2015/12/31

Cansaço

“And if it pleases you to leave me, just go.”
Sufjan Stevens, Enchanting ghost

Você insiste. Você insiste em mim. Você insiste em ver algo dentro desse buraco de desgraça chamado eu que ninguém vê, não tenho mais o que você precisa: estabilidade. Danificado demais estou para viver com qualquer pessoa, infelizmente, incluindo você. Estabilidade para viver em paz com alguém, sem ter que se preocupar com crises de ansiedade, socos na parede, curativos nos nós dos dedos, tremedeiras, calmantes e isolamento. Tudo gira, tudo treme, nada está no lugar, nada está certo. 
Quão fácil seria partir? Não seria melhor? Por que não parti? Por que você não pergunta por que não tomo a iniciativa, já que insisto tanto em acreditar na prejudicialidade do prosseguimento deste relacionamento? Porque não consigo, não tenho iniciativa, ela não me serve, nunca me serviu, não me adapto a ser a pessoa pró-ativa, que fala na cara o que sente e o que acredita que precisa ser feito, nunca consegui ser assim, então apenas deixo-me arrastar, sem forças, até que alguém faço algo. Em tantos momentos, bons e ruins, você agiu primeiro. Agora, novamente, você precisa assumir o controle. Você precisa partir. Você precisa arrancar os nós que nos unem, mesmo que seja doloroso demais, antes que você seja puxada para baixo e se afogue junto comigo. Não quero te ver mal. Não quero te ver aqui, nesta loja que vende apenas óculos que enxergam melancolia e tragédia. Não há tempo para retrospectivas, mas, resumindo, tivemos um prazeroso relacionamento por anos, até que...

2015/12/28

Lonely People XV


Depois de uns meses de férias impostas simplesmente pela vontade de ficar em casa dormindo, praticando ócio criativo, vivendo seu período sabático, decidindo se tinha feito a escolha certa ao terminar a faculdade, engolindo crises existenciais, enfim chegou o dia de estrear oficialmente como psicóloga profissional. Se conseguisse controlar a crise de ansiedade que emergia de suas mãos, começaria a trabalhar numa clínica de apoio a jovens em situação de risco na A. N. d. J. No caminho, passou em frente a um sex shop da R. A. e, ao encarar a vitrine, lembrou-se que fora encarregada de comprar alguns itens para a despedida de solteira que ela e algumas amigas fariam para a que se casaria em duas semanas. A pequena Sabina Spielrein (apesar da graduação não ser a mesma que a psicanalista russa, tinha-a como inspiração, bem como outras psicanalistas da vida real e da ficção) estava empolgada para a cerimônia, mas não pelo casório em si e a felicidade de Y. Eva não acreditava na seriedade desse ritual sagrado - em decadência. Não crê, aliás, na institucionalização de um sentimento, na autorização escrita para que duas pessoas possam ser felizes, até que a morte as separe, afinal, ninguém precisa de aprovação de terceiros e, mais importante, ninguém será feliz com alguém até que a morte encerre o relacionamento porque o fim vem antes disso. A empolgação para o casamento era, além da felicidade em ver sua amiga tão infeliz antes finalmente completa com alegria e amor, devida à presença do jornaleiro, que também conhecia a noiva e estaria na festa.
Como ainda tinha tempo de sobra antes de bater seu primeiro cartão-ponto na clínica, entrou na loja erótica e comprou algumas lembranças para a despedida de solteira. Ao chegar no trabalho, percebendo a quantia de menores de idade na recepção, mocou a sacola de compras em sua bolsa. A diretora da clínica, uma senhora japonesa mais simpática que qualquer pessoa que Eva já conheceu, entregou-lhe um jaleco branco, com seu nome inscrito no bolso superior esquerdo, que, de tão grande, mais lhe servia como uma bata episcopal. Devidamente uniformizada, então teve uma ligeira epifania: agora a coisa ficara séria,  realmente séria, estava a poucos passos (a distância entre a sala de sua chefe e a de atendimento) de se tornar psicóloga de verdade.
Jennifer Melfi tentou encarar os olhos do primeiro paciente, que já seria memorável simplesmente por ser a primeira pessoa assistida, o adolescente que recém se sentara a sua frente silenciosamente. O olhar do rapazinho mirava o chão. Eva queria que ele fosse o primeiro a falar. Ao invés disso, ele tirou o celular do bolso e começou a jogar algo bem barulhento. Passaram-se cinco minutos e o garoto parou, encarou rapidamente a mulher e perguntou:
- Quantos anos você tem?
A novata pigarreou e entonou uma voz séria, adulta:
- Desculpa, mas não estamos aqui pra falar sobre mim, Douglas.
O adolescente se fechou novamente e permaneceu por mais vinte minutos em silêncio, jogando, enquanto Eva, já sabendo o quê o trouxera ali, fazia anotações sobre o paciente. Até que o garoto quebrou o gelo, ainda encarando a tela do aparelho:
- Minha mãe morreu ano passado.

2015/12/13

Liberdade

A cada passo dado, o nervosismo gerava grande tensão entre ela e o solo e os prédios e tudo, não conseguia se acalmar, não conseguia encontrar a calmaria qualquer fosse a rua que pisasse, tudo se movimentava, tudo tremia, tudo fluía tão rapidamente quanto seus pés conseguiam acompanhar. A cidade o diminuía. A diminuía? Não sabia mais quem era, nem mesmo se de fato era. O asfalto gerava raízes que se enrolavam nas pernas dela, dele, melhor dizendo, o asfalto criava raízes que abraçavam suas pernas onde quer que fosse, apertavam-nas, mas também a acariciavam. Quaisquer toques diferentes daquele de sua cidade natal (ou de quem não vive mais a seu lado), por mais doloroso que pudesse ser, era melhor que o toque do passado.
A ansiedade foi se exaurindo com o passar dos dias, adaptou-se inércia de sua nova capital, não mais se feriu com o movimento ora frenético ora sonolento. Corria, dormia, repetia.
Dentro do metrô, tentava congelar um frame das paredes, dos tuneis, os prédios, as pessoas, tudo que passava, mas, como entendeu dias antes de sua grande mudança, as pessoas, os prédios e os túneis não param, não ficam, nada para, nada fica e tentar parar o tempo para apreciar o que surgisse em sua frente era tão inútil quanto insistir em relações corrosivas demais, abusivas demais, nostálgicas demais, exageradas demais, distantes demais, ademais. Perder-se em solidão no meio de uma nova e maior cidade seria menos doloroso que ficar. Adiantando o desfecho não exposto desta narrativa, a dor alcança todos os lugares e não há maneira de se prevenir, ela sempre chega e invade seu corpo, sua mente, tudo, destrói tudo, incinerando rapidamente, numa velocidade invisível, ou lentamente, lentamente, lentamente… corroendo pedaço por pedaço de uma existência já em pedaços.
Sabendo de seu destino, ignorava-o, seguia o seu fluxo, que se unia ao da cidade, e vivia, inspirava rotina e expirava passado, desintoxicava-se, quarto, banheiro, cozinha, ruas, vagão, ruas, escritório, ruas, bar, ruas, vagão, quarto, solidão, corria, dormia, repetia.
Confundia seus vasos sanguíneos, músculos e tendões com as vias da cidade, sentia cada passo, cada pássaro, cada queda, cada gole, tudo que a cidade sentia.
Ali, com aquelas pessoas, seguindo cada uma seu próprio caminho, ninguém queria ser uma formiga, sentiu vontade nenhuma de expurgar seus demônios, vomitar suas angústias, xingar seus fantasmas, queimar seu passado, nada disso, superara-o. Ali, respirava, sentia a tranquilidade de não pertencimento àquele lugar ou àquelas pessoas.

2015/12/04

De mãos dadas

No exato instante em que acendeu o primeiro cigarro, ainda na esquina de sua casa, permitiu vazar a angústia há tanto tempo que era incapaz de saber como surgiu, a incapacidade era tanta que não conseguia combater o tormento, que crescia e crescia e adormecia e despertava e crescia... Sozinho, tenta encontrar a fragilidade do sentimento para atingi-lo e causar sua destruição.
Qualquer pessoa que cruzasse sua jornada em busca de uma garrafa de qualquer coisa que conseguisse lhe dar algumas horas de distanciamento do que o corroía - e de si mesmo - poderia ser considerada uma ameaça a sua saúde física (ou o que restava dela) - a mental já estava danificada demais para uma nova rachadura, não havia mais espaço para outras. Temia que as pessoas pudessem tirá-lo deste precipício onde tropeçou e permanece em queda livre, como se o fundo levasse diretamente ao topo, ad infinitum, causando cada vez mais dor. Temia o que as pessoas poderiam leva-lo a um novo precipício - ou um lago de tranquilidade -, não queria arriscar.
O segundo cigarro foi aceso logo que o primeiro se deitou na sarjeta, ainda queimando. Ele queria ser aquela bituca, queimar-se inteiro até que os ventos levassem e a cidade dissolvesse suas cinzas. "Todo munto é um cigarro", afirma ele, "todo mundo é consumido por outra pessoa, queima e é jogado fora". Ele não acredita em salvação, independentemente de como acontece ou que “força superior” a executa; para ele, ser salvo é o holograma de uma escultura: é possível vê-la e acreditar nela, crer no conforto que emana dela, mas seu toque de cura é tanto intangível quanto inexistente, inútil.
Quanto mais andava, mais a agonia o abraçava e segurava sua mão, como se fossem o casal perfeito, mas ele não queria se comprometer com a melancolia de uma vida sem causa nem motivação. Aliás, esse era o único "relacionamento" que conseguia manter nos últimos meses. Seu estado gerou um campo de força que afasta qualquer pessoa, aquelas que já estavam em sua vida ou as que poderiam ser "algo", restam apenas as memórias da época que conseguia conviver em paz e os sentimentos, todos os sentimentos - sobre tudo.
Havia a ilusão de estabilidade, claro, e o disfarce era mantido de maneira exemplar, porque, um, sua apatia em relação a sua situação era tão grande que não se esforçava nem mesmo para se auto-sabotar, e, dois, ninguém se interessava em investigar sua mente, desconstruir seus problemas, analisar sua complexidade, reconstruir tudo. Não que ele se importasse com isso, mas refletia sobre.
Ao fim do terceiro cigarro, já sentado no meio-fio, engolindo o pior vinho que encontrou, seu favorito, sente-se como Antoine Roquentin, apesar de não saber se amanhã vai chover sobre Curitiba (ou Bouville), vazio. Não tem expectativas ou curiosidade para saber como tudo vai terminar. Deixa-se ser dominado pelo álcool e pela nostalgia de quando não estava destruído.