Não sabiam se eram dominados pela raiva de terem aguentado tanto tempo para finalmente enxergar o buraco onde estavam ou pelo desespero de perceber que o tão temido fim enfim estava ali, com os dois, no quarto cheio de vazio e dor. Além de lágrimas, derramavam ansiedade e abnegação sobre o chão do apartamento congelado por memórias apagadas de um tempo distante repleto de afeto e carinho.
Enquanto Ele pressionava uma mão com a outra, após ter socado a parede a fim de tentar abir uma rachadura que deixasse sair toda a melancolia presa na casa que o afastava d'Ela, que estava sentada a seu lado no chão, puxava um botão de sua camisa com mãos trêmulas, quando, querendo arrancar a mágoa que impedia o amor que guardava em por Ele de se manifestar, acabou arrancando a peça de roupa.
- Não sou mais capaz de te amar, de viver aqui, mas tô perdida, porque também não sei não te amar, não consigo ficar longe, é como se você mantivesse todos os meus cacos de vidro da minha existência unidos… Mas o que quer que seja que você usa pra colar meus pedaços, tá me machucando. Ou talvez sejam meus próprios cacos de vidro que estão me cortando cada vez mais, abrindo minha pele, deixando qualquer coisa boa que sinto por você fugir. A gente chegou num ponto que o comodismo se enraizou entre nós e nos prende juntos, mas não dá pra arrancar porque já não dá pra diferenciar sangue de raiz.
- Talvez seja melhor deixar o vidro se quebrar inteiro e tentar remendar com mais calma. Olha pra mim, eu não queria que acabasse assim, com a gente numa dança entre raiva e choro, eu queria que não acabasse, na verdade, do fundo da minha existência, você é a pessoa que mais me entendeu, apoiou, amou... Só você conseguiu aguentar essa minha bagunça por tanto tempo, mas... Mas eu sinto que meu egoísmo foi o que mais nos distanciou, o que mais prejudicou nossa convivência desde sempre, vendo agora, percebo que o que fiz por você não chega nem perto de tudo o que você fez por mim.
Quando o silêncio começou a perturbá-los, lembravam, cada um em sua própria mente, da primeira vez que se encontraram, do chaveiro, do bilhete, das relíquias e memórias que guardavam em suas bolsas e carteiras e seus corações desde a noite em que se conheceram em outra cidade, em outra vida.
Lembravam pedaços do primeiro capítulo deste romance, a integridade dele, assim como a de suas mentes, havia se diluído nos litros de álcool ingeridos naquela noite. Primeira cena, estavam no fumódromo de um bar, cada um com seu grupo de amigos, então Ele procurou um lugar para se sentar quando sua cabeça começou a pesar demais. Conseguiu um espaço, entre uma goteira e algumas pessoas, e repousou a cabeça no próprio colo. A pressão baixa o fez companhia até que Ela percebeu a situação, deixando seus amigos, sem conhecê-Lo, perguntando se estava tudo bem. Ele só teve força para levantar uma mão e fazer um gesto de positivo. “Você tá sozinho? Quer alguma coisa?”, perguntou Ela. Recuperando-se aos poucos, o rapaz levantou a cabeça, sorriu e respondeu que estava bem e completou, ainda extrovertido por conta das bebidas: “Falei pra mim mesmo que devia parar de beber tanto assim e tentar ficar sóbrio em festas, mas, como é meu aniversário, achei que precisava de uma despedida do álcool...” “É seu aniversário? Parabéns!”, empolgada pela vodca, deu um abraço, “vou te dar um presente, tenho um chocolate aqui, você gosta desse?”, tirou o doce da bolsa e, com a resposta afirmativa d'Ele, entregou ao rapaz, “Falando em despedida, hoje é a minha também, mas não do álcool, da cidade”. No meio da conversa, quando o desejo já era grande e recíproco, Ela o ajudou a se levantar para fumar, "Mas isso não não vai fazer tua pressão cair de novo?", "Talvez", mas não encontravam seus esqueiros. Ela deu alguns passos para pegar um emprestado de uma fumante, e, na volta, chutou alguma coisa, sem perceber, que foi na direção do rapaz. A moça tinha por costume soltar a fumaça com o queixo levantado para ver a noite absorver o gás carbônico, e, numa dessas, o rapaz rapidamente se abaixou para pegar o objeto que Ela havia chutado há pouco. Guardou no bolso a miniatura de Torre Eiffel e os dois continuaram conversando sobre tudo. Quando o relógio bateu duas da manhã, as pessoas começaram a se descolocar para o balcão do bar, pois havia começado open bar de vodca com energético. Terminaram seus cigarros e entraram para se enebriarem ainda mais.
Não sabiam como foram parar da Liberdade à Consolação, os dois compartilhavam um momento de euforia - e uma garrafa de vinho, que ambos odiavam, mas era o que tinha de mais barato no posto de gasolina que encontraram no meio do caminho. Fizeram o trajeto caminhando, conversando, como se não fosse quatro da manhã e não houvesse possibilidade alguma de assalto ou coisa pior. Graças a D… Graças ao acaso, de não terem encontrado ninguém mal intencionado no percurso, nada aconteceu além de um afogamento: caminhavam de mãos dadas, como se tivessem intimidade estabelecida há anos, e procuravam por um hotel. Abraçavam-se a cada parada para atravessar a rua e se distraíam com calorosos e alcoolizados beijos. Subconscientemente, acreditavam, de maneiras diferentes que apenas o sexo amenizaria a paixão explosiva que emergia cada vez mais forte e devastadora. Enfim entraram num quarto e o que sentiram durante a noite toda - desde o "Você tá sozinho?" até o beijo de despedida na manhã seguinte - ecoou por tanto tempo quanto durou a paixão, o amor e a saudade.
Após se jogar nos braços d'Ela e antes de se entregar a Hipnos, pegou o chaveiro e jogou dentro da bolsa d'Ela, aberta e jogada no chão.
Acordou no meio da noite, na verdade, o sol já gritava lá fora, acendeu um cigarro e observou o corpo daquele que teria potencial para ser alguém em sua vida e pensou na despedida que deveria acontecer em seguida. Terminou o cigarro, alcançou sua bolsa, seu bloco de notas e uma caneta, "de todas as profissões do mundo, tinha que aparecer outro jornalista", riu sozinha e escreveu algo para o rapaz. Deitou-se novamente e cochilou por duas horas ou menos. Queria continuar ali, queria continuar com Ele, mas precisava sair.
Sob seu celular no criado-mudo, havia uma nota de vinte, outra de dez, e um pedaço de papel:
“Precisei partir.
O dinheiro é minha parte pra pagar o quarto.
Meu telefone: […]
Mande notícias.”