2015/12/31

Cansaço

“And if it pleases you to leave me, just go.”
Sufjan Stevens, Enchanting ghost

Você insiste. Você insiste em mim. Você insiste em ver algo dentro desse buraco de desgraça chamado eu que ninguém vê, não tenho mais o que você precisa: estabilidade. Danificado demais estou para viver com qualquer pessoa, infelizmente, incluindo você. Estabilidade para viver em paz com alguém, sem ter que se preocupar com crises de ansiedade, socos na parede, curativos nos nós dos dedos, tremedeiras, calmantes e isolamento. Tudo gira, tudo treme, nada está no lugar, nada está certo. 
Quão fácil seria partir? Não seria melhor? Por que não parti? Por que você não pergunta por que não tomo a iniciativa, já que insisto tanto em acreditar na prejudicialidade do prosseguimento deste relacionamento? Porque não consigo, não tenho iniciativa, ela não me serve, nunca me serviu, não me adapto a ser a pessoa pró-ativa, que fala na cara o que sente e o que acredita que precisa ser feito, nunca consegui ser assim, então apenas deixo-me arrastar, sem forças, até que alguém faço algo. Em tantos momentos, bons e ruins, você agiu primeiro. Agora, novamente, você precisa assumir o controle. Você precisa partir. Você precisa arrancar os nós que nos unem, mesmo que seja doloroso demais, antes que você seja puxada para baixo e se afogue junto comigo. Não quero te ver mal. Não quero te ver aqui, nesta loja que vende apenas óculos que enxergam melancolia e tragédia. Não há tempo para retrospectivas, mas, resumindo, tivemos um prazeroso relacionamento por anos, até que...

2015/12/28

Lonely People XV


Depois de uns meses de férias impostas simplesmente pela vontade de ficar em casa dormindo, praticando ócio criativo, vivendo seu período sabático, decidindo se tinha feito a escolha certa ao terminar a faculdade, engolindo crises existenciais, enfim chegou o dia de estrear oficialmente como psicóloga profissional. Se conseguisse controlar a crise de ansiedade que emergia de suas mãos, começaria a trabalhar numa clínica de apoio a jovens em situação de risco na A. N. d. J. No caminho, passou em frente a um sex shop da R. A. e, ao encarar a vitrine, lembrou-se que fora encarregada de comprar alguns itens para a despedida de solteira que ela e algumas amigas fariam para a que se casaria em duas semanas. A pequena Sabina Spielrein (apesar da graduação não ser a mesma que a psicanalista russa, tinha-a como inspiração, bem como outras psicanalistas da vida real e da ficção) estava empolgada para a cerimônia, mas não pelo casório em si e a felicidade de Y. Eva não acreditava na seriedade desse ritual sagrado - em decadência. Não crê, aliás, na institucionalização de um sentimento, na autorização escrita para que duas pessoas possam ser felizes, até que a morte as separe, afinal, ninguém precisa de aprovação de terceiros e, mais importante, ninguém será feliz com alguém até que a morte encerre o relacionamento porque o fim vem antes disso. A empolgação para o casamento era, além da felicidade em ver sua amiga tão infeliz antes finalmente completa com alegria e amor, devida à presença do jornaleiro, que também conhecia a noiva e estaria na festa.
Como ainda tinha tempo de sobra antes de bater seu primeiro cartão-ponto na clínica, entrou na loja erótica e comprou algumas lembranças para a despedida de solteira. Ao chegar no trabalho, percebendo a quantia de menores de idade na recepção, mocou a sacola de compras em sua bolsa. A diretora da clínica, uma senhora japonesa mais simpática que qualquer pessoa que Eva já conheceu, entregou-lhe um jaleco branco, com seu nome inscrito no bolso superior esquerdo, que, de tão grande, mais lhe servia como uma bata episcopal. Devidamente uniformizada, então teve uma ligeira epifania: agora a coisa ficara séria,  realmente séria, estava a poucos passos (a distância entre a sala de sua chefe e a de atendimento) de se tornar psicóloga de verdade.
Jennifer Melfi tentou encarar os olhos do primeiro paciente, que já seria memorável simplesmente por ser a primeira pessoa assistida, o adolescente que recém se sentara a sua frente silenciosamente. O olhar do rapazinho mirava o chão. Eva queria que ele fosse o primeiro a falar. Ao invés disso, ele tirou o celular do bolso e começou a jogar algo bem barulhento. Passaram-se cinco minutos e o garoto parou, encarou rapidamente a mulher e perguntou:
- Quantos anos você tem?
A novata pigarreou e entonou uma voz séria, adulta:
- Desculpa, mas não estamos aqui pra falar sobre mim, Douglas.
O adolescente se fechou novamente e permaneceu por mais vinte minutos em silêncio, jogando, enquanto Eva, já sabendo o quê o trouxera ali, fazia anotações sobre o paciente. Até que o garoto quebrou o gelo, ainda encarando a tela do aparelho:
- Minha mãe morreu ano passado.

2015/12/13

Liberdade

A cada passo dado, o nervosismo gerava grande tensão entre ela e o solo e os prédios e tudo, não conseguia se acalmar, não conseguia encontrar a calmaria qualquer fosse a rua que pisasse, tudo se movimentava, tudo tremia, tudo fluía tão rapidamente quanto seus pés conseguiam acompanhar. A cidade o diminuía. A diminuía? Não sabia mais quem era, nem mesmo se de fato era. O asfalto gerava raízes que se enrolavam nas pernas dela, dele, melhor dizendo, o asfalto criava raízes que abraçavam suas pernas onde quer que fosse, apertavam-nas, mas também a acariciavam. Quaisquer toques diferentes daquele de sua cidade natal (ou de quem não vive mais a seu lado), por mais doloroso que pudesse ser, era melhor que o toque do passado.
A ansiedade foi se exaurindo com o passar dos dias, adaptou-se inércia de sua nova capital, não mais se feriu com o movimento ora frenético ora sonolento. Corria, dormia, repetia.
Dentro do metrô, tentava congelar um frame das paredes, dos tuneis, os prédios, as pessoas, tudo que passava, mas, como entendeu dias antes de sua grande mudança, as pessoas, os prédios e os túneis não param, não ficam, nada para, nada fica e tentar parar o tempo para apreciar o que surgisse em sua frente era tão inútil quanto insistir em relações corrosivas demais, abusivas demais, nostálgicas demais, exageradas demais, distantes demais, ademais. Perder-se em solidão no meio de uma nova e maior cidade seria menos doloroso que ficar. Adiantando o desfecho não exposto desta narrativa, a dor alcança todos os lugares e não há maneira de se prevenir, ela sempre chega e invade seu corpo, sua mente, tudo, destrói tudo, incinerando rapidamente, numa velocidade invisível, ou lentamente, lentamente, lentamente… corroendo pedaço por pedaço de uma existência já em pedaços.
Sabendo de seu destino, ignorava-o, seguia o seu fluxo, que se unia ao da cidade, e vivia, inspirava rotina e expirava passado, desintoxicava-se, quarto, banheiro, cozinha, ruas, vagão, ruas, escritório, ruas, bar, ruas, vagão, quarto, solidão, corria, dormia, repetia.
Confundia seus vasos sanguíneos, músculos e tendões com as vias da cidade, sentia cada passo, cada pássaro, cada queda, cada gole, tudo que a cidade sentia.
Ali, com aquelas pessoas, seguindo cada uma seu próprio caminho, ninguém queria ser uma formiga, sentiu vontade nenhuma de expurgar seus demônios, vomitar suas angústias, xingar seus fantasmas, queimar seu passado, nada disso, superara-o. Ali, respirava, sentia a tranquilidade de não pertencimento àquele lugar ou àquelas pessoas.

2015/12/04

De mãos dadas

No exato instante em que acendeu o primeiro cigarro, ainda na esquina de sua casa, permitiu vazar a angústia há tanto tempo que era incapaz de saber como surgiu, a incapacidade era tanta que não conseguia combater o tormento, que crescia e crescia e adormecia e despertava e crescia... Sozinho, tenta encontrar a fragilidade do sentimento para atingi-lo e causar sua destruição.
Qualquer pessoa que cruzasse sua jornada em busca de uma garrafa de qualquer coisa que conseguisse lhe dar algumas horas de distanciamento do que o corroía - e de si mesmo - poderia ser considerada uma ameaça a sua saúde física (ou o que restava dela) - a mental já estava danificada demais para uma nova rachadura, não havia mais espaço para outras. Temia que as pessoas pudessem tirá-lo deste precipício onde tropeçou e permanece em queda livre, como se o fundo levasse diretamente ao topo, ad infinitum, causando cada vez mais dor. Temia o que as pessoas poderiam leva-lo a um novo precipício - ou um lago de tranquilidade -, não queria arriscar.
O segundo cigarro foi aceso logo que o primeiro se deitou na sarjeta, ainda queimando. Ele queria ser aquela bituca, queimar-se inteiro até que os ventos levassem e a cidade dissolvesse suas cinzas. "Todo munto é um cigarro", afirma ele, "todo mundo é consumido por outra pessoa, queima e é jogado fora". Ele não acredita em salvação, independentemente de como acontece ou que “força superior” a executa; para ele, ser salvo é o holograma de uma escultura: é possível vê-la e acreditar nela, crer no conforto que emana dela, mas seu toque de cura é tanto intangível quanto inexistente, inútil.
Quanto mais andava, mais a agonia o abraçava e segurava sua mão, como se fossem o casal perfeito, mas ele não queria se comprometer com a melancolia de uma vida sem causa nem motivação. Aliás, esse era o único "relacionamento" que conseguia manter nos últimos meses. Seu estado gerou um campo de força que afasta qualquer pessoa, aquelas que já estavam em sua vida ou as que poderiam ser "algo", restam apenas as memórias da época que conseguia conviver em paz e os sentimentos, todos os sentimentos - sobre tudo.
Havia a ilusão de estabilidade, claro, e o disfarce era mantido de maneira exemplar, porque, um, sua apatia em relação a sua situação era tão grande que não se esforçava nem mesmo para se auto-sabotar, e, dois, ninguém se interessava em investigar sua mente, desconstruir seus problemas, analisar sua complexidade, reconstruir tudo. Não que ele se importasse com isso, mas refletia sobre.
Ao fim do terceiro cigarro, já sentado no meio-fio, engolindo o pior vinho que encontrou, seu favorito, sente-se como Antoine Roquentin, apesar de não saber se amanhã vai chover sobre Curitiba (ou Bouville), vazio. Não tem