2015/09/21

Indigesto

Underneath the skin there's a human
Buried deep within there's a human
And despite everything I'm still human
But I think I'm dying here

Daughter, Human


Antes de machucar e abandonar (não exatamente nessa ordem, dependo do caso) quem estava a seu lado, a ponto de não conseguir - nem ao menos cogitar - pedir para voltar, pedir perdão, já tinha machucado e abandonado a si mesmo há tempos. Quando percebeu o desmoronamento, já estava com um pé preso numa coluna de metal pesado reforçada com desprezo e remorso, e conseguiu apenas se deixar ser engolido pela destruição
Apesar de destroçado, mantém firme seu orgulho, talvez o pouco de força que lhe reste é aplicada nisto, mostra que (ainda) é forte, que não sente falta, que não precisa de companhia, e talvez até convença outrem ainda com pouca intimidade que é autossuficiente e consegue se manter em pé e lúcido sozinho. No fundo de uma caverna que só ele conhece a entrada e permitiu até hoje o acesso de um número mínimo de pessoas, sabe-se que todo o esquema de um arranha-céu fundado autonomia e segurança é um holograma  para uma cabana de cobertores coberta por aflição e carência, vizinha de uma represa de lágrimas.
A cidade, a comida, a solidão, a companhia, o quarto, as ruas, os cigarros, o álcool lhe fazem mal, mas ainda assim insiste. Por mais que odeie tudo isso, no sentido de não suportar mais, sabe que sem isso tudo não é. Não existe. De qualquer jeito, se está bem em harmonia ou mal em melancolia, não existe - da maneira que gostaria de existir. Eis um paradoxo, não está satisfeito com o arranjo de sua existência, contudo desconhece uma forma, ou um caminho para tal, que poderia deixá-lo completo.
Não consegue engolir o que é, vomita, tenta novamente, os pedaços de sua essência que antes deslizavam suavemente pela garganta, como a mão de alguém que afaga o rosto do primeiro amor, passaram a agarrar a frágil carne e machucar todo e qualquer pedaço de sua mente, como os últimos dias de um romance arruinado.
Não se deve perder tempo para julgar a quem se atribui a culpa pelo desencadeamento da avalanche de estragos, pois várias pessoas seriam responsabilizadas por algo que fizeram, algumas até sem intenção de dolo. Memórias infelizes foram alocadas em algum canto do interior do ser em questão e incharam a ponto de causar uma explosão e muitas cicatrizes. O acumulador de mágoas desaprendeu a administrá-las, e, durante um porre possivelmente, deixou as gaiolas abertas dentro de seu peito e, com mãos trêmulas, sem controle, conseguiu apenas conviver com todas elas, deixando que o arranhassem e falassem por ele. Não culpava o passado nem o que as pessoas lhe fizeram ou disseram, a culpa era do conjunto que possibilitou tudo desandar de forma tão particular e desastrosa.
Pensava em portar um artigo de trinta e quatro páginas sobre como sua cabeça funcionava e consequentemente funcionavam seus comportamentos sociais ao se apresentar a alguém, fosse amizade ou amor em potencial, para que não se magoassem tão facilmente - quanto ele se magoava, às vezes, por nada - e entendessem que, se quiserem tal companhia, estariam entrando numa tempestade natural: descontrole e desespero.
Não espera compaixão de ninguém, nem ao menos que insistam em permanecer a seu lado por dó de uma essência tão desgraçada, deseja que fiquem porque sentem interesse por alguma de suas qualidades... Sim, tem algumas e acredita que são grandes… Não quer forçar ninguém a ficar e pensa em rasgar todo histórico vivido com a outra pessoa, caso julgar o distanciamento melhor que a dor de estar ao lado de alguém cada vez mais perdido. Não sabe se ainda é capaz de conviver em paz com quer que seja sem inesperadamente entrar em crise e desaparecer, mesmo que seja um desaparecimento apenas interno e não seja mais possível enxergar seu núcleo.
Por fim, chegou a um lugar em seu deserto onde não é capaz de fazer uma mensagem atingir qualquer resposta. A subliminaridade de seus gestos não tem mais o mesmo alcance, se é que tiveram alguma força anteriormente. A redoma de isolamento criada por ele mesmo torna delicado qualquer movimento de aproximação, que arrisca não só o distanciamento a se arruinar, como também todo o resto.

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