He films the clouds.
She changes the weather.
They become rain.
Ponto de ônibus lotado de pessoas se refugiando da chuva
e a moça precisou pedir licença, enfiando-se entre estranhos para encontrar um
lugar para si. Estava feliz. Depois de tempestades em sua cabeça, o sol surgiu
e a deixou bem pela primeira vez em duas semanas. Costumava ir andando para a
aula, mas, com aquela chuva, não havia condição de fazer sua caminhada. Achava
futilidade pegar ônibus para não ficar nem cinco minutos e descer na terceira
parada, mas, às vezes, futilidades eram necessárias. Tão feliz estava que não
ligou que seu vestido azul marinho com linhas brancas quadriculadas, sua meia
calça preta e seu sapato preto de salto baixo estavam completamente encharcados.
Observava a rua e sorria encarando a água colidindo com o asfalto. À duas
pessoas de distância, percebeu, com o canto de olho, que havia um rapaz a
encarando, usando calça preta, tênis azul marinho escurecido devido à chuva, da
mesma cor que o vestido da moça, camiseta branca, que, depois descobriu ser, na
verdade, bege com um corvo estampado e uma mochila da mesma cor do calçado.
Ignorou o estranho.
Ele não estava feliz, mas seria apenas deitar e dormir
que voltaria a ficar bem. Porém, precisava resolver um assunto acadêmico antes
de ir pra casa. Irritado de fome, emputeceu-se ao sair do trabalho e dar de
cara com a chuva forte, que impossibilitaria a chance de ele fazer uma jornada para
matar a saudade do caminho que tanto repetiu em quatro anos. Chegou ao ponto de
ônibus querendo chutar todo mundo, mas logo viu uma moça chegando e o
deixando anestesiado. Ignorou a raiva.
Exibindo um sorriso de dentes escondidos, a moça continuava
a encarar as gotas de chuva atingindo o chão. Não ere esse o motivo, a
tempestade, para ela sorrir, mas ela precisava mirar algo para despejar sua
alegria. O rapaz estranhou aquilo tudo, mirou o outro lado da rua para ver se
havia lá alguém para quem a estranha pudesse estar olhando. Ninguém. Sorriu e
riu sozinho. As curvas daqueles lábios fizeram o rapaz derrapar, colidir contra
o muro e cair morro abaixo.
Enfim, a moça desviou o olhar e o rapaz estranhou o ato.
Só parou de olhar para o nada, enquanto seus olhos miravam o asfalto, quando o
ônibus chegou. As duzentas pessoas no ponto entraram. Ele passou pela
cobradora, pagando a passagem em moedas, e viu que a mulher que encarava a
chuva sorridentemente havia se sentado em um bando próximo ao motorista, antes
da catraca. Apesar da quantidade de gente que entrou no ônibus, não foi número
suficiente para lotar o veículo.
O rapaz, ainda hipnotizado pela moça, apreensivo por
faltar um ponto para descer, começou a se despedir mentalmente de “mais um amor
platônico de ônibus”. Apertou o botão para sinalizar ao motorista que desceria
no próximo ponto e sorriu. Rapidamente, a moça se levantara, pagara a passagem
e parou ao lado do rapaz.
Desceram não só não mesma parada como seguiram para o
mesmo lado.
Quando pensou em iniciar uma conversa com algo como “moça,
você está me seguindo?”, demorou tempo demais e foi ela quem disparou:
- Também ficou com preguiça de andar na chuva?
Com sua voz de pessoa tímida, respondeu:
- Pois é, são só três pontos, mas com a chuva que tava
caindo lá no Centro Cívico...
- E, olha agora, parou de chover! – disse a morena,
levantando as mãos, na altura dos ombros, com as palmas apontadas para o céu.
- Essa cidade é maluca.
- Como dizem, aqui você tem que sair de manhã vestindo
casaco pesado, levando sombrinha e biquíni na bolsa.
