2014/11/08

Porcelana: Cicatrizes



Entrou no banheiro para tomar banho sozinho. Ela, que ansiosamente respondeu que não queria entrar junto com ele no box, ficou deitada, reflexiva. Suas costas e seu peito estavam encharcados de suor, tanto dele quanto dela. Nas paredes, azulejos, alguns deles quebrados, bege com flores desenhadas em marrom. O chuveiro, de ferro, enferrujado, parecia que soltaria café ao invés de água. Postou-se no box, abriu a torneira sem medo e foi atingido por uma enxurrada de água gelada que rapidamente esquentou, sem dar tempo para fugas ou grunhidos de susto. Sorridente, não tinha tempo para temer temperaturas, estava bem demais para se preocupar com isso. Água batendo no pescoço, encarava o chão, refletindo sobre o que aconteceu. A mulher.
Logo ela, que parecia apenas mais uma pessoa com que cruzaria nos corredores da cidade, dava a impressão desproposital de que marcaria sua pele, não, sua carne, sua alma, com ferro quente.
De olhos fechados, transportado a um êxtase relaxante, sorrindo contra a água, não percebeu que a moça entrara no banheiro e começara a se despir para entrar com ele. Era a primeira vez que os dois corpos nus se viam longe da escuridão. Antes, naquele quarto, ela disse, quando começaram a tirar as roupas:
- Fecha a cortina, apaga a luz, não quero te ver, quero te sentir.
Mas agora, dentro do banheiro, conheciam as formas físicas dos corpos a olho nu, corpos nus.
Abraçou-se por trás, passando a mão em seus peitos e acariciando a pele e os pelos. estacionou próxima ao coração e sentiu uma diferença na pele do rapaz. Duas, havia duas linhas. Fez com ele ficasse de frente para ela e, alternando a visão entre a marca e os olhos dele, perguntando sem palavras o que seria aquilo.
- Foi assim que terminou - passando os dedos sobre suas duas cicatrizes paralelas no peito. Com a unha, traçou uma linha cortando as duas marcas, de modo que se formasse a primeira letra de seu nome.
Essa era uma marca que ele gostaria de ter em seu peito, em sua vida: o nome dela, a vida dela.
Então foi a vez da moça mostrar sua cicatriz tangível, entre tantas outras marcadas apenas na memória. Olhou para o próprio ventre e o rapaz logo acompanhou o movimento. Um corte horizontal na barriga. Seus olhos miravam o chão, carregados de lágrimas. Invadida por uma melancolia trazida para aquele banheiro pelas memórias cortantes de uma vida que não existia mais, conseguiu desentalar sua garganta, repleta de saudades, apenas para dizer:
- Dói lembrar - chorou, encostando-se na parede e escondendo o rosto nas mãos.
O semblante do rapaz foi tomado pela angústia de não saber o que feria a moça ali, naquela suíte de hotel. A fraqueza por não saber como tirar a tristeza dali reforçava como, às vezes, as pessoas são incapazes de ajudar. A falta de intimidade entre os dois, talvez, impedia que ele forçasse sua alma para tirar algum palpite, alguma resposta, para resolver o problema, a fuga das lágrimas. Queria agarrá-la pelos braços e gritar “para!” até que cessassem as comportas de choro. Cascatas. Soluços.
Não demorou muito para que ela se sentasse no chão e ele imitasse o movimento. Desligou o chuveiro. Sentados lado a lado, sabiam o que aconteceria. Sem uma palavra sequer, entenderam a origem daquela angústia. Os traumas poderiam aniquilar tudo construído pelos dois para os dois até ali.

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