2014/10/25

Não foi assim que começou (Pretensão)

Terça-feira. 18h e alguma coisa. Sms. “Chega no Pizza da Vicente”. Pedala. Encontra.

Sentou-se na escadaria com amigos e desconhecidos e demorou para perceber quem estava ali, a pouco mais de cinco metros, sentada em uma mesa com mais duas moças, colegas de faculdade, mesmo lugar onde os que estavam com ele estudavam. A moça das “pinturas transcendentais”, definição dele. Com um daqueles casacos dos Andes, marrom, cabelos castanhos-quase-loiros, todo bagunçado num coque, debruçada sobre a mesa e algumas folhas de papel.
Prestava atenção na conversa dos amigos, mas não tirava os olhos dela. Conversava, mas se afundando cada vez mais naqueles castanhos. Concentrada em sua reunião, sorria às colegas quando tirava os olhos dos papéis. Numa dessas, avistou o rapaz de camisa azul, tecido diferente, cabelo crespo curto e barba. Nunca o vira antes, mas estranhou que o forasteiro estivesse com o grupo que há pouco conversava sobre a exposição em cartaz na faculdade com ela e suas amigas.

O amigo que sabia do encanto distante não demorou a perceber que ele estava um tanto concentrado em observar a moça. Quando enfim desviou o olhar da hipnotista desproposital, viu que o antigo amigo o encarava com um sorrisinho malicioso como se dizendo “eu sei o que tá te deixando lesado”. Realmente estava. Sentando perto de umas plantas, nem ligava que as folhas lhe cutucassem as costas.


Sexta-feira. Pouco depois das 19h. Primaveril. Mureta. Conversas. Bebidas. Ela.
Único, entre as pessoas próximas, a conhecer a música que começou tocar, empolgou-se sozinho, enquanto amigos negociavam algo sobre a viagem que fariam no dia seguinte. Quando surgiu a primeira frase, os dois, a moça e ele, cada um em seu canto, cantaram juntos. Cantaram juntos se encarando num cruzamento de olhares sorridentes. Rapidamente, desviaram timidamente os olhos e continuaram a curtir a música sozinhos. "Será que ela está de olho em mim?", questionou-se o rapaz, logo sendo interrompido por si mesmo: "Olha só pra tua cara, babaca, nunca que uma mulher dessas ia te dar atenção." Atingira a fase do platonismo em que surgem os pensamentos auto-destrutivos e que julgavam moças como aquela serem inalcançáveis e perfeitas demais para sua bagunça.
Ainda pouco enturmado, quando o amigo antigo precisou sair, ficou quieto na roda, encarando a moça e a lata de cerveja, tanto a dela quanto a sua. 
Não soube dizer se era o mesmo casaco, mas era muito parecido com o que ela usara há três dias. "Só encontro essa mulher quanto tô com minhas piores roupas", reclamou para si, tentando limpar a mancha de origem desconhecida em sua camiseta cinza de pijama. Casual friday para ele no trabalho era ir vestindo suas camisetas que usava pra dormir, ninguém ligava, mas gostaria de usar algo mais "charmoso" quando encontrasse a moça. Alguma coisa listrada com botões talvez.
- Cê já foi ver a exposição lá em cima? Vamo lá?
Encarava as pinturas em guache talvez, não entendia de tinturas e esses materiais das Artes Visuais, nos papeis amassados. Gostou mais da verde por lembra-lo dos outros trabalhos da moça. Aqueles transcendentais, naturais, retratos perfeitamente imperfeitos do ser humano. Porque, dizia ele, as pessoas são assim como esses desenhos, várias linhas que fogem de si mesmas, confundem-se, fundem-se. O rosto humano pode até ter forma concisa, mas o interior, era isso que ele comparava às pinturas, é instável, bagunçado, riscado.
- A gente vai na Pizza, tá? Vocês também – anunciou a amiga de Irene, que passava na frente do rapaz, que, com a proximidade maior, estava mais magnetizado pelo encanto da mulher.
Um amigo havia sugerido Bec depois que a festa ali terminasse, mas, quando ouviu que a moça iria ao mesmo lugar onde estiveram na terça, quis tentar convencer seu grupo a mudar de planos. Não conseguiu. Deu um último olhar para ela, que foi em direção ao carro estacionado da amiga.
Encarando o chão do Parceria, enquanto os amigos mastigavam x-saladas e pastéis, sua mente estava ainda na cena da moça, quando o céu já havia escurecido, com a luz do celular iluminado seu sério rosto. Mesmo àquela hora, ainda era possível, através dos lábios semi-cerrados, ver os dentes responsáveis por disparos tranquilizantes, encantadores. Não pode esquecer dos olhos...
- É, cara, eu fiquei sabendo... Que você falou de mim pra umas pessoas aí...
- Quem? A do conto da casa amarela?
- Não, calma... Você falou para uma sobre mim...
- Ah, sim... Faz tempo, sobre a parada no Peppers?
- Não... O que? Eita, então tem mais uma na parada.
- Nomes, por favor. – Interrompeu o de camisa branca.
- É, parem de falar em códigos. – Acrescentou o de cabelo comprido. 
- Mas assim que é legal, se fosse só citar os nomes de quem fez isso ou aquilo, não teria graça.
- Cês são retardados.
Separaram-se as duplas, uma falando sobre videogames; outra, paixões.
O jogo de adivinhação e ausência de nomes prosseguiu até que os dois conseguissem estabelecer personagens e histórias. Preferiam ignorar nomes e utilizar adjetivos, referências, metáforas etc para deixar o diálogo mais leve. Às vezes, contavam histórias enormes e se esqueciam de batizar personagens.
- Quando olho pra ela - disse o antigo -, parece que eu fico nu, mas não no sentido sexual. É mais como se eu estive ali, uma criança perdida no meio da multidão, vulnerável.
Conversaram por mais um tempo, despediram-se, separaram. Vic começou a pedalar, ainda pensando em Irene, parou na XV para fotografar o calçadão, ainda pensando em Irene, passou por perto da Vicente, querendo encontrar Irene, chegou em casa e começou a escrever sobre Irene. Terminou e percebeu que fora pretensioso demais ao dizer esperançosamente no texto que haveriam outros encontros ao acaso para que eles enfim pudessem começar um romance.
Pensava na troca de olhares, que ele desejava acreditar que haviam sido recíprocos. Queria que ela tivesse o encarado não apenas como mais um estranho. Queria que ela fosse atingida pela reciprocidade e encontrasse algo nele que a encantasse e a inspirasse a pintar retratos, assim como ela o inspirava a escrever.

"Quem não desce a ribeira / não chega no mar". Quem não derruba a barreira, não chega ao amar.

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