2016/01/15

Água fria

Baseava-se em marés o que sentia. Seu corpo permanecia enterrado em uma praia nada paradisíaca, sem palmeiras nem cavalos brancos, apenas pedregulhos da existência e a areia cada vez mais áspera e movediça de passado. Memórias permaneciam distantes por algum tempo, tão longe que alcançava o recife em vias de morte, que devia estar coberto por água salgada, mas que ressuscitava com a maré vindoura, reaproximando-se da areia e empurrado todos os entulhos de um barco naufragado sobre o peso morto encoberto. As peças que restavam da embarcação poderiam servir para reconstruir o que afundou, ou algo menor, mais resistente, e, talvez, ter potencial para navegar por mais tempo e por mares mais turbulentos, mas as mãos para consertar eram ansiosas demais para segurar os componentes, que, de alguma forma misteriosa, estavam todos enroscados a pesada âncora da navegação, que, em algum buraco no fundo do mar, puxava tudo para junto de si.
Desta vez, não a primeira nem a única, as ondas precisaram de pouco menos de quatro dias para inundar o peso morto na areia, no terceiro dia, já alcançavam os pés e começavam a atormentar os pensamentos, e, no quarto, já inundavam cada pedaço do ser, afogavam cada milímetro dos pulmões, com reminiscências do passado.
Ninguém sabia a localização exata desta praia, mas podia afirmar-se que era próxima a um dos polos deste planeta, avaliando o tipo de areia e de vegetação (zero), não era possível dizer se era Norte ou Sul, o que sabia-se muito bem era que a água permanecia em temperatura negativa, então, mesmo quando a maré recuava, o corpo ainda permanecia molhado e congelado. O líquido frio que insistia em não evaporar ou escorrer para longe era pior que a maré, porque - a água - incomodava a possibilidade de distração, de pensar em tudo que não fosse a água, a maré, as ondas, ficava na pele, penetrava, qualquer ato ou pensamento era acompanhado da água e tudo que a envolvia, tudo que a lembrava, tudo...
O corpo continuava preso na areia, mas a maré recuou, alguns meses após a última grande onda foram necessários para o pedaço de carne humana se secar e descobrir que o grande oceano estava a uma distância confortável, conseguiria se preparar caso ela retornasse com força.
Por estar com o corpo enterrado, não conseguia ver o que havia atrás de si, e, quando pensou estar livre da agonizante maré que ia e vinha destruindo sua existência mais e mais, mal sabia que havia um vulcão pronto para explodir nas suas costas, a lava fervendo de outras lembranças. As possibilidades de destruição nunca cessariam, deveria apenas aceitar que a maré, o vulcão ou qualquer outra força alcançaria seu inerte corpo. Afogando-se, queimando, não conseguia evitar sua própria destruição. Reconstrução. Onda. Vai. Volta. Destruição.

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