2014/10/06

Porcelana: Pressa/Fadado ao sonho

Começou a correr, fugindo, e logo o rapaz foi atrás, tentando alcançá-la, mas as pernas da moça queimava um combustível potentíssimo - traumas. Antes do primeiro cruzamento, ela parou, esperou que ele a alcançasse. Ofegante e com algumas lágrimas deslizando em seu rosto, enquanto o moço repousava as costas num poste, ela disse, encarando o chão, "I've never loved", agarrou as duas mãos dele com ansiedade, deu-lhe um beijo, repleto de vontade, movimentos e intensidade, desvincilhou-se daquele corpo quente e correu novamente. Virou à esquerda. Assim que ele repetiu o movimento, que mal conseguira normalizar a respiração durante a recente parada, trombou com uma senhora cheia de sacolas e um garoto andando com muletas. Uma bela tragédia, envolver-se em um acidente com vulneráveis e ver a melhor pessoa que conheceu nos últimos 24 anos se distanciando. Correndo, fugindo, ao mesmo tempo em que chorava, não olhou pra trás.
Ajudou o menino a se levantar, recolheu as sacolas e pediu quinhentas dúzias de desculpas. A mulher já tinha sumido, ele acelerou o passo, mas desistiu de encontrá-la ao chegar no primeiro cruzamento, por não enxergar rastro algum dela. Sentou-se no meio fio e ficou ali, pensando no que fazer, em como encontrar a moça. Não sabia. Por mais que tivessem ficado juntos tão pouco tempo, comparado aos seus outros relacionamentos amorosos, afetivos, como preferir rotular; foi o mais magnético, puro, suave e incisivo. Um negócio que espremeu seu coração e extraiu coisas boas, o melhor de si, que ele não sabia afirmar se já se sentira assim. Parece que a anestesia para todas as suas dores estavam nele mesmo, mas só ela, a fugitiva, tinha a seringa compatível para suas veias tão machucadas por traumas e remorsos ao invés de sangue. Por mais que tivessem ficado juntos tão pouco tempo, comparado aos seus outros relacionamentos-whatever, era suficiente pra saber que desejava passar mais, muito mais, dias ao seu lado. Aparentemente, por conta da fuga, parecia não ser o que ela pretendia, mas ele não sabia...
Restava a ele deixá-la viva em seus sonhos. “Quem deixa ir tem pra sempre”, pensou, tentando se acostumar a recente perda. O que ele teria, enquanto vivesse, por mais quinze segundos ou meio século, seria a lembrança daquele olhar, daquela pele, daquele toque, daquela cicatriz, daqueles beijos, daquela tristeza por não poder mais repetir tudo. Passou mais de quinze minutos encarando o asfalto e brincando com cinco Marias, enquanto sua mente mastigava um bolo de chocolate com cobertura de amendoim, sua definição para algo perfeito. O doce, neste caso, era a lembrança de suas últimas horas. Dizia “perfeito”, mesmo acreditando que isso não existia, era mais uma palavra para descrever que algo o fazia bem. E a moça o fazia. Fez. Correu.
Levantou-se. Começou a andar. Entrou na rua de casa e seguiu, sumiu em seu próprio limbo mental para tentar não se afundar novamente naquela que desapareceu sem deixar nome, endereço ou coração. Acostumado a afundar-se em coisas ruins, anestesiou-se por enfim entrar num mar tranquilo, mas logo veio o sol, trazendo a seca, e o deixando rastejando na terra árida. Tudo seria um talvez dali em diante, ele não saberia se poderia se entregar a outro alguém, pois a moça poderia simplesmente ressurgir, não sabendo ele como, trazendo tudo de bom que viveram naquelas quatro horas juntos - vaga esperança. Porém, ele não queria se prender a esta possibilidade, era uma das inúmeras que poderiam atingir sua existência pelo resto de sua vida.
Seguiu sem olhar para trás. Antes fossem memórias ruins, antigas companheiras, que o fariam logo esquecer a moça, no entanto, eram as melhores que o invadiam a cada novo passo. O que poderia acalmá-lo, pelo contrário, fez surgir-lhe um incomodo, um vazio. Olhos abertos ou fechados, a imagem do rosto da moça estava em qualquer lugar aonde seus olhos mirassem. Aquela mulher, corrigindo, a memória do que viveu com ela serviriam de porto para repousar durante tormentas. Mas o desespero do sumiço o atordoava. Não sabia se queria deixar a lembrança ocupar um quarto de sua hospedagem mental. Queria. Talvez fosse demorar algum tempo para se acostumar a isso, à ausência da presença daquela com gostaria de compartilhar outras experiências pelo resto de seus dias, mas foram necessários apenas alguns minutos para suprir esse vazio. Instantes após entrar em casa...

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