- Só temos esse medicamento na loja da Sete de Setembro.
Pediu que a atendente ligasse para lá, reservando os remédios, que buscaria imediatamente. Saiu da farmácia na Cândido Lopes e desceu até o calçadão da XV. Teimosa, além de nervosa por ainda não ter conseguido comprar seus remédios para inibir seu desejo de esmurrar uma parede até que seus dedos ficassem estragados demais para qualquer movimento indolor, H. não quis tirar o casaco azul que vestia desde quando saiu de casa, às sete da manhã, quando ainda havia um resquício de inverno, mesmo depois das quatro da tarde, a cidade estava quente demais para uma tarde de agosto.
Ao contrário do que fazia frequentemente, seguir pela Cândido Lopes até a Osório, F. decidiu descer a Ébano Pereira, porque, em uma época de crises depressivas constantes, queria ver gente, fugir de si mesmo observando outras pessoas, ver a vida fluir, enquanto ele sentia seu existir como uma paralelepípedo no meio-fio da João Gualberto em dia chuvoso.
O suor percorria por entre seus dedos, rasgava sua pele e fazia H. silenciosamente xingar o mundo, julgando qualquer ser em um raio de 200 km responsável por sua abstinência, por mais que a culpa fosse exclusivamente dela mesma, por ter decidido sair numa manhã de segunda-feira e só voltar para casa três dias depois, com a roupa suja, a cabeça cheia de ressaca e a bolsa sem a caixa de comprimidos. Durante o tempo que passou bebendo, o álcool não a permitia lembrar da medicação rigorosa que devia seguir. Lembrou de sua responsabilidade apenas na quinta-feira, pouco antes de sair de casa. Sabia que se ficasse sã e sem medicação por um dia não conseguiria prever seus movimentos quando o primeiro ataque brutal de ansiedade surgisse. Para ajudar, A Paixão Segundo G. H. pesava mais em sua mente do que em sua bolsa. Inquieta demais, ignorava as sombras desorientadas que cruzavam seu caminho, apenas ia. Assim que H. passou pelo relógio da XV, xingando mentalmente este dispositivo criado para lembrar todo mundo o quão inadiável é a passagem do tempo, assim como são inevitáveis as consequências do avanço dos ponteiro - cansaço, desgraça, tristeza etc. Cruzou a Voluntários da Pátria, arregaçou as mangas supostamente não-dobráveis do casaco e amarrou seu longo cabelo num rabo de cavalo, mas sabia que nada daquilo ajudaria a reduzir a ânsia em seu peito, muito menos o calor em todo seu corpo, sentia-se como asfalto, rebatendo visíveis raios solares. Pensou em correr até o chafariz da Osório e se jogar, dar uma de Virginia Woolf, sem metade da coragem que a inglesa teve, mas, antes mesmo de pensar em quão ofensiva era a comparação, um barulho interrompeu seu pensamento.
F. cogitou parar na livraria para matar tempo, refletir mais sobre o que lhe disseram noite passada, “você se faz de complicado, faz-se de frio para tentar se mostrar autossuficiente, independente, um complexo lone wolf, dificultando a aproximação de qualquer pessoa, mas, na verdade, é tão simples e carente quanto qualquer outra pessoa”, mas seu corpo gritou que não, tanto para afirmação quanto para a parada na loja de livros, que, na verdade, queria, melhor dizendo, precisava se deitar, depois de tirar todo o suor que arranhava sua pele com um banho gelado. A camisa azul de tecido áspero, pressionada pela alça da bolsa, que descia do ombro direito a cintura, parecia lixar suas costas. Poucos metros a sua frente, notou uma mulher amarrando seu longo e, se havia alguém passando mais calor que ele naquela praça, era ela e seus longos cabelos, reluzindo o sol infernal, invernal. Ao vê-la, passou a sentir mais calor, então pegou na bolsa sua garrafa de água, que, feita de plástico mole, emitiu um barulho escandaloso. Trocaram H. e F. olhares ligeiros, com uma vontade recíproca de olhar mais um pouco, de novo e de novo, mas não queriam assustar. Seguiram seus caminhos - que era o mesmo.
Caminhavam na mesma velocidade, cruzando a praça e chegando a Comendador, ela seguiu até a Brigadeiro Franco, e ele entrou na Visconde de Nácar.
H. entrou numa loja de discos, distraída pela lembrança do cara que parecia segui-la, mas saiu apressada ao lembrar do medicamento a sua espera. No cruzamento com a Doutor Pedrosa, aproveitou o grande movimento de carros para descalçar as sapatilhas para um breve momento de alívio. Por alguns segundos, sentiu-se livre como na última página de Crime e Castigo, apesar de saber que a dor continuaria - tanto para ela, ali com os pés machucados, quanto para Raskólnikov...
Tentando lembrar se conhecia a moça do casaco azul de algum lugar, “talvez dos meus sonhos”, F. distraiu-se novamente com o fluir da cidade, quando foi atingido novamente pela conversa que teve no dia anterior, sobre como era um terrível amigo, um intragável amante, por desejar ser assim com seu masoquismo emocional insolúvel. Repetia mentalmente em forma de sentença judicial tudo o que sua amiga lhe dissera. Tinha pleno conhecimento sobre a forma de isolamento que adotara nos últimos meses, mas, mesmo se quisesse mudar, estava fundo demais para emergir sozinho.
Ao passar pelo Mark Renton pintado na entrada principal da Oswaldo Cruz, H. disse ao personagem que “escolheria vida” enquanto seus remédios surtissem efeito. Se a praça não estivesse parcialmente cercada por tapumes desde fevereiro (ou março, não tinha certeza), H. veria, subindo a Sete, o rapaz que há pouco a seguira pela Osório - ou seria ela a stalker? -, mas, não, não viu. Parou na esquina e logo percebeu alguém a seu lado. Era F. Olharam-se ao mesmo tempo, sorrindo, desconcertados pelo novo encontro, e, como se ensaiado, disseram:"