2015/02/24

carta no lixo ou a ausência de um título propício para expurgar ódio

Alberto, antes de tudo: Eu te odeio. Você sabe disso. Sempre soube. Passei a te odiar quando percebi que te amo. Digo (caneta de merda), te amava. E quanto tempo já passou desde aquele dia n…? Faz tempo. Anos suficientes pra gente alimentar e libertar aquele sonho jovem - e clichê, diga-se de passagem - de morar junto. No fundo, eu não queria o apartamento, o gato, o cheiro de pastel, os livros na mesma estante, o amor nem nada do que a gente viveu. Agora, se pudesse voltar e mudar, preferiria ficar sozinha com meus platonismos, me machucando sozinha sem prestar conta ou queixa pra ninguém. Você arruinou a minha vida (da melhor e da maneira possível). Hoje consigo apenas alimentar e libertar uma agonia que me faz lembrar do teu rosto e pensar em ódio.
Pra desgraça da nossa tragédia, nossa vida começou a apertar minha garganta com mãos violentamente pesadas e você sabe muito bem que fraquejo diante ameaças - nesse caso, sem origem certa -, e fujo. Apesar do medo por não saber aonde estávamos indo com tanta dor, não consegui cortar os laços de uma vez só. Fui me soltando aos poucos, sem que você percebesse. Fui falsa, sim, quando disse tudo aquilo no nosso último aniversário, mas acredite que foi apenas para não te magoar. Como se minha partida não fosse o suficiente pra te destruir. Pensando bem, você já estava em destroços quando te conheci e nunca antes tinha considerado tua bagunça nociva pra mim. Meus pulmões ignoravam tuas toxinas e eu ofegava, quase caia, mas continuava. Até que alguém trocou meus óculos e passei a enxergar o que me machucava. Alberto sabe muito bem que não jogo as coisas na cara das pessoas, só você faz isso, mas decidi tentar ao menos uma vez.
O problema é que eu sempre achei que tudo fosse sobre você. Teimava em centralizar o universo em você. Me preocupava com a sua saúde antes de tirar os meus pés do fogo. Você não pedia por isso, explicitamente, mas algo no teu olhar clamava por atenção. Capitu, Amy E., Emma, Jerôme e você, tudo gente corrosivamente magnética. Persuasão maior do que paixão. Não culpo os quatro por encontrarem pessoas como eu. Tantas vezes se fez de coitado e, apaixonadamente ingênua, me rendia. Maior que meu ódio, apenas minha raiva. Por você ser assim. Por eu aceitar. Por eu persistir nisso por tanto tempo.
Sei que esqueceu teu bloco de notas de propósito, mas não li tudo. Devia ter ali o segredo do teu cérebro, do teu coração, que nunca desvendei. Encontrei-o e joguei em cima da cama para fechar a janela e isso foi tempo suficiente pro Fiodor subir na cama e levar o caderninho como refém para algum de seus esconderijos. Dias depois, encontrei na cozinha uns pedaços do que costumava ser um bloco de notas. A única coisa legível, sem rasgos de dentes de gato, era algo de um dos teus rascunhos: 'Não, não tente me encontrar, stop!, não existo mais. Aquela pessoa que dormia ao teu lado só existe em lembranças, mas você talvez você consiga abrir meu peito e encontrá-la'. Li, reli, analisei e estranhei a data, dois anos antes da minha partida. Sua premonição literária talvez tenha funcionado ou fora apenas armação da deusa Coincidência. As coisas apenas acontecem e a rota da existência fez a gente colidir. Não que eu seja contra o que aconteceu conosco, criamos muita coisa boa, mas nosso universo parou de expandir. Entrou em modo reverso e tudo começou a apertar, não cabíamos mais no mesmo lugar.
Cansei de abrir meu peito até o fim e você… Eternas reticências para palavras necessárias.
Enfim, o gato está bem alimentado e agora acompanhado de Ekatierina, mais conhecida como Kat. Eles se amam, ao contrário da gente poucos dias antes da minha partida. Até te perguntaria se você me amou profundamente, mas não quero mais falar contigo. Quem lê sem me conhecer acredita que sou tão forte assim...
Ainda lembro daquela noite em que você começou a ler A Insustentável Leveza do Ser, enquanto eu lia pela milésima q. quadragésima oitava vez Intimidade, e reclamou imediatamente: ‘- Porra, de cara já fala de Nietzsche, é pra ferrar a cabeça logo no primeiro parágrafo.’ Lembro. Lembro de quando você trocou meu curativo nas costas, sem que eu, abraçada por Morfeu, porque começou a escorrer sangue no lençol. Lembro de muita coisa. E isso me destrói ainda mais. Espero que a distância destrua você.
Se meu masoquismo gritar abstinência, talvez te procure. Não acredite no talvez. Não espere por mim nem volte ao apartamento. Espere apenas que esta carta chegue a você no lixo.

Alice.”

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