Assim como suas palavras, sua mochila vivia na desordem. Ele se repete muito, insiste em frases como se quisesse implantar isso na memória das pessoas (ou em sua própria cabeça, porque, meu Deus, como ele tem uma memória ruim).
- Ao invés de falar só dos moradores de rua, a gente podia mostrar também o que os comerciantes fazem a respeito, mas sem bancar os bons samaritanos que defendem a ordem e a higiene das ruas, isso soa meio fascista. Vai começa com “Em Curitiba, são mais de...” – sem folego, parou de falar encarou a parede como se estivesse confabulando uma continuação. Interrompi:
- Como que é?
Ele continuava encarando o nada. Deixei-o pensar, até que:
- O que eu falei mesmo?
- Quando?
- Agora! Não lembro.
Dentro de sua bolsa, sempre presente, seu caderno de anotações. Fosse para rascunhos de poemas e contos, lembretes da faculdade ou rabiscos abstratos, o caderninho de capa preta com “Devolver para: lixo” na contracapa estaria em sua mochila. Se não estivesse com o caderno, pode ter certeza que ele teria no bolso alguma nota fiscal de qualquer coisa ou qualquer flyer recebido na rua, que usaria para depositar suas palavras. Isso, quando sem caderno ou papéis, não se empenhava para digitar no celular (coisa que detestava e morria de preguiça de fazer) e salvar na pasta de rascunhos. Ele se desespera para registrar seus pensamentos antes que sua inconfiável memória jogue tudo no além.
Eu não tenho nenhum afeto romântico por ele, apenas aprecio sua companhia e amizade. Sua impulsividade... Na maioria do tempo, ser impulsivo é um problema para ele, pois as pessoas nem sempre estavam dispostas a ouvir seus vômitos verbais. Porém, às vezes, ele nos joga na cara sem pudor algum o que precisamos ouvir.
- Eu não fui no teu aniversário, porque foi no bar que o meu ex trabalha. Se meu namorado soubesse, ia me matar.
- Ah... – encarnou sua cara emburrada apontada pra mim prestes a soltar um de seus sermões – Você é o que? Namorada dele? Cê não tem que ficar se prendendo, caralho! Não é nem por mim, eu também não fui no teu aniversário, mas não foi porquê minha namorada, se eu tivesse uma, me proibiu. Manda esse cara a bosta que cê não tem que se amarrar com esse tipo de gente. “’Cause you’re born free!”
Apesar de impulsivo, ele é mais introspectivo. Tinha motivos para explodir, mas preferia implodir em sua mente, chorar calado, soltar gritos mudos que só ele veria.
Sobre desejar seus beijos: não, não quero, mas seu sorriso espontâneo, que ele raramente expõe, mostra todos os dentes e isso é de um encanto incrível. Parece que nesses não tão frequentes momentos ele tenta mostrar sua bela alma, porque ele é assim mesmo: uma pessoa encantadora (que, porém, poucos veem).
Por mais tímido e introvertido que seja, ele possui a necessidade esporádica de gritar ao mundo o que pensa, ama ou precisa. Isso me obriga a tentar ficar por perto, por mais que se irrite comigo ou se magoa por motivos quaisquer, só para ouvir seus discursos motivadores e admiráveis, quando não são desconexos. Uma coisa que o atrapalha na hora de gritar é sua dicção torta que tornava metade das palavras incompreensíveis, mas, das que eu conseguia captar, ele pensava tanta coisa interessante, que todos deveriam ouvir.
Ele é um gênio (não que se esforce para ser um) a sua própria maneira. Hora parecia se importar em transparecer ser alguma coisa, hora não ligava pra nada.
Não sei dizer se ele era mais apaixonado ou apaixonante. Acima disso, era platônico. Vive falando da garota que costuma pegar ônibus com ele, da que o encara na cantina da faculdade, daquela que viu na loja de produtos vegetarianos (segundo ele, que não pegou a segunda via do recibo do cartão, era assim que se lembrava dela), da outra lá que trabalha na balada que ele detesta, da desconhecida que só o provoca, mas não permite aproximação... Eram tantas, que nem mesmo ele consegue se decidir. Tem dificuldades para se focar numa só. Talvez porquê nenhuma dessas seja digna de seus poemas apaixonados ou afagos no trajeto entre orelha e queixo.
Quando ele não está em seus dias de isolamento ou repulsa a diálogos, eu costumo lhe dar carona até o ponto de ônibus. Por vezes, mesmo nessas épocas que andava triste e distante, ele parece se forçar a aguentar as pessoas. Talvez por preguiça de andar ao ponto, não sei.
Nesse dia, sua mochila estava jogada no chão e parecia que o cinto de segurança pesava trezentas toneladas de tanto que ele sofreu para coloca-lo. Eu lhe contava sobre meu novo emprego e como estava contente por ter saído da outra empresa, mas ele parecia ter congelado e observava o retrovisor lateral do carro. Não sei tentava se enxergar ou olhar o passado através do espelho. Seus olhos cansados diziam nada. Não só os olhos queriam cair, seu corpo estava pesado e frágil ao mesmo tempo. Apesar da indiferença, fazia questão de ser educado. Antes de descer do carro, como sempre, apertou meu ombro, disse “muito obrigado, até amanhã” e se foi. Olhei para o banco onde se sentara e vi que seu caderno caíra. Ele nunca fechava seu bloco de notas corretamente de modo que a capa ficasse pra fora. Sempre deixava aberto na última página utilizada. Ele poderia ficar chateado comigo caso descobrisse, mas quis ler sua recente memória:
“Eu realmente queria que todas essas garotas pelas quais eu sinto algo morressem. E, das cinzas de todas elas, surgisse uma nova que me salvasse. Porque eu cansei de estar perdido. Pode acontecer de chegar um elemento novo que mudará tudo e me fará esquecer esses fardos tão belos que me encantam por aí. Por que ainda não criaram um super-herói que distribui amor às pessoas? Porque não dá pra dar algo que não existe! Ainda não criaram a máquina que transforma o intangível em sólido e, provavelmente, não estarei vivo quando esse o dia em que o amor for item da cesta básica chegar.”
Ainda estacionada com o carro, vi que seu ônibus ainda não havia passado. Corri até ele e gritei ansiosa:
- Você vai se matar?
Mostrei-lhe o caderno em minhas mãos e me respondeu com um olhar surpreso:
- Não, cê é louca?
- O que quer dizer isso? - apontei às palavras que ele escrevera.
Pegou o bloco da minha mão, leu as frases como se fossem inéditas e afirmou:
- Tive uma crise de ansiedade no meio da aula e, pra evitar que vocês vissem qualquer drama meu, preferi explodir em forma desses rabiscos, como sempre.
- Por que isso?
- Tá escrito aqui – levantou seu caderno como um pastor levanta sua bíblia cheio de razão – eu estou oficialmente cansado dessa minha situação.
- Mas cê quer se matar?
- Morrer, eu vou. Spoiler da vida: todos morrem! Mas... Me matar? Não.
No final, descobri que ele “só” quer ser amado, mas, nos dias de hoje, ninguém quer amar. Todos querem ter o amor servido na boca com talheres de diamante sem o menor esforço ou qualquer retribuição.
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