2014/10/02

Barulho, bordô, botinhas e boom

E

A primeira poltrona da fileira, partindo do corredor em direção à parede, ficou com a mochila daquele que queria fumar um cigarro antes do show. A segunda, vazia, porém, estava reservada ao amigo do primeiro. A terceira, já era ocupada pelo outro amigo, que, com as costas quase na horizontal, encarava o teto do teatro. Os demais quatro espaços permaneceram vazios até que, logo após os dois primeiros que voltaram se sentarem, um grupo de mulheres chegou pedindo licença pra passar.

Iguais

O terceiro achou que as moças estavam junto com seus amigos, tanto que cumprimentou com um singelo “Olá” a primeira que entrou na fileira. A moça retribuiu a saudação, mas as outras, mais tímidas, não replicaram o ato. Conforme passando por ele, o rapaz da terceira poltrona encarou uma a uma disfarçadamente. Morenas, franja, coque, bota, skinny jeans, batom. A visão do rapaz começou a doer por observá-las com o canto de olho, mas continuava. Como se combinando, cada uma carregava a cor bordô em algum canto. A simpática tinha um cachecol. A da quarta vaga, calça. Sexta, batom. Sétima, camisa. Encantou-se o terceiro pela ocupante da poltrona vizinha, sentada com seu pé direito, e a bota “última tendência” - usada também pelas outras da fileira, porém de modelos e marcas diferentes -, sobre o assento, ficando o joelho apontado para o céu.

Faroeste oriental

Terceiro sinal. As luzes se apagaram. A banda apareceu no palco. Começou o show. O setor da fileira E, onde estavam as quatro mulheres e os três homens, ficava, da visão dos músicos, a leste do palco. A primeira música, que também era a número um do álbum, foi para anestesiar a plateia, com exceção do terceiro rapaz, que dividia sua visão entre o palco, as luzes, os sons, e a moça ao seu lado, que estava incomodada pela lotação da fileira, mas ela era sempre assim, independentemente de quem estivesse ao seu lado, agorafóbica.

You look pretty beauty in red lights

Ele estava, ao menos desejava estar, flutuando naquelas luzes, queria ser aqueles raios verdes, vermelhos e azuis. Afundou-se na poltrona, enquanto ela, inclinada para frente, apoiava os cotovelos nas próprias coxas, como se para se aproximar do palco e absorver com maior eficiência as notas que saiam de lá. Surgindo do palco, atrás do baterista, um raio de luz vermelho se jogou sobre a plateia, atingindo principalmente a terceira poltrona da fileira E. A moça, que começou a acompanhar as luzes depois de sair do próprio corpo devido à osmose sonora, permitiu-se ser guiada pela iluminação e deixou sua visão ir de encontro ao rosto do rapaz, completamente vermelho, de olhos bem abertos e molhados. A moça achou que ele estivesse, mas de fato não estava chorando. Mas as luzes, tanto a que atingiu quanto a que saia dos olhos do rapaz, fizeram a moça se fixar ali por um tempo, pouco aliás, porém suficiente para ele perceber que era observado.

Desfiladeiro

Surgiu um implícito desconforto entre os dois. Individualmente, sabiam que estavam encantados pelo colega de fileira, mas não encontravam a uma resposta para expor isso. Cansado de estar sentado na mesma posição há tempo demais, cruzou a perna de maneira que sexistas afirmam ser de “mulherzinha”. He just don't give a shit. Por este movimento, fez com que algumas coisas que estavam em seu bolso caíssem no chão, embaixo do banco, mas nem percebeu, porque, ao cruzar a perna desatenciosamente, fez com seu pé direito batesse no pé esquerdo da moça, que cruzara as pernas da mesma maneira, contudo invertendo a perna que repousava sobre a outra. Pé com pé. Perceberam instantaneamente o encontro, mas deixaram assim, colados. Como se assim demonstrassem interesse.

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Saideira. Aplausos. Biz. Mais aplausos. Acendem-se as luzes. Fila pra sair. Já fora do teatro, na calçada, os três amigos comentavam sobre as novas músicas e o efeito semelhante ao de “Ára bátur” que algumas das canções recém-apresentadas possuíam, quando o terceiro ouviu seu nome pronunciado através de um grito estridente. Há cerca de dez metros, estava a amiga de uma fantasma dele que estava com um dos braços estendidos como se fosse um farol indicando que o rapaz deveria aportar ali e trocar saudações, palavras e saudades. Ele, transformado em uma pessoa mais coerente com seu interior, diferente daquela que existia na última vez que se cruzaram sob a escuridão da cidade, não sendo mais o tipo de pessoa que se obrigava a encarnar uma persona falsamente simpática perante as demais, apenas sorriu sem mostrar os dentes, levantando rapidamente as sobrancelhas. Queria ele evitar o constrangimento de uma possível reação da estranha que envolvesse aproximação, procurando qualquer coisa em outro lugar para se focar. A estranha desviou o olhar.

Au revoir, bordeux

Dialogando, ainda em frente ao teatro, sobre música local com os dois amigos, o rapaz da terceira poltrona encarava o chão, quando percebeu uma calça bordô se aproximar. A moça da quarta poltrona, reconhecendo os três rapazes que dividiram o mesmo setor da fileira E durante o show, apareceu com uma caneta preta e um celular em mãos, perguntando se era de alguém. O terceiro, surpreso por não ter percebido que deixara cair tais pertences, soltou um suspiro e um “muito obrigado” acompanhado um sorriso. A moça então respondeu com um “Imagina, ainda bem que te encontrei” e se foi. Ele acompanhou, com o olhar, a moça se distanciar com suas três amigas. Antes de atravessar a rua, ela disparou um último olhar, uma despedida, "foi bom te conhecer" ou coisa do tipo. Atingido pelos castanhos da moça, não teve reação além de um sorriso aberto. Logo os olhares se perderam na noite e se foram.

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Hora depois, num bar de uma região noturna popular da cidade, estavam os três moços bebendo na rua e conversando sobre o quão assustador era o monstro com quem o rapaz na cena da lanchonete sonhara na cena da lanchonete em “Cidade dos Sonhos”. Foi quando o celular daquele que quase perdera seu telefone alertou o recebimento de uma mensagem. “Antes de devolver teu celular, peguei teu número. You look pretty beauty in red lights”. Tentando disfarçar a alegria que lhe invadira, sorriu sozinho, enquanto os outros dois falavam sobre os litros de vinho que tragaram na noite anterior, viu que no registro de chamadas realizadas havia o mesmo número que enviara a mensagem, e respondeu: “Desculpa por ter te chutado durante o show”. A conversa prosseguiu com “Não aceito desculpas via sms”. Ansioso, respondeu diretamente “Onde você está?” Com as três amigas do show e os namorados de duas delas, estava num bar novo, antes desconhecido por ela. “Não sei o nome, é do lado do antigo Chinaski”, respondeu a moça, que agora queria mais do que antes reencontrar o rapaz da terceira poltrona e chutar seu pé, pintá-lo de vermelho, assistir a outros shows, roubar sua caneta preta... Preferiu não responder, despediu-se rapidamente dos amigos e correu uma quadra inteira quase sem respirar. Virou a esquina, atravessou a rua e a viu, nas mesas externas do novo bar, a dona da calça roxa e do canhão de castanhos que havia no lugar de olhos, sentada, com as pernas cruzadas como quando se bateram os dois no teatro. Ainda encarando o celular, forçando que ele alertasse uma resposta do rapaz, foi interrompida pela amiga simpática, que perguntava se não era o rapaz do teatro se aproximando. Levantou-se. Apressou o passo. Ele também. Colidiram. Explodiram. Em sons. Em cores. Levitaram.

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