. Ainda encarando o celular, forçando
que ele alertasse uma resposta do rapaz, foi interrompida pela amiga simpática,
que perguntava se não era o rapaz do teatro se aproximando. Levantou-se.
Apressou o passo. Ele também. Colidiram. Explodiram. Em sons. Em cores.
Levitaram.
Nenhum comentário:
Postar um comentário