- Não trouxe meu biquíni hoje, droga, muito menos
guarda-chuva. Tenho muito azar...
Foi interrompido por um riso atrasado da moça, que logo
falou:
- Você usa asa delta?
- Prefiro maiô.
- Je ne parle pas français, mas nós estamos em “outubrô”,
moço...
O rapaz parou de andar, encarando a desconhecida, e virou
as costas dizendo:
- Au revoir, Shoshanna... – levantando uma das mãos em um
aceno de despedida, mas logo se virou novamente para a moça
- Essa cena é ótima, mas a do “Gorlami’ é minha favorita.
Ela pegou a referência cinematográfica e isso o deixou
ainda mais encantado, mas tinha problemas, sempre teve, para
demonstrar interesse, coisa e tal.
Seguirem andando por mais três quadras, conversando sobre
cinema, encontraram-se no assunto, arranjaram conversa para encontro futuros
nisso, até que ela chegou ao seu destino. A faculdade. Era também o dele.
- Você estuda aqui?
- Me formei semestre passado, só vim buscar uma
documentação.
- Ah, por isso a gente nunca se viu, eu sou caloura.
Despediram-se com longos sorrisos após a catraca e foram
cada um para um lado diferente. Ele até quis procurar pela sala dela depois de
cumprir sua tarefa. Ela até pensou em sair da sala e ir até a secretaria atrás
dele. Apenas desejaram, pensaram.
Quarta-feira e a chuva tirara folga. Calor e céu limpo
até as seis da tarde. Ela continuava feliz. Ele ainda não conseguira seus
assuntos na faculdade no dia anterior. Coincidentemente, reencontraram-se no
mesmo ponto de ônibus onde, ontem, ela encarava a chuva com um sorriso
destruidor.
Distraído, mexendo em seu celular, assustou com a voz
repentina que surgiu naquele ponto vazio:
- Olha só quem voltou!
(Ele tinha voltado apenas para tentar reencontrá-la).
- E você continua sem sombrinha, moça?
- Acho que hoje não chove.
- Será?
- Pensei em ir andando pra faculdade, mas deu preguiça.
- Preguiça é coisa de gente... – deu tempo para criar um
certo drama, observando no rosto da moça uma feição de “o quê, coisa do quê, seu
babaca?” – coisa de gente preguiçosa.
Ela riu e disse:
- Se você for andando comigo...
- Então vamos!
Começaram a caminhar e só neste momento ela percebeu que
o rapaz possuía olhos azuis. Anteriormente, já tinha visto que eram grandes e
profundos, mas a escuridão do encontro anterior impediu que ela reconhecesse a
cor. Ela não era tão atenciosa assim quando o assunto era notar características
de estranhos. Mas, ali, naquela quarta-feira, um dia após conhecer o não-mais-desconhecido,
queria dizer: “Ô, moço, deixa eu me afogar aí nos teus olhos”, mas só pensou.
Caminhando pela ciclovia ao lado de um córrego, que
estava ainda cheio e agressivo por conta da chuva do dia anterior, ela disse:
- Imagina se afogar aí – apontando as sujas águas que
corriam a poucos metros deles.
Na única subida que enfrentariam na caminhada, puderam melhor
avistar o conluio de nuvens que percorria o céu.
- Aquela ali. – disse ela, apontando uma, entre tantas
outras em tons rosa-magenta-roxo com leves pinceladas de laranja, próxima ao
horizonte oeste, onde a noite ainda não havia insurgido sobre a cidade que
começava a escurecer. - Parece a cabeça
de um dinossauro...
- Aquela outra... Parece minha alma.
- Cinza, opaca e profunda?
- Queria dizer “deformada”, mas também serve.
Três quadras adiante na rota, a noite já havia se tornado
maioria naquele céu, com nuvens maiores do que antes, mesclando-se entre cinza
e azul, como se fossem imensos zepelins pairando sobre uma cidade britânica
devastada pela Primeira Guerra. Começou o bombardeio, quando, em menos de dez
minutos, todas nuvens se fundiram, formando uma só mais enegrecida e violenta. A
chuva não teve paciência para esperar os dois chegarem a seus respectivos
destinos. Talvez o destino deles, para aquela noite, seria mesmo pegar chuva
novamente, pelo segundo dia seguido, mas a chuva daquela quarta-feira, ao
contrário da de terça, trouxe algo além de água. Chovendo torrencialmente, os
dois se encharcaram antes mesmo de encontrarem um abrigo. Pararam sob a
marquise de um açougue já fechado e começaram a rir. O rapaz interrompeu o riso
logo ao encarar a moça, que disparava o mesmo olhar de ontem, quando, ainda
desconhecida, observava a chuva sorridentemente. Ele já não estava mais em seu
corpo, sua alma saíra de si, deixara de existir em si, para repousar sobre os
olhos e a boca daquela que, ao perceber o êxtase do rapaz, cerrou os lábios,
ainda sorrindo, desta vez, sem mostrar os dentes e levantou as sobrancelhas, abrindo
ainda mais os olhos castanhos. Então intimidou-se pelo olhar insistente dele e
começou a encarar os próprios sapatos azuis, que imergiram em poças d’água
durante a correria em busca de abrigo, tornando-se mais azuis, assim como os
olhos do rapaz. Percebeu então a possível semelhança entre as cores e levantou
o rosto para confirmar se eram de fato iguais. Em silêncio, constatou-se
sozinha positivamente e sorriu como se ele, que não conseguia parar de
encará-la, também soubesse do que se tratava. Cruzou os braços sobre o vestido
preto, mirou o céu e disse:
- Será que chove, moço?
Ele enfim saiu da hipnose, semicerrou seus olhos e riu
abertamente, expondo os dentes, indignado pelo assunto que ela puxara.
- Acho que talvez... – respondeu, interrompendo o riso,
pois voltara a ficar magnetizado pelo fluxo de energia que saía dos olhos
castanhos.
A chuva simplesmente não queria parar e os dois perderam
o fio para conversar. Ela não queria conversar. Ele... inspirou prolongadamente
e se aproximou da moça, deixando seu braço, coberto pelo moletom molhado, o
mesmo do dia anterior, encostado no dela, desprotegido e ouriçado pelo frio que
apareceu com a água que caía. Num movimento rápido, ela repousou sua cabeça no
ombro do rapaz e ignorou que estive molhado. As bolsas de ambos estavam
repousadas no degrau entre a calçada e a loja. Sem dar tempo suficiente para
que ela pudesse se acomodar em seu ombro, o rapaz virou-se para ficar em frente
a moça, deu mais uma longa inspirada e aproximou seu rosto ao dela a fim de
beijá-la. Ela, fechando os olhos, disse:
- Não.
O rapaz recuou um passo, ficando no limite entre a
marquise e o céu, sendo atingido por algumas gotas, e, antes de reagir, correr
ou xingá-la, foi empurrado pela moça para a chuva.
- Agora sim.
Cena de filme, a diferença foi, depois de serem invadidos
pela reconfortante sensação de quebrar a tensão nascida no dia
anterior, ao revelarem o desejo, um ônibus passou na rua, gerando uma onda sobre
eles. Assustada pela agressividade da água, a moça se separou do rapaz,
tentando secar o rosto, mas, como ainda estavam desprotegidos, longe da
marquise, não adiantou, no mesmo segundo, estava com a cara novamente molhada.
Voltaram ao abrigo. Ele tirou o casaco, dizendo que ela estava com frio, pôs a
peça sobre os ombros da moça, e se sentaram. De mãos dadas, encaravam a chuva
com sorrisos ainda maiores do que os dados anteriormente naquela noite ou ontem.
A chuva passou, mas não levou os sorrisos