2016/06/30

Obra do Tempo ou Kokedama


“Sentiu-se oco, a sensação de leveza se misturando ao sentimento inquietante de um ser sem raízes: se abrisse as veias não sairia nenhuma gota de sangue, não sairia nada.”

A Mão no Ombro, Lygia fagundes Telles


Parece que aquele show foi há menos de um ano, sinto que perdi, além do controle da minha vida - de vez -, a noção de tempo. Sinto que não era eu ao seu lado, era outro homem? Eu - definitivamente - era outra pessoa naquele junho?, outubro?, "I remember december"?, ao menos internamente, afinal a mesma cara estragada coberta por um casco de bad guy (talvez só eu mesmo veja isso), mas agora são outros ideais, outras ideias, opiniões, outros receios, rancores, desejos, apesar de sentir ainda algo por Ela talvez muito maior do que senti ao seguir rumo à Praça Liberdade naquela noite de quinta-feira, madrugada de sexta (o tempo ao mesmo tempo que importa tanto para essa história fica cada vez mais líquido, distante, insustentável, igual eu).
Agora, anos depois, quem usa um óculos de hastes vermelhas é outra ponta. Apesar das lentes, ainda não consigo enxergar os detalhes que causaram o distanciamento, as letras são muito pequenas - ou são apenas linhas aguardando alguém preenchê-las com o desfecho ideal para esta história, ou aquela.
Equivoca-se quem afirma que estivemos em um relacionamento sério, namoro etc, enfim, nesses padrões sociais, afinal não, não dá pra chamar de relacionamento sério, muito menos reduzir a um pequeno caso. É como chamar uma pequena árvore suspensa de bonsai. É diferente, é complicado. Da mesma maneira que tentei ter um relacionamento com ela, falhei - quando percebi ter estragado tudo mais uma vez - em cuidar dessa tal forma de vida composta de árvore e recipiente, não consegui, e de um cactus, talvez a forma de vida mais duradoura em minha vida nos últimos anos, e mas morreu num acidente envolvendo gatos e comida, não me perguntem como isso aconteceu, mas me perguntem, por exemplo, o nome dos gatos.
As minhas intenções a respeito desse texto mudaram muito desde a primeira frase escrita, lá naquele ano tão distante, “Ela era uma pessoa que me agradava pelas coisas que gostava”, se era pra ser um conto clichê de “boy meets girl”, uma carta cheia de confissões, um artigo sobre amores líquidos ou o primeiro capítulo de um romance muito maior, não sei o que queria; assim como minhas intenções a respeito da mulher que motivou tudo isso mudaram, assim como eu e ela mudamos - individualmente -, não sei se o que queria condiz com o que quero, aliás não sei exatamente o que quero - ou espero - disso tudo. De uma escrita intencionada a um conglomerado de aleatoriedades sobre uma mulher e o que ela pode causar em mim em todos os tempos verbais vividos até o presente, o tempo dilui isso tudo e transforma em algo novo, não só o texto, as vontades também. Ao menos na minha cabeça, não mais uso de palavras nestes capítulos para conquistá-la ou mostrar o quanto estou arrependido por ter arruinado tudo, “olha como me sinto culpado, tenha dó de mim e volte”, não, não é isso. Cinismo é algo delicado quando exposto ou anunciada sua ausência, cinismo e mentira são afins. O tempo esculpe tudo ao redor de nós, digo, o decorrer dele molda cada curva, cada aresta, cada detalhe, com o nosso empenho em alterações ou não.
Sonhei que a encontrei num restaurante, ela e uma mulher, uma conhecida paulistana, descobri que estavam num encontro e isso deveria me derrubar? O sonho terminou quando, elas, de mãos dadas, estavam sentadas juntas, abraçadas, e a outra mulher repousava sua cabeça no ombro d’Ela. Acordei e não senti raiva, nem naquele dia, nem depois, muito pelo contrário, não, não fetichizei o relacionamento delas, não, fiquei muito contente que, ao menos no sonho, vi Ela soltar um sorriso de tranquilidade, de “estou no lugar certo”, de um jeito que não sorriu ao meu lado em tantos anos. Acabou o sonho e restou a sensação que eu não era capaz de completá-la, talvez nunca seja, mas fico contente que pelo menos em um sonho ela estava bem, felizmente bem. Era um restaurante, ou um café, e as duas se levantaram, havia uma grande vitrine que mostrava a rua, uma rua de paralelepípedos, e vi as duas saindo juntas, a outra mulher segurando no braço dela, protegida. Entreolharam-se, sorriram uma para a outra, sumiram. Sonhei poucas vezes com ela, porque tenho a impressão que vivo numa realidade onírica há anos, não me refiro a este sonho como uma ambição, mas algo que me questiono a cada momento se estou acordado ou dormindo, paralisado. Sinto como se fosse o sonhador de Noites Brancas, envolto na névoa, inspirando a brisa do Rio Neva, sem saber ao certo se Nástienka era real ou um delírio extraído de um desejo enraizado no profundo do subconsciente. O sonho acabou. O sonho acabou, mas arrastei por dias a sensação de que ela realmente, enfim, encontrara alguém. Alguém que não caísse no primeiro buraco da estrada. Alguém que tivesse gravidade, força, alguma grandeza física suficiente para se manter em sua órbita. Alguém que não eu, loose end. Dói, não seu encontro com alguém que não se perdesse nas esquinas labirínticas de um relacionamento, mas sua ausência mesmo platônica na rotina dos meus dias perdidos. Outra noite, outro sonho. Não me lembro se foi Ela ou alguém - se não ela, não importa quem - que me deu a notícia: Ela estava de mudança para Islândia. Era isso. Não me lembro o motivo da ida, mas aconteceria anyways. Não sei se ambos sonhos habitavam a mesma realidade, mas o alívio por vê-la bem se deixou ser substituído pelo desespero de nunca mais, nessa cidade, correr o risco de encontrar Ela na rua, do outro lado da faixa de pedestres, começar a hiperventilar ao vê-la vindo na minha direção.
Os desencontros das histórias - a real e a transcrita - ganham raios cada vez maiores, expandem-se com o tempo, lembro-me da professora de Física, na sexta série, nos explicando sobre o fenômeno da dilatação, exemplificando os trilhos de trem com um espaço considerável entre cada um, sem engrandecê-lo, como se fosse algo banal, mas essa aula permanece em minha memória como uma anotação no canto de alguma página, sobre a importância do tempo para a dilatação e a corrosão dos objetos, neste caso, dos relacionamentos. O texto se expandiu, dilatou-se, corrompeu-se, perdeu-se, graças ao tempo e a mim, que me expandi, dilatei, me corrompi, graças ao tempo, que agiu como si mesmo, fluiu.
Esse texto não é mais apenas sobre Ela, ou sobre mim, está sobre nós, e não encontro mais a convergência entre Literatura e vida, cada uma foi para um lado diferente. Numa terceira rota, encontra-se Ela, desencontrando-se no estado vizinho, numa noite branca, no mar da Groênlandia ou wherever way, não sei. Me perdi no meio da história, sem saber se estou distante do fim.

I just let the silence swallow me up
The ring in my ears tastes like blood
Asking aloud, ‘Why you leavin'?’
But the pavement won't answer me
Something, Julien Baker


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