2015/07/13

O Nosso Eu

Mais uma canção sobre partidas

Cuspi tudo. Fiquei por horas com um gosto amargo na boca lembrando da tua desordem. Tentei agora contar quantas vezes pedi para você deixar teu creme de barbear longe da pasta de dente. Minha cegueira matinal ainda confunde as embalagens. Perdi o costume (por força do destino) de repousar minha cabeça por alguns segundos no teu travesseiro antes de levantar da cama, mas ainda não me desprendi do hábito de enfiar a mão sem olhar para pegar pasta e escova na primeira gaveta do armário do banheiro, que, aliás, assim como o resto da casa, não está tão cheia e bagunçada quanto antes. Hoje, só não está melhor organizada porque este é apenas meu quinto dia nesta casa, portanto não tive tempo para uma nova faxina, além da que você fez antes de partir, levando - quase - tudo que era teu - exceto o creme de barbear e as memórias -, após dois meses viajando para além do Rio Uruguai por um simples motivo: desintoxicar-me. Ou, pelo menos, tentar tirar você do meu organismo, mas meu sistema imunológico é fraco. Cara, rehab não adianta quando a pessoa insiste em percorrer as mesmas estradas onde injetou litros e litros de uma droga diretamente no peito. Cara, teu rosto ainda flutua no minha visão em qualquer lugar, como uma marca d’água daqueles screeners que você trazia pra casa. Em lugares iluminados, teu ébano olhar tem mais força para me cegar e me fazer enxergar apenas você. Em lugares escuros, escuto tua voz me guiar a algum lugar no passado onde éramos felizes. Pensei em falar contigo para nos darmos mais uma chance, mas, ao pegar o telefone, senti uma dor fantasma na mão que mirando teu rosto atingiu uma parede da sala na última vez que estivemos juntos aqui. A raiva novamente aflora, igual aquele cactus que você deixava num ponto cego na entrada da casa posto como se propositalmente para me machucar, e começo a correr para longe de mim mesmo, fugindo das lembranças daquela dolorosa despedida. O peso de tudo de bom que vivemos, apesar de alcançar toneladas, não supera nossa desgraça, que ainda me sufoca e obriga minha respiração a sugar o máximo de ar que meus pulmões não-mais-fumantes conseguem suportar. Você sabe, não tinha interesse em me tornar um fumante assíduo, não era minha idealização de rebeldia adolescente nem nada, porém me tornei um por causa da tua ingênua e nada forçada influência. Carteiras no criado-mudo, cigarros pós café da manhã, pausa entre episódios para fumar etc. Insisti no vício durante o tempo em que ficamos juntos para te sentir - mesmo distante. Para mim, não era fumaça que deslizava meu por sistema pulmonar, era você, e isso fazia me sentir vivo. Exatamente por isso, parei de fumar. Deixei a última carteira antes da fronteira em uma espécie de ritual de despedida, voltei e não senti falta (dos cigarros).
Péssima maneira de (tentar) te superar: escrevendo sobre nosso tempo juntos e voltando a esta casa. Felizmente, sei que nunca lerá isto e não me resta muito tempo neste lugar.
Abri o guarda-roupas e me senti incomodado ao ver a metade vazia até pouco tempo atrás ocupada com tuas roupas. Talvez por alucinação minha, mas teu cheiro permanece. Antes fosse só a casa a me afogar, mas o bairro todo está infectado com a tua presença. Lembranças everyfuckingwhere. Deve haver uma conexão intangível entre meu corpo e as memórias físicas, as ruas e a casa. As raízes de nossa existência se estendem por muitos metros, enroscando-se em minhas pernas e me puxando para longe do esquecimento. Na maioria das vezes, o que me surgem não são lembranças exatas do que vivemos, quando compramos aquele bonsai velho na loja da rua de baixo ou passamos horas sentados naquela pequena e abandonada praça perto do mercado conversando sobre Straub e A Arca Russa, por exemplo, são apenas sensações, como se eu pudesse sentir nossos felizes fantasmas soltos atirando amor para todos os lados, me atingindo com sorrisos, carícias e tudo aquilo que ao ser lembrado me corrói cada vez mais.
Está na hora de eu deixar o nós do passado onde deve permanecer e migrar sozinho para outro lugar e criar um novo eu, um novo nós - com outro alguém. Ainda tenho 26 dias nesta casa antes que a nova família de inquilinos chegue, mas pegarei minhas coisas daqui a pouco e procurarei por um quarto de hotel, que, espero, esteja amaldiçoado com qualquer ser que não seja você. Para os novos residentes deste casa, uma mãe e duas crianças, deixo nossos fantasmas amorosos e o creme de barbear na gaveta, para quem sabe o agora garotinho use antes de seu primeiro encontro. Para você, deixo apenas o passado.

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