2015/02/21

Requiem para um clichê de insegurança ou O carpe diem que durou tempo demais

S. e M. não eram as pessoas mais exemplares do mundo. Eram, na maior parte do tempo, bagunçadas, tanto sozinhas quanto juntas. Duas pilhas de caixas sem tampas que vento, chuva, sorrisos, olhares e o universo todo eram capazes de derrubar sem dificuldade alguma.

M. era movida por traumas e sonhos - fossem pesadelos ou daydreamings. Temia se arriscar, sempre teve medo desde que é capaz de lembrar de sua existência. Piscinas e coliformes, bicicletas e descidas, cozinha e madrugada, cachaça e coração. Tudo que pretendesse fazer precisaria passar por uma comissão julgadora encarregada de um turbilhão de etapas para aprovação. Estagnava mesmo querendo partir. Demorava-se. Até pra se distanciar do que odiava era preciso tempo suficiente para surgir em si, dentro de uma confusão de decisões, o arrependimento para uma escolha necessária. Precisava das outras pessoas. Queria não-agir, queria que adivinhassem suas silenciosas vontades e as satisfizessem por ela.

No tórax, perto do coração, sobre uma cicatriz, “carpe diem” marcava na pele de S. a filosofia gritada por seus pulmões famintos amor e falta de ar aos dezessete anos. A impulsividade adolescente responsável por tantos episódios imemoráveis, traumáticos e imaturos a perseguiam, mas ela corria mais rápido. Pra fugir do passado. Dela mesma se necessário.
Em uma dessas corridas, passou pelo caminho de M. e quis ficar.

Dentro das definições mais clichês, M. e S. se divergiam para aplicar o “carpe diem” em suas vidas. Sé “aproveitava o momento”, deixava se reger por impulso e desejo. Tinha receios? Claro que tinha, mas os escondia em buracos da bolsa e se jogava. O hedonismo, por vezes, cercava-a e ela nem tentava lutar contra. Enquanto isso, Miriam “colhia o dia” e queria estradas e escolhas que a levassem a um futuro próspero, planejava demais. Não conseguia aproveitar o momento presente, pois sua cabeça já estava no futuro. As sementes jogadas na terra recebiam atenção demasiada enquanto o resto do mundo se incendiava, transbordava, explodia e M. fingia não perceber por acreditar que suas atitudes e seus anseios não seriam afetados. Talvez essa desatenção fosse um meio proposital de chamar atenção, mas pouca gente tinha paciência pra abandar a dança com o furacão da existência pra se sentar ao lado de M. e ver uma planta brotar. S. foi exceção. Quis puxar M. pro meio do salão, mas se perdeu ao ver as unhas da outra todas roídas e pequenos cortes de ansiedade nos dedos. Sé apertou aquelas duas mão machucadas e acariciou-as até Miriam enfim parar de olhar pro futuro e se encantar pelas olheiras e pelos lábios secos da outra.

Do primeiro beijo, foram exorcizadas fraquezas das duas. M. agiu impulsivamente para expor a vontade nascida logo na primeira troca de olhares. Se não fosse pela influência inconsciente de Sé, Miriam amarraria a vontade de se jogar no colo da outra junto a seu cilício e se martirizaria ao fim de seus tempos. S. parou pra pensar, respirou, quis descansar ali.

É um ato sadomasoquista se abster do que é pra viver um romance tão belo quanto os melhores sonhos são capazes de imaginar, mas pode ser a dor mais suportável se o amor aquece, acalma, ilumina e engrandece tudo.

Por fim, as duas perceberam individualmente que a essência do ser nunca desaparece. Mesmo que fique escondida num canto escuro, permanece. O tempo começou a incomodar. A rotina passou a corroer o encanto dos beijos que ficaram ásperos demais.
Apressada, S. fez um algo que gerou em M. uma rebelião mental de dúvidas e medos.
Enquanto uma corria como nunca antes, outra se enterrava para esperar um amanhã indolor. Mal M. sabe que seu futuro ideal era a vida ao lado de S., que não teve calma pra esperar. Cada uma enfrentou o luto de um jeito e chegaram em tempos diferentes à mesma conclusão: "eu errei".

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