2014/12/22

A profundidade das margaridas

Não é mais uma história sobre um amor platônico, apesar de ser uma história sobre um amor platônico, é mais que uma história sobre um amor platônico: é um afogamento. Afogar-se e ainda querer mais o que lhe mata em seus pulmões do que ar. Nem 500 dias com ela nem 500 dias de verão: primavera infinita até a flor morrer sem sol.

Sua experiência com flores era curta. Sua mãe cultivava avencas e cactos. Gostava de ajudar a mulher a regar as plantas. Nos idos de seus turbulentos quinze anos, teve um cacto, herdado de sua progenitora, que morreu de sede. O cacto, não a mãe. Na mesma época, talvez, quando aprendeu que a internet era um imenso antro de futilidades, descobriu, num teste online, que o copo de leite era sua flor. Não discordou, ele e sua mente superficial, já que adorava beber leite. Bebeu tanto que não bebe mais, desenvolveu uma não-oficialmente-diagnosticada intolerância a lactose. Na vida adulta, ganhou, em duas ocasiões diferentes, de duas pessoas distintas, flores cujos nomes ele não sabia. Secaram, amarelaram, morreram, foram guardadas, uma dentro uma carta dobrada; outra, num livro. 
A delicadeza das plantas e o medo de machucá-las o assustavam, criando a distância. Um apreço distante. Foi então que, depois de se afundar em outros mares, caiu sem querer num oceano de margaridas. Foi puxado a força. Nada contra tinha contra essa flor apenas antes não encontrara encanto suficiente naquelas pétalas brancas para que decidisse se afogar nelas. Até que uma onda o derrubou.
O amarelo, no rosto da flor, estava enegrecido, mais castanho do que amarelo, machucado. Miolo, pétalas, caule, raiz e todas as outras partes das flores ensinadas nas aulas de Biologia enquanto ele matava aula possuíam uma profundidade encantadora. “Quero me afogar”, repetia a si mesmo. Não havia pólen no miolo, apenas magnetismo. Uma explosão magnética ocorria toda vez que passava por perto daquela camomila. Um jardim de encanto. Sabia ele que, apesar do chá de calmaria recente, a planta já passara por um caldeirão de água quente e tormentas. Não conhecia todo o histórico, mas entendia, pois frequentou infernos parecidos.
Com o passar do ano, descobriu que margarida não era uma só, era plural. Muitas flores dentro de uma só. Não teria problema em lidar com mais de uma margarida, já que era cacto dentro de cactos. Uma matrioska de espinhos cheia de feridas internas feitas por si mesma.
Observava, de longe, a gradeza da margarida e quis afagar, sentir, até que seu olfato conseguisse reconhecer apenas o cheiro daquela flor. Queria profundir aquele aroma em todos os cantos de sua existência.
Havia um abismo de encanto dentro e fora dela. Talvez nem ela soubesse disso.
Acreditou que sua antiga amiga fosse atrapalhar o relacionamento, porém ela, a rinite alérgica, manteve-se quieta. Descobriu que não era alérgico. Contudo, calma, nem tudo são rosas: a margarida era alérgica a ele. Despedaçou-se sozinho.
Lembrou-se dos caracóis que um parente mantinha num canteiro de flores mortas de um apartamento no Cabral. Era ele, uma lesma, deixado em barro seco sem conseguir alcançar a margarida no jardim no primeiro andar. Arriscaria se jogar do décimo segundo se a Margarida não tivesse seu caule destruído com o impacto.
Depois de um período de contemplação, foi buscar outro jardim para esquecer a Margarida. Viveu se afogando em flores, olhares e carinhos até secar e virar adubo.

2014/12/14

Patricinha do Maracanã

- Conhece o Wilco?
“Sim, Jesus, etc”, respondi em silêncio a um dos três adolescentes recostados na articulação do Santa Cândida, sentido Capão Raso. Tanto eu quanto Salinger, que não era do tempo dessa banda, permanecemos em silêncio, observando.
- Tô ligado, que que tem?
“Vocês não têm cara de quem gosta de Wilco”.

- Então, piá… Abri um lava-car com ele.

Assim como os dois rapazes que o interlocutor acompanhavam o tal empreendedor, que aparentava ter menos de 20 anos, olhei para ele dizendo, numa entonação adulta, “Quê? Cê tem uma empresa, cara?” Até então, olhava para os garotos acompanhado de uma perspectiva julgadora, antiquada, resolvi apenas ouvir como se fossem meus amigos.
Num momento de silêncio coletivo, resolvi adivinhar onde era o destino deles. Eles desceriam na Bento Viana - mesmo lugar onde desci diariamente há sete anos por dois meses seguidos para um curso para menores aprendizes. Jurei que fariam isso, pois preenchiam o perfil de gente que frequentava aquelas aulas. 15, 16 anos, roupas típicas de adolescentes que necessitam pertencer a um grupo, a uma moda, para não serem losers (mal sabem como é legal ser loser, outsider, deslocado, estranho, etc). Fui desses. Não loser, porque isso sou hoje, mas também já integrei a turma de adolescentes que fazem de quase tudo para serem populares. Até por isso, creio que tenha conseguido identificar os garotos. Já fui um desse tipo. Digo, de biografias, rotinas e bairros diferentes, mas a mesma essência adolescente de provar ao mundo que existe, seja usando roupas e acessórios da moda atual, comprando um carro aos 15 anos, perdendo a virgindade antes puberdade com alguém da mesma rua, entre tantas outras situações, ou, no meu caso, tornando-se o goleiro oficial da turma - numa tentativa de ser incluído no grupo dos populares. Alguém (um holograma de Sartre talvez) deveria surgir para essas pessoas para dizer que para existir, basta existir.
Apesar dos pesares, apesar de eu estar errado em relação ao ponto de parada dos garotos - passaram reto pela Praça do Japão -, apesar de tantas novelas para um garoto de 16 anos, que já teve experiência de negócios e um Monza com módulos de som, turbo e chassi riscado, o que mais me surpreendeu neste adolescente - eu e meu eterno romantismo - foi:
- Já fui casado… Por três meses, piá, com uma patricinha do Maracanã, aí o pai dela descobriu as paradas que eu fazia e separou a gente.
O Balzac em mim começou a escrever um romance inspirado nesse caso. No fim, o velho viúvo confessaria, em seu leito de morte, segurando uma flor de Ipê, árvore sob a qual conheceu sua esposa, que lutou contra o amor adolescente entre a filha e o empresário porque enxergava na própria garota o amor que sentia pela falecida esposa, quando se conheceram, aos quinze anos, e lutaram contra seus pais, desfavoráveis aquele amor. Após o velório, o casal vendeu a casa do recém-falecido, que agora estava com sua eterna amada, e se mudou para o interior de Santa Catarina.
Na verdade, não sei dos porquês nem das consequências do romance com a patricinha do Maracanã, não ouvi o resto do conto. Desci do ônibus antes do fim da relato. Já em casa, comecei a escrever sobre o episódio, mais um daqueles que abandonei leituras para acompanhar disfarçadamente histórias de pessoas desconhecidas.

2014/12/11

Não me mata

Primeira coisa que fiz ao terminar de ler a carta foi pensar no que acontece depois que ele me mata toda vez que assiste (ou assistimos, mesmo que não estejamos juntos) um romance trágico. Poderia perguntar pra ele mesmo, que me entregou a folha sem vontade. Preferi ler em casa e foi melhor: pude desabar no meu colchão. Nem era grande coisa, o texto, mas sei que, se ele se deu ao empenho de escrever a mão e me entregar pessoalmente, era big deal. Esse era um dos encantos nisso que vivemos, apesar da distância atual: a grandeza de coisas simples. De encontros em bancos de praça a despedidas tímidas e ligeiras.
Ele disse que me mata antes do filme de filmes trágicos, mas, se ele faz isso pra evitar minha dor, o que acontece com ele depois? Ele fica sozinho, chorando, sofrendo? Quem é que abraça sua dor? Eu não queria que ele ficasse assim, mesmo que por causa de um filme. Muito menos por minha causa. Eu poderia estar ao lado dele, chorando, sofrendo. Viva.
Pensei em responder a carta, pensei, pensei, demorei. Não tive como retribuir, responder em palavras. Passou-se um tempo, muitos dias, meses, e ainda não havia dado algum sinal de vida pra ele. Talvez eu estivesse mesmo morta. Ou ele, morto. A gente se perdeu. Queria ser reencontrada por ele. Mas eu teimo querer falar sobre sentimentos por ele com olhares, ao lado dele, num lugar qualquer. Dominávamos o "não saber tomar iniciativa", esperávamos pelo conflito de rotas. Durante a espera, passava eu, não sei ele, por outros planetas, camas, bares - porém, ainda na esperança de que ele também estivesse lá me puxasse pra perto dele.
Não sei afirmar se seu sentimento exagerado realmente me incomodava, apesar de não ser algo ruim em doses controladas, mas digo que ele não consegue disfarçar o quanto se joga nas coisas, e parece que gosta disso. De cabeça, sem capacete nem freio, ele vai, não para, até colidir contra o muro da utopia, cair no vulcão do platonismo, se afogar no mar morto da superficialidade... Universos de possibilidades frustradas, destroem-no antes do fim, durante e depois do fim.
Pode até me matar antes do fim, mas me mate também em sua mente, queime todo e qualquer vestígio de boas lembranças do que vivemos. Não quero ser mais uma de suas fantasma, o assombrando com o que não fomos, evocadas em rituais alcoólicos. 
Mentira, não me mata, não! Quero ficar aqui, lá, enfim.

2014/12/05

Sinto falta do teu silêncio

Por viver, já estou morrendo (todos estamos), mas preciso parar de matar mais um pouco de mim toda vez que lembro daquela exposição que vimos juntos (porém separados em nossos silêncios). Ah, não é a única lembrança (não!) que tenho daqueles domingos, daquelas sextas, segundas, terças e daquele sábado. (Sim, meio que guardei desorganizadamente na mente os dias da semana). Nem lembro do que ou quem era a exposição... Na verdade, eram várias, efêmeras em minha cabeça, mas lembro de cruzar contigo pelos corredores e pensar: "Que mulher..." Não sei traduzir teu magnetismo, apenas me aproximo (cada vez mais, sem querer).
Pessoas que saem acompanhadas e prezam pelo silêncio? Sim. Na exposição, a gente trocou frases curtas (diferente de quando conversávamos sobre filmes, séries, pessoas, etc),  mas o efeito da tua presença foi longo. Muito longo. Não sei se persiste. Não sei. Sim, persiste. Insiste.
Sei que queria ter morado contigo naquele lugar por alguns meses até que fossemos eternizados, transformados numa pintura, escultura, poesia, enfim, qualquer arte tão saudosa quanto tua quietude.
E eu... Esquece, deixo aqui o registro da falta que o teu silêncio faz, mas esquece. Aliás, teria você também esquecido o que havia naquele lugar? Lembro da tua presença. 
Não está nos meus planos abraçar a Morte, essa desgraçada, mas saudade mata.
Mas, "se eu parar... pra pensar", o que é que não mata? Amar mata. Perder-me/te/se mata. Perder mata. Vencer mata. Saudade mata. Silêncio mata. Barulho mata. Viver mata.