Erica disse que queria conversar antes do filme e imediatamente minha cabeça instituiu estado de emergência. Os três mendigos surgiram para me acompanhar pela Carlos Cavalcanti entoando um hino mórbido, creio, em latim, algo com “tragoedia… segregationem… finem… existant...”. Essa coisa de imaginar o pior, sofrer antecipadamente, era comum para mim, por mais que estivéssemos bem. Atualmente, muito bem. Talvez ela só quisesse reclamar do trabalho, mas eu cismo em sempre esperar pela desgraça. Erica chegaria, fria, sem abraço nem beijo, puxando-me com seu olhar intraduzível; diria que não aguenta mais, que a liberdade que vivemos não é saudável para nosso amor - nem nunca foi, só nos convencemos de que era para não despertar desafetos entre a gente-; que precisa se prender a alguém com correntes de ferro, não com fitas de cetim delicadamente entrelaçadas entre nós duas; [enquanto eu, quieta, apenas ouvia seu monólogo raivoso] que minha falta de otimismo nos afasta de nós mesmas; citaria alguma frase de Do Amor E Outros Demônios, seu livro favorito, mesmo que não se adequasse à situação, porém poderia haver alguma analogia/metáfora/não sei a diferença que, bem no fundo, fizesse algum sentido; e partiria, mas, no momento que eu hesitasse em segui-la, pararia, olharia no fundo de meus olhos e, convicta, sentenciaria “Lygia, não!” e seguiria seu caminho para longe de mim. Isso tudo poderia acontecer em outra realidade ou ocasião, eu sabia muito bem de nossos problemas, principalmente dos meus, portanto parte de mim já estava pronta para esse confronto. Restava-me esperar. Trocar o tipo de nó, as fitas pelas correntes, tomar chá de otimismo cinco vezes ao dia etc dependeria de tempo e disposição. Como não consigo controlar o tempo, ele apenas flui, teria que encontrar motivação para mudar a mim mesma. Não digo que morreria ou faria “qualquer coisa” por ela, mas quero mante-la em meus braços por mais tempo, então disposta estou a eliminar as partes podres de meu organismo, e não sou poucas, aí entra em ação o tempo.
Ao chegar na Cinemateca, entrei, segui ao fim do corredor principal para tomar água e vi que a sala ainda estava fechada exibindo outro filme. Mesmo se aberta, teria que esperar por Erica em outro lugar para conversarmos. Quando retornei ao corredor, ouvi uma voz conhecida, mas não era a de Erica, era uma que não gostaria de encontrar naquele lugar nem em lugar qualquer, era uma que eu queria manter distância. Não tinha como fingir que não era comigo, pois havia mais ninguém ali. Virei-me e disparei um sorriso tão falso quanto a barba usada por Tertuliano Máximo Afonso ao espionar a região do apartamento de Helena e Daniel. Três anos passados e eu sabia que o rombo que causei em seu peito era maior que ela mesma com seus mais de 1,8 metros. Nossa despedida fora marcada por palavras dela que pretendiam ter caráter agressivo, violento, mas eram apenas descrições do meu ser na época. Eu realmente fui uma cretina, a cold hearted bitch, chantagista emocional, egoísta e sentimental demais, eu era tudo isso. Era. Assim como tempo fecha feridas, também transforma personalidades. As pessoas têm a capacidade de, auxiliadas pela passagem de tempo, mudarem a si mesmas conforme suas respectivas vontades e necessidades, ainda mais quando se trata de se encaixar na vida de alguém. Cada indivíduo cria um personagem diferente para conseguir uma vaga no cotidiano de alguém. Para J., desenvolvi uma persona muito detestável propositalmente para que ela não despertasse sequer uma gota de amor por mim, mas ela amou, e como amou!, como amou?, de um jeito que, até então, não consegui amar. Mais que amor, era admiração, ambos improváveis para serem sentidos pelo que eu era na época. Isso me incomodava, não entendia e continuo sem entender como e porquê ela sentia aquilo tudo por uma pessoa que não sentia da mesma forma. Não queria retribuir à altura, porque não despertaria sentimentos falsos para prolongar um fraco sentimento que, da minha parte,passava muito longe das definições comuns de “amor”, mesmo que muitas vezes isso ocorra entre muita gente, não achava que o tempo fosse digno de mero esforço para ser prolongado, e não me sentia confortável ao lado de J., era um tipo de repulsa, ela tocava meu braço e eu queria gritar “não me toca”, Não a amava. Só queria companhia para xingar o mundo e foi J. quem apareceu depois de eu ter sido pisoteada e jogada no caminhão de lixo. Minha vontade era desaparecer da vida dela logo após o primeiro encontro, mas ela se mostrou se importar tanto comigo que me convenci a ficar por mais um mês ou dois por puro comodismo e narcisismo para zerar minha carência, mas, quando percebi, já estava perdida naquele par de castanhos há quase um ano, tratando-a de um jeito que nenhuma pessoa carinhosa merecia ser tratada. Anos depois, descobri que ela havia enfim me superada, aleluia!, e estava felicíssima com alguém que a tratava de maneira decente. Trocamos ligeiros cumprimentos, como se fossemos apenas ex-colegas de escola, e ela com alguma dose de cinismo, possivelmente de uma garrafa que abandonei em sua casa, perguntou se eu pegaria um filme com “minha gata”. Respondi que felinos não eram permitidos nesses espaços e J., como se ainda tivesse intimidade comigo, deu um leve tapa em meu braço e disse que o Carlos Alberto ouvir essa piada na praça. Sem que eu perguntasse, informou que tinha que voltar para sua namorada, que estava no sofá em frente à bilheteria. Despediu-se com um “até depois” e deixou que minha neurose escrevesse o roteiro dos momentos depois do filme: eu e Erica, descendo a Cavalcanti, seríamos alcançadas por J. e sua namorada (sem a minha saber que uma delas era minha ex), começaríamos a dialogar sobre Casanova e a Revolução, e, em um instante inesperado, J. daria um jeito de cinicamente inserir na conversa que eu quebrei seu coração, da mesma maneira que uma personagem do filme. Antes que eu terminasse de prever o futuro, fui interrompida por um alerta de mensagem. “10 min, tô chegando”. Para não alimentar mais neuroses, sentei ao lado da velha e inutilizada catraca e comecei a passear pelas redes sociais. Um convite para ver uma banda que odeio num bar que também odeio, séries maravilhosas esnobadas novamente nas indicações de uma premiação de TV, fotos de gatinhos, e, dois minutos depois do início da jornada virtual, vi uma foto de uma das centenas de poesias espalhadas pela cidade postada por Erica, era uma sobre crime e amor. Sob a imagem, um comentário de uma pessoa que Erica não conhecia, mas eu sim. Quer dizer, ela não conhecia pessoalmente nem possuía relações virtuais, mas ouviu muitas histórias sobre B, principalmente a em que ela cagou figurativamente na minha cabeça e me jogou no lixo. Não sei porquê B. encontrou Erica para redigir um pequeno monólogo sobre delitos cometidos ao “deixarmos de amar alguém” em sua foto. Na verdade, B. poderia não fazer ideia que Erica é minha namorada, mas, ah, as neuroses… Antes que elas, as neuroses, chegassem à Cinemateca, Erica chegou ofegante e levemente suada e pediu desculpas pela demora. Abraçou-me demoradamente para morrer em meus braços até normalizar sua respiração. Perguntou se eu estava bem, respondi que meus últimos minutos haviam sido um tanto quanto esquisitos. “Você não imagina quem comentou em uma foto minha”, disse. Reclamei que antes fosse B. a única ex a aparecer hoje. Saímos para fumar e pela janela apontei J. Erica ligou a pessoa e o nome aos relatos que fiz sobre nosso tempo juntas e não demonstrou estar incomodada com a presença dela, mas, mesmo assim, perguntei se queria ir a outro lugar e respondeu que não seria uma pessoa dessas a impedi-la de ver E. Scola de graça.Cabisbaixa e receosa, quis saber sobre o que ela queria conversar comigo. Nos segundos anteriores a sua resposta, minha cabeça explodiu de novas possibilidades. Para a infelicidade de minhas neuroses, Erica só queria perguntar se eu estava a fim de ser uma das produtoras e roteiristas de seu novo projeto.
Analisando as histórias que escrevi e protagonizei com J. e B. e a que escrevo e protagonizo com Erica concluo que fui e sou três pessoas muito diferentes, contudo ainda sinto todas como membros de todo meu eu, mesmo que possa ser difícil dizer que cada uma tão diferente da outra integra meu ser. Poderiam afirmar que é contraditório distinguir-se tanto de si mesma, mas eu sou assim, uma bagunça, uma confusão diferente para cada novela.
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