2015/11/30

Veredito - Parte II

- Testemunha número dois


Acho que a última vez que te vi desconsertado desse jeito foi quando saímos juntos pela primeira vez sem a turma do bairro, como um verdadeiro encontro. Você sentado todo sem jeito encarando as mãos repousadas em seu colo batendo os indicadores nas coxas e lançando olhares ligeiros na minha direção. Só que agora, no ônibus, você tinha um novo hábito. Se eu te perguntasse isso, sobre por que começou a roer unhas, responderia que era apenas mais uma mania para controlar sua ansiedade. Exagerado. Ah é, exagero, aí uma coisa que você repete demais em sua vida. Ao menos, no tempo em que convivemos, mas fazem tantos anos que certamente você não é mais o mesmo. Com toda certeza, eu não sou mais aquela de antes. Era coisa demais pra sustentar, a sua intensidade exagerada nas coisas. Parece que você gostava de ser assim, estupidamente complexo e intenso. Cara, devia ter falado naquele tempo: Para de ser assim. Era preciso ter muita paciência pra lidar contigo. Além de paciência, eu tinha afeto, muito, que me fazia acreditar que sua problematicidade - minha pesquisa de mestrado me faz usar essas palavras diferentes, aliás, você adoraria saber que agora concretizo minha pós-graduação, mas não temos mais a mesma intimidade para conversarmos (sobre nada) - era apenas um curto empecilho que eu devia enfrentar, tolerar, ignorar para ficar contigo. Eu acreditava que valia a pena. Acreditei. Acho que deixei de dizer muita coisa enquanto estivemos juntos pra evitar discussões. Tenho a impressão que você partiu pensando que estava tudo definitivamente acertado entre nós. Que o término fora um acordo recíproco e pacífico. Pacificidade era o que não havia em mim naquela época. Você era tão decidido de tudo que enxergou um desfecho tranquilo onde havia uma cratera siberiana. Deixei relacionamento cheia de raiva. “Raiva por estar longe de mim”, você pensaria assim, eu sei. Não seja convencido como antes. O mundo não gira ao seu redor, Plutão. Sei que você tinha uma cacetada de traumas e problemas e conseguia aos poucos superar tudo isso, belo exemplo de superação, mas, cara, seu egocentrismo é corrosivo. Ego inflado e distanciamento se tornaram para mim componentes repulsivos do seu organismo. Apesar dessa montoeira de coisa que me afastava de você, apesar de tudo, eu gostava de você. Demais. Seu magnetismo tinha, ainda tem, um efeito tão desgraçado que falo de você quando devia estar falando de mim ou qualquer outra pessoa. Por exemplo, meu marido. Não quero reduzi-lo apenas a um fato, mas, para que você saiba, ele foi o maior antídoto que eu poderia ter encontrado pra te tirar do meu sistema. Descanse em paz.

Anos depois, agora, depois de vários tapas na cara que levei da vida, percebi que também errei, sempre tentando encontrar os defeitos nas pessoas para julgá-las e persuadi-las a mudar para o certo - segundo o que eu acreditava ser correto. Pensando bem, você também fora bastante paciente pra lidar comigo. Mas, poxa, éramos tão jovens e cheios de certezas que não passaram de impulsos momentâneos.

Agora eu olho pra você, depois de tanto tempo, e vejo um homem tão diferente daquele jovem que conheci na casa daquela nossa amiga, que hoje mora em Chicago - é, alguém de nosso bairro tinha que dar orgulho internacional pra gente. Não sei se é a roupa ou a maturidade que vaza de seus olhos, mas algo em você traz um novo encanto. Estamos aqui em silêncio e começo a encarar seus rosto. Algo diferente. Morro de vontade de perguntar o que é essa cicatriz na tua cara, Tony Montana, mas tanto tempo distantes fez com que eu desaprendesse a falar contigo, perdesse a intimidade e tudo mais que havia entre e dentro de nós. Tenho certeza, baseada no quanto te conhecia, que tenta julgar um réu para nosso crime, mas, pense bem, a culpa não é minha nem tua, é nossa.

Inesperadamente, a vontade de te abraçar entrou pelas janelas do ônibus, não por, sei lá, te querer de volta, não, mas por saber que alguém da sua família morreu, e tenho certeza que você precisa de ser abraço, porém a primeira coisa que consegui fazer foi dizer:
- Você sentou em cima do meu vestido.

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