[Aquela epígrafe que só fará sentido para uma pessoa]
No momento em que abri os olhos, vi que ela me encarava apática, triste (com o mesmo olhar de quando me disse que gostava de mim, muito, mas acreditava na impossibilidade de ficarmos juntos naquela ocasião, muralha que desabou tempo depois, ressalto imediatamente não devo me ater novamente a definição qualquer de “tempo” porque, como Hans Castorp na montanha, não sei há quanto tempo estou aqui, aqui na situação de aparente persistência neste livro, ainda é o primeiro capítulo ou o último?). Quando abri os olhos, mesmo sonolento, imediatamente a reconheci, percebi em seu rosto a importância de nossa história à parte, sabia que não era um sonhador, vejo-a me observando e nossos olhares de divergiram quando seu amigo (que eu conhecia e, aliás, gostaria que fôssemos amigos, mas o timing não permitiu) disse meu nome, acenando, e o susto, tanto pelo chamado quanto pelo reencontro inesperado, me fez discretamente cerrar os olhos e fingir sono naquele ônibus onde não imaginava encontrá-la, afinal ela foi para lá e eu permaneço aqui (neste caso, geograficamente). Devia haver alguma atração artística que a trouxera para cá, ou um aniversário, não devia me importar com o quê, minha rotina não passava de work, work, work, e, apesar de minha formação acadêmica, não lia notícias, sabia das coisas pelo que comentavam no trabalho ou ouvia nos meios de transporte, se estivesse atualizado, saberia o que a trazia de volta. O que ouvi naquele instante de cansaço foi meu nome emitido pelo simpático comparsa da mulher com quem vivi (insisto em me convencer que nosso tempo verbal é passado) o romance mais frustrante para o público, pois se limitava ao platônico, intangível, na maioria dos capítulos, ninguém entendia, espectadores não aceitavam que aquilo era algo tão relevante para seus protagonistas, mas era - de certa forma. Seu amigo me chamou apenas uma vez, cerrei meus olhos tão rapidamente quanto os abri, me tornei invisível, esperei. Adormeci, fato que não se repetia desde minha infância, no constante trajeto entre Cabral e Cachoeira, porém, desta vez, despertei em um ponto do Centenário, sem saber quantas vezes fiz o mesmo percurso adormecido naquele veículo, o importante era que ela não estava mais lá, no ônibus, no desejo.
Para uma história que se tornou tangível em um show estrangeiro, o último espetáculo à dois (desconsiderando a multidão inebriada ao redor) foi num bar falido com uma banda desconhecida local em que passamos o resto da madrugada abraçados, motivados tanto pelo frio quanto pela saudade gritando que deveríamos agora, enfim, com certeza, ficar juntos. Exatamente uma semana depois disso, me perdi e nego em compartilhar com ela a culpa, nem mesmo cito o episódio que motivou minha perdição, mais uma. Desde as primeiras páginas, me perdi constantemente, tentava voltar, reler o que havia sido escrito, retomar o rascunho com devida coerência, mas no último ano, com certo amadurecimento, concentrei-me para manter o foco, mas mesmo assim o álcool libertou minha persona mais desprezível, gostaria de também ignorá-la, mas restam consequências com as quais preciso lidar, sóbrio ou não, independentemente se quem fez o que fez foi eu ou eu.
Em um canto sombrio deste mesmo quarto, há uma pilha de coisas que nunca te disse e os demais DVDs que jamais assistimos juntos, porque era um passatempo vê-los no silêncio de nossos solitários refúgios, ansiando por companhia, mas permanecendo nisso: ansiar. O querer sempre foi maior do que o ser/estar. “I love you longing for me”, como dito naquele filme que não vimos juntos, mas era como se ela estivesse ao meu lado ou fôssemos protagonistas em cena.
Nas poucas noites em que meu corpo se desintegrou com a colisão subatômica e se fundiu ao seu, julguei não mais ser viável ter um corpo individual, só meu, atrelado apenas a minha mente, porque, em algum momento, senti nossa unidade fluir sólida, firme como a mármore de construções que visitamos juntos. A ilusão de que dois pode ser um, desprezando a realidade física de que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço, estraçalhou-se no espaço desfeito. Minha fé em nós era maior do que a ciência, achei que a gente era uma grandeza maior, contudo, em decorrência de tanto, sei que a única força a fluir ininterruptamente é o tempo; nós não, éramos uma força hipotética, que sobreviveu somente em teorias, no papel.
Escrever sobre o passado, que seja descrever o que não há entre nós (ou o que há, o nada), não representa apego ao desejo, afinal não existe mais, só menos. A personagem habita em meus textos mesmo que o desejo não habite meus dias. Na névoa das lembranças, o desejo pode se confundir com a nostalgia dos bons momentos e fazer crer que ainda deveria existir contato, carinho e o resto, não o fim. Então prefiro a distância para não me perder novamente no que éramos, se é que existia algo além de um sonho nublado, evitar o querer é o caminho pelo qual optei.
Esta história é como aquele disco que eu tinha, que ela nunca ouviu na minha casa, mas estava no mesmo armário da mesma sala em que nos desintegramos em uma madrugada de novembro (poderia dizer que não me lembro da data, mas "I remember it well"), o vinil sempre se repetia em um trecho, “Penny Lane… Penny Lane… Penny Lane…”, até que eu largasse a louça ensaboada na pia, porque costumava ouvir este álbum fazendo algo na cozinha, e corresse para arrumar a agulha, por mais que gostasse da música, não dava pra deixar um disco riscado se repetir à exaustão. Abandonei discos, gostos e pensamentos, só não abandonei a escrita porque aqui permaneço vivo, mesmo que ela não leia, ao contrário do nosso romance, que não só leu como escreveu e também descartou.
Muito cinismo, muitos parênteses e nenhuma conclusão decente.