2014/07/04

Sobre vida e morte (não existe outro lado)


- Moça, faz isso não.
- Não, eu vou.
- Olha a sujeira que cê vai fazer. Ninguém vai querer limpar.
- Azar de quem ver... Eu quero ir...
- Você para!
- Para você. Diz pra Lúcia que estarei esperando por ela no além.
- E você  ainda acha que ela vai te encontrar do outro lado? Besteira! Não existe outro lado. Tudo simplesmente - estalando os dedos rapidamente - apaga, acaba. É um sono profundo só que sem a parte dos sonhos e de acordar depois. Cê tá sofrendo agora? Tá, até demais, mas pelo menos tá vivendo e amando. Tens alguém.
- Eu não pedi pra nascer ou amar.
- Esse é o maior sinal de ingratidão que alguém pode dizer. Como se tudo que você não pedisse fosse ruim, mas não… Lembra do Tibúrcio, aquele cachorro incrível, você pediu por ele? Não, foi teu pai, descanse em paz, senhor, que te deu. Você não pediu por uma amizade canina e, nossa, aquele bicho te fez feliz por muito tempo.
- Até que ele morreu.
- Não foi ele que pediu nem você. Aposto que a mulher que você tanto ama também não está pedindo pra você morrer.
- Mas eu, eu!, quero morrer, é diferente.
- E perder todas as possibilidades que a vida e o amor têm pra te deixar mais próxima da felicidade? 
- “Amor é meta da vida, mas não é sinônimo de felicidade”, já diria o Schopenhauer. De que adianta nadar e nadar mais pra morrer na praia?
- Essa praia é tão bonita.
- E foi lá onde você morreu. Não sei porque tô te ouvindo, você tá morto.
- Pois é... Engraçado que você precisou recorrer a uma materialização de uma pessoa morta pra te convencer a mudar, pra te ajudar a fugir dessa tua decisão imbecil.
- Pra tu ver como eras, ainda és, importante pra mim. Cara, você morreu com facada na barriga… Apesar de poético e combinar com você, poxa…
- E eu morri só por estar numa estrada diferente pra buscar a minha felicidade. Pior que ainda tinha muito combustível, mas né, a intolerância criou um bloqueio em forma de homofóbicos e, enfim, você sabe o desfecho dessa tragédia…
- Cara, você não imagina o quanto chorei. Você se foi… Você foi meu segundo pai.
- Sinto-me lisonjeado pela comparação, mas nunca que eu seria metade do que ele foi.
- Vou visitar vocês dois.
- Não! Fique aqui na vida!
- No cemitério, besta.
- Ah... Só não vou poder te servir café.
- Parei com cafeína.
- Chá de maçã então.
- Vou ligar pra Lúcia e chamá-la pra ir comigo.

Saiu da sacada e só voltou a ficar lá pra ver os fogos de réveillon em vários anos novos que se passaram naquele lugar. Muitos anos se passaram para essa mulher, que, quando sentia vontade de partir, corria pro colo intangível do amigo pra se isolar das dores que afligiam seus pensamentos. O ausente lhe servia de sobrevida para expelir de sua alma quaisquer problemas que gerassem nela o impulso de não querer mais dormir ao lado daquela moça que respirava tão intensamente ao dormir.


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