Chegariam da escola. Almoçariam o de sempre porém adorado prato que suas respectivas mães preparavam. Assistiriam a seus programas de televisão favoritos antes da sagrada sesta vespertina. Cochilariam por meia ou uma hora até que primas(os) e/ou amigas(os) chamariam para brincar. “Você não vai sair sem escovar os dentes”, diriam assim ou algo parecido suas mães. “E ‘ai’ se voltar depois das seis”, alertariam. Pegariam suas respectivas bicicletas. Começariam a rodar pelos seus respectivos bairros até que alguém (do grupo dele) sugeriria um passeio até o 21 de abril, sem antes passar em casa pedir sete reais para mãe, pai, tio, tia, vó, vô, para pagar a entrada no clube; e descer até a Bapka (do grupo dela), pegando “aquela rua da Kabel” para pegar atalho pelo carreirinho daquele bairro estranho. Apostariam corrida até seus destinos, sabendo os locais em que adversários tinham como pontos fracos, para tirar vantagem disso, pedalando com mais velocidade nesses locais. Ao invés de seguir diretamente até a avenida principal do bairro, ela pegaria um atalho até a Wadislau. Ele não subiria pelo Contorno Norte, cheio de veículos em alta velocidade, como fariam os demais competidores; ao invés disso, daria tudo de si na subida da Nicolau para alcançar a Wadislau, e, ao passar sobre o viaduto, veria como estariam os demais ciclistas. Na descida da igreja São João Batista, contaria com o apoio da gravidade para ir com mais rapidez; empolgada, com vento lhe afagando o rosto, feliz, não perceberia o novo buraco na rua a cairia desgraçadamente, ficando com a cara estourada e pernas e pés também machucados presos a bicicleta. Ignorando a larga vantagem que tinha perante os demais, pedalaria incansavelmente na reta antes da subida da igreja até que presenciaria um acidente de bicicleta, veria um Marrocos vindo na direção da menina e um Lamenha no sentido oposto. Tentaria se levantar sozinha, em vão, com o queixo aberto jorrando muito sangue, e se arrastaria até o acostamento - naquela época ali ainda não havia calçada decente, só delgados trechos de terras nas laterais da avenida - com a ajuda de um estranho. Ambas competições seriam adiadas a fim de amparar a acidentada. Alguém da turma dela voltaria voando ao Buenos Aires para chamar algum adulto que saberia o que fazer. Pouco menos de dez minutos depois, a mãe de nossa protagonista chegaria de carro, pensando o pior, e daria um sermão na filha assim que visse que ela estava viva - apesar de coberta em sangue: “Quantas vezes já falei pra você não ir muito longe de casa com essa bicicleta?”. O garoto assumiria o papel de testemunha da defesa, dizendo que viu tudo, e afirmaria que não foi culpa dela, mas sim do enorme buraco, “aquele ali”, apontaria o culpado. A adulta ofereceria uma recompensa por sua benfeitoria, mas o menino negaria dinheiro, desejaria apenas que a mulher permitisse que, se a menina desejasse, eles pudessem brincar novamente, quando desvendassem uma maneira de se encontrarem sem que precisassem passar a pé ou pedalando pela avenida de ônibus que não exitariam em atingir alta velocidade não importasse a presença de crianças na calçada, melhor diria, no estreito acostamento. A menina também demonstraria interesse na possibilidade de um reencontro, independentemente se ele dissesse algo antes, e diria o bairro onde morava. “Minha tia e minhas primas moram lá! Você conhece a Andy?”, perguntaria ele. “Sim, ela é da minha sala”, contaria a garota, ainda com o queixo encharcado de vermelho. “Você é sobrinho da Neu? Lá do Monterrey?”, questionaria a mulher, e diria na sequência: “Muito obrigado, menino, mas, vamos, filha, a gente precisa ir até o postinho cuidar do teu queixo”. Poucas semanas depois, na segunda semana de maio, ele iria ao aniversário de sua prima Ari, irmã de Andy, e, assim que pedisse “benção” a todas as tias e a todos os tios presentes, esconderia alguns doces nos seis bolsos de sua bermuda e sairia para brincar na rua com a criançada. Ainda com curativo e pontos no queixo, sairia para ver o resto de sua turma andar de bicicleta na rua, não se recuperaria tão cedo do trauma da queda, e repousaria sob a sombra da grande árvore em frente a casa de sua colega de turma. Mesmo de longe, desejariam as duas crianças a troca de olhares e sorrisos. Seriam muito novos para cogitar a existência de “amor” ou o que quer que motiva casais dos filmes que assistiam nas tardes chuvosas presos em suas respectivas casas a lutarem para ficar juntos, não entenderiam tão cedo, contudo, gostariam de manter presença, por mais que a convivência até aquele domingo de maio se resumiria apenas a trinta minutos, na margem de uma via movimentada, após um acidente de bicicleta. Desconhecendo a existência ou o significado da palavra, sentiriam empatia um pelo outro. No aniversário, trocariam sorrisos receptivos quando seus olhares se cruzassem. Cansado de correr, sentaria-se ao lado da menina e perguntaria se ela gostaria de alguns doces da festa. Ela seguiria o estranho costume que tinha e teria por mais alguns anos de não comer em frente a estranhos e gentilmente rejeitaria brigadeiros e dois amores. Ficariam ali, sentados lado a lado, acompanhados na maior parte do tempo pelo silêncio na sombra d'árvore, enquanto o resto das crianças continuava a pedalar, correr, pular, chutar etc. Compartilhariam suas desventuras escolares e ela perguntaria sobre o motivo de ele estudar tão longe, poderiam estudar juntos, ela argumentaria, e, mesmo adorando a possibilidade, ele responderia que sua mãe preferia assim. Falando em progenitoras, a dela chegaria para o aniversário, pedindo que a filha a acompanhasse para falar com Neu e suas filhas. O menino as acompanharia e apresentaria sua mãe. As adultas se cumprimentariam e a tia da aniversariante descobriria que seu filho ajudou uma desconhecida a sair do meio da rua após uma queda de bicicleta. As duas mulheres conversariam até ser anunciado o momento de cantar parabéns. A amizade entre as duas adultas surgiria, beneficiando assim o contato entre as duas crianças. Chegaria a adolescência, acompanhada pelos dramas efemeramente eternos dessa época, encontrariam o conforto, a fuga, o afeto, o carinho, a amizade, o abraço, o beijo, o amor, a dúvida, outros abraços, a frustração, a saudade, a confirmação… Cresceriam e se mudariam para a capital, juntos, seriam conhecidos como um daqueles casais exemplares que se conhecem na infância e seguem juntos por muito tempo ou, talvez, até o fim.
Porém, um evento ou uma série de eventos cancelou o encontro, deixando que tomassem outros tombos e encontrassem outras dores, outros amores. Tudo o que poderiam viver, tudo o que poderiam sentir, se a colisão ocorresse naquela específica tarde no meio de suas infâncias, seria muito diferente se o acaso os unisse seis ou 533 anos depois. Talvez não se encontrariam em momento algum da vida, o que acontece com muitos possíveis romances, mas haveria outra pessoa para um amor tão encantador quanto aquele que surgiria numa tarde ensolarada e ensanguentada de abril na Wadislau.