2015/08/31

Sem querer

- Só temos esse medicamento na loja da Sete de Setembro.
Pediu que a atendente ligasse para lá, reservando os remédios, que buscaria imediatamente. Saiu da farmácia na Cândido Lopes e desceu até o calçadão da XV. Teimosa, além de nervosa por ainda não ter conseguido comprar seus remédios para inibir seu desejo de esmurrar uma parede até que seus dedos ficassem estragados demais para qualquer movimento indolor, H. não quis tirar o casaco azul que vestia desde quando saiu de casa, às sete da manhã, quando ainda havia um resquício de inverno, mesmo depois das quatro da tarde, a cidade estava quente demais para uma tarde de agosto.
Ao contrário do que fazia frequentemente, seguir pela Cândido Lopes até a Osório, F. decidiu descer a Ébano Pereira, porque, em uma época de crises depressivas constantes, queria ver gente, fugir de si mesmo observando outras pessoas, ver a vida fluir, enquanto ele sentia seu existir como uma paralelepípedo no meio-fio da João Gualberto em dia chuvoso.
O suor percorria por entre seus dedos, rasgava sua pele e fazia H. silenciosamente xingar o mundo, julgando qualquer ser em um raio de 200 km responsável por sua abstinência, por mais que a culpa fosse exclusivamente dela mesma, por ter decidido sair numa manhã de segunda-feira e só voltar para casa três dias depois, com a roupa suja, a cabeça cheia de ressaca e a bolsa sem a caixa de comprimidos. Durante o tempo que passou bebendo, o álcool não a permitia lembrar da medicação rigorosa que devia seguir. Lembrou de sua responsabilidade apenas na quinta-feira, pouco antes de sair de casa. Sabia que se ficasse sã e sem medicação por um dia não conseguiria prever seus movimentos quando o primeiro ataque brutal de ansiedade surgisse. Para ajudar, A Paixão Segundo G. H. pesava mais em sua mente do que em sua bolsa. Inquieta demais, ignorava as sombras desorientadas que cruzavam seu caminho, apenas ia. Assim que H. passou pelo relógio da XV, xingando mentalmente este dispositivo criado para lembrar todo mundo o quão inadiável é a passagem do tempo, assim como são inevitáveis as consequências do avanço dos ponteiro - cansaço, desgraça, tristeza etc. Cruzou a Voluntários da Pátria, arregaçou as mangas supostamente não-dobráveis do casaco e amarrou seu longo cabelo num rabo de cavalo, mas sabia que nada daquilo ajudaria a reduzir a ânsia em seu peito, muito menos o calor em todo seu corpo, sentia-se como asfalto, rebatendo visíveis raios solares. Pensou em correr até o chafariz da Osório e se jogar, dar uma de Virginia Woolf, sem metade da coragem que a inglesa teve, mas, antes mesmo de pensar em quão ofensiva era a comparação, um barulho interrompeu seu pensamento.
F. cogitou parar na livraria para matar tempo, refletir mais sobre o que lhe disseram noite passada, “você se faz de complicado, faz-se de frio para tentar se mostrar autossuficiente, independente, um complexo lone wolf, dificultando a aproximação de qualquer pessoa, mas, na verdade, é tão simples e carente quanto qualquer outra pessoa”, mas seu corpo gritou que não, tanto para afirmação quanto para a parada na loja de livros, que, na verdade, queria, melhor dizendo, precisava se deitar, depois de tirar todo o suor que arranhava sua pele com um banho gelado. A camisa azul de tecido áspero, pressionada pela alça da bolsa, que descia do ombro direito a cintura, parecia lixar suas costas. Poucos metros a sua frente, notou uma mulher amarrando seu longo e, se havia alguém passando mais calor que ele naquela praça, era ela e seus longos cabelos, reluzindo o sol infernal, invernal. Ao vê-la, passou a sentir mais calor, então pegou na bolsa sua garrafa de água, que, feita de plástico mole, emitiu um barulho escandaloso. Trocaram H. e F. olhares ligeiros, com uma vontade recíproca de olhar mais um pouco, de novo e de novo, mas não queriam assustar. Seguiram seus caminhos - que era o mesmo.
Caminhavam na mesma velocidade, cruzando a praça e chegando a Comendador, ela seguiu até a Brigadeiro Franco, e ele entrou na Visconde de Nácar.
H. entrou numa loja de discos, distraída pela lembrança do cara que parecia segui-la, mas saiu apressada ao lembrar do medicamento a sua espera. No cruzamento com a Doutor Pedrosa, aproveitou o grande movimento de carros para descalçar as sapatilhas para um breve momento de alívio. Por alguns segundos, sentiu-se livre como na última página de Crime e Castigo, apesar de saber que a dor continuaria - tanto para ela, ali com os pés machucados, quanto para Raskólnikov...

Tentando lembrar se conhecia a moça do casaco azul de algum lugar, “talvez dos meus sonhos”, F. distraiu-se novamente com o fluir da cidade, quando foi atingido novamente pela conversa que teve no dia anterior, sobre como era um terrível amigo, um intragável amante, por desejar ser assim com seu masoquismo emocional insolúvel. Repetia mentalmente em forma de sentença judicial tudo o que sua amiga lhe dissera. Tinha pleno conhecimento sobre a forma de isolamento que adotara nos últimos meses, mas, mesmo se quisesse mudar, estava fundo demais para emergir sozinho.
Ao passar pelo Mark Renton pintado na entrada principal da Oswaldo Cruz, H. disse ao personagem que “escolheria vida” enquanto seus remédios surtissem efeito. Se a praça não estivesse parcialmente cercada por tapumes desde fevereiro (ou março, não tinha certeza), H. veria, subindo a Sete, o rapaz que há pouco a seguira pela Osório - ou seria ela a stalker? -, mas, não, não viu. Parou na esquina e logo percebeu alguém a seu lado. Era F. Olharam-se ao mesmo tempo, sorrindo, desconcertados pelo novo encontro, e, como se ensaiado, disseram:"

2015/08/24

Quatro atos sobre perder o chão ou Um movimento interior

Quarta-feira. Não estava atrasado, mas aplicou em suas persas força suficiente para subir as escadas correndo, saltando de dois em dois degraus, costume adquirido aos 14 anos, quando percorria quatro andares de um prédio entregando contra-cheques. Reduziu a velocidade ao avistar o balcão e seguiu andando e diminuiu ainda mais o passo ao ver mais alguém além de sua colega no posto de trabalho, na área exclusiva para funcionários. Aproximou-se, deu bom dia às duas e deixou o olhar sobre a estranha por tempo mais que aceitável quando se trata de cumprimentar pessoas desconhecidas. Sentiu-se desconfortável com a situação e puxou conversa com as duas, sem ainda saber o nome da estranha nem porquê estava ali. Ignorava a existência da colega enquanto ela falava sobre o ritmo de trabalho até então, pois não queria parar de olhar para a outra moça, contudo desviava o rosto toda vez que seus olhos se encontravam. Quando ela o flagrava, apenas sorria timidamente, sem mostrar os dentes. Tinham a mesma cor de olhos, porém, no fundo, ela carregava algo distinto, que despertava nele a vontade de se afundar. Para ajudar, a colega não os apresentou, apenas informou sobre as devidas instruções a serem seguidas e os recados a serem dados para convidados durante o turno do moço, que, mesmo prestando atenção na colega, fazia questão de levar disfarçadamente seus olhos ao rosto da forasteira. Com sorrisos embaraçados, despediram-se e as duas mulheres partiram, deixando a morena de olhar profundo o grande vestígio de sua beleza, correndo pelo lobby do hotel, derrubando o rapaz sempre que tentava se aproximar para sentir o aroma daqueles longos cabelos ou a luz daqueles olhos magnéticos.

Sexta-feira. Não havia movimento, consequentemente, nada de trabalho. Com certo laço de amizade criado, o trio de funcionários do hotel e a morena de olhos profundos, que não trabalhava ali, matavam tempo, jogados sobre os sofás do lobby discutindo sobre qualquer coisa, passeando pela internet, assistindo a tutoriais de origami ou a vídeos da Inês Brasil, ou na janela observando transeuntes, procurando por pessoas que estivessem carregando presentes de dia dos namorados, tiravam sarro de quem passasse com buquês de flores, caixas de bombons etc. Numa óbvia conversa sobre Cinema, o rapaz pensou em falar de Eu Odeio O Dia Dos Namorados, mas preferiu manter o diálogo cinematográfico em um nível mais para a vertente artística-autoral. Da primeira vez que se viram, tirou o encanto pela beleza dela; na terceira, pela companhia. Ele pensou em dizer várias coisas, principalmente na tentativa de fazer a até dois dias atrás desconhecida percebê-lo como não apenas um colega de trabalho de suas amigas. As always, ele queria mais. Mais que olhares sinceros, mais que diálogo... 

Na primeira conversa que tiveram longe do hotel, ainda sem intimidade suficiente para conversas mais abertas, começaram a conversar sobre algo relacionado ao trabalho, e, pouco tempo depois, no meio de um corredor apertado do bar, atrapalhados pelo barulho da música, carregando cada um uma caneca de chope já quente, falavam sobre dramas românticos. Quando ela começou a discorrer sozinha sobre a utilização de técnicas classicamente bressonianas por alguns cineastas e como estes artifícios poderiam prejudicar uma obra se aplicados em demasia, foi aí que ele se perdeu de vez. A morena de olhos profundos falava, empolgada, como se precisasse se aprofundar nisso tudo, na Arte, para sobreviver. Dava uma aula sobre Bresson a um ser que falaciosamente disse  conhecer os trabalhos do francês. Ele não sabia se estava mais encantado por ela ou ainda pelo Cinema. Estendeu a conversa ao máximo, citando seus romances desgraçados favoritos e todo seu rol de assuntos clichês sobre filmes etc, quando ela o convidou para fumar. Sob o céu de junho e a névoa fria, teriam a chance de conversar com mais tranquilidade, mas, para o azar do rapaz, um grupo se aproximou dos dois fumantes para conversar sobre… Sobre o que pessoas bêbadas conversam? Então o grupo dela chegou, assim como o dele, enfim, dando às esperanças do moço um fim. Perderam-se sem dar adeus.

Quinta-feira. Ela já não aparecia com tanta frequência ao hotel quanto fazia na semana anterior. Talvez por ter se cansado da lentidão do rapaz. Ele ainda pensava nela. Outro bar, outra festa. Conheciam a possibilidade de se encontrarem novamente, mas não se renderam a depender do acaso, e seguiam a noite conforme a música fluía e o álcool corria por seus corpos. Demoraram a se encontrar, era por volta das duas - nem mesmo quem vos narra a história saberia apurar o horário exato por também ter bebido muito, tanto que esqueceu da maior parte do que se passou na noite em questão - quando, perdeu-se das amigas e foi ao fumódromo sozinho, respirar ar fresco e tabaco. Acompanhava a trilha de fumaça vomitada por seu cigarro, que, subindo ao céu, unia-se ao que outras chaminés liberavam, e formavam um corpo celeste leitoso, um oceano cinzento, quando ouviu o barulho da porta do bar e olhou. Ela, vindo de dentro do bar, já com um cigarro na boca, procurava em seus bolsos por esqueiro ou fósforos, até que viu ele e foi em sua direção, disparando, de longe, um efusivo e alcoolizado sorriso, maior do que os que o atingira anteriormente. Cumprimentaram-se, com troca de afagos ligeiros nos ombros e beijos no rosto, e conversaram rapidamente sobre a festa. Foi então que o rapaz perdeu o chão: alguém se aproxima da moça, dá-lhe um beliscão na cintura, ela retribui com um “já sentiu saudades, né?”, ela vira as costas e beija quem lhe beliscou e vai embora acompanhada, sem dar adeus. Poderia ser apenas um caso da noite, o que ainda daria alguma chance ao rapaz no restante da noite - ou no restante da vida; um relacionamento de longa data, exterminando no rapaz qualquer encanto; ou um amigo, apenas como brincadeira. Ele não sabe. A dúvida resta e lembrança do profundo par de olhos castanhos ecoa, enquanto se afunda em mais cigarros, destilados e corpos.

2015/08/17

Persona

Não amo suas palavras, emoções ou curvas, digo, não apenas isso, mas amo profundamente o que se cria entre o seu verdadeiro eu e o que enxergo de você. Amo o ideal e isso me faz amar - ainda mais - o real. Insisto, apesar disso, teimosamente, em ver o que idealizo que seja. Não amo tal filme, série ou livro por si só, amo por me fazer lembrar de você. Infelizmente, não consigo viver somente de minhas vontades idealizadas, nem mesmo daquelas que tomaram forma humana, preciso do colisão de rostos cansados, do afago das mãos machucada e tudo mais que possa acontecer entre nós. Você me guia, direciona meu desejo, enquanto creio que sentes o mesmo por mim. O amor talvez tenha causado em você o mesmo que em mim, criou na sua cabeça o que esperava que eu fosse, e não o que eu realmente era, te impede de ver a verdadeira desgraça que sou. Como sempre, chegamos a um fim. “Um” fim, porque vive(re)mos vários. Ainda que soltemos gritos mudos para nós mesmos, no silêncio de nossos quartos, “chegamos ao desfecho deste romance”, vamos nos reencontrar, vamos colidir. Cansei desse nosso drama tanto quanto cansei de tentar te encontrar em livros, séries, ruas ou filmes, mentira, não consigo me desamarrar de nós e correr para longe (de nós) até chegar a algum lugar onde tudo seja mais simples. Mas, você sabe, não consigo simplesmente partir. Quantas vezes voltei? Insisto. Repito. Vou e volto.

2015/08/10

Oceanos

Lágrimas leves desciam por seus rostos, não doíam, não era sofridas, pareciam sair par afagar a face de quem sentia falta das mãos que costumavam lhe dar carinho. Rios quentes desciam, porém não substituíam a mão desejada. Distantes, lembravam que havia um motivo para chorar de saudade - ou alegria -, contudo, às vezes, deixavam-se ser inundados por uma onda de carência.
Peças de roupas abandonadas serviam para secar lágrimas e sufocar a falta que a pessoa a quem realmente pertencia fazia.
Odiavam juntos o fato de convergirem tanto em direção ao lago perdido da melancolia. Tudo lhes era triste, até mesmo o amor, droga da qual não queriam jamais se distanciar, mesmo que fosse com parceiros diferentes.
Distância, havia muita entre eles. Felizmente, apenas a física. Infelizmente, era justamente a longinquidade entre estados que os fodia no seco sem beijo no pescoço nem sussurros ofegantes intraduzíveis para idiomas comuns que significavam tesão e coisas parecidas.
Não havia mar real entre eles, apenas uma serra, duas províncias inteiras, muitos quilômetros e muita saudade. O mar interno de cada um queria logo derrubar o estreito, engolir as penínsulas, invadir cidades, para dar vida a um novo oceano repleto de amor, melancolia, gritos, sussurros e o que mais pudesse emergir diretamente das profundezas de suas existências. 
O tempo, sempre cruel, era o que precisavam, contudo a ansiedade, passando entre eles por uma instável tubulação, era o petróleo que poderia exterminar qualquer possibilidade de vida neste oceano.

2015/08/03

Relacionamentos corrosivos não bastam para quem vive de amor

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I'm still the shadow 
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O ciclo 
 
A chama de Larsen e Rub se apagava depois de incinerar por um mês ou dois, após porres amnésicos e erosões aumentadas em seus peitos, quando enfim conseguiam se livrar, feridos, das correntes de receio e desesperança que os forçavam ao enclausuramento no espaço mais profundo de suas existências. Reagiam dolorosamente aos atos corrosivos do outro por simplesmente - em tempos de queimada - julgarem que mereciam sofrer as penitências que lhe eram aplicadas sem dó por terem amado demais ou de menos. 
Apesar da destruição mútua, somente Rub resgataria Larsen de si mesmo - vice-versa. O apaixonado e o pessimista, contudo, nunca se entendiam, não conseguiam viver no mesmo lugar, no mesmo bar, no mesmo lar, por muito tempo, são auto-destrutivos demais para si mesmos, porém, eis a contradição, necessitavam do mutualismo. Dependiam um do outro. Ironicamente, precisam um do outro para viver. Necessitavam, ao menos, saber que o outro está vivo, desenvolvendo sua forma de ser, espalhando amor ou desgraça aonde fossem, ligados através de uma corrente invisível e indolor, mesmo que seja para dedicar o último pensamento antes de dormir: “Amanhã terei quem sofra por mim”. 
Até que chegou o dia que esta oração se esvaiu em vazio e desprezo. A dor não era mais satisfatória, deixou de anestesiar as demais desavenças da vida. Quiçá, em um realidade, parelela, esta vida a a dois duraria mais de 40 anos, numa leve dança de carinho e amor. “Por quê?”, insistiam no questionamento no silêncio do quarto, enquanto, ainda juntos, o outro repousava a seu lado, perguntando-se a mesma coisa. A resposta, sempre a maldita necessidade de resposta atrasa qualquer desfecho, qualquer adeus. O motivo para Rub não mais amar - ou sofrer por - Larsen talvez fosse cansaço ou simplesmente a extinção do amor. Para Larsen, talvez fosse(m) o(s) mesmo(s) motivo(s). Não sabiam, não buscaram saber. Contentaram-se apenas em partir, levando cada um a pesada bagagem de tempo e memórias que compartilharam juntos. 
Perder o sono ao avistar no escuro o resto dele, perambular com peito cheio de fumaça e saudade pela cidade carregando a ânsia de encontrá-lo em lugares improváveis, vomitar cartas que jamais terá coragem de entregar, ir de zero a cem batimentos cardíacos em um segundo quando lembra de algo que o outro disse para requentar a esperança que prolongara o amor entre os dois… Enfim, as consequências do término continuam, mas chega uma hora que tudo isso cansa de verdade. Esse amor ainda os consome a cada novo instante, tempos após a despedida formal - que não impediria um encontro ao acaso, já que vivem na mesma cidade -, e os guia por um caminho que leva a um abismo causador de desolação e saudade, uma morte horrível da alma. 
Será que em algum momento o término de um romance deixa de ser algo tão desgraçado de se sentir, tornando-se indolor, algo que apenas flui para longe sem arrancar pedaços? Às vezes, parece que a dor, o luto e o desespero só acontecem com quem se permite a um afogamento num poço cheio desses sentimentos.
Cansaço, desfecho, adeus, ponto final, novo livro, novo amor, recomeço… Vida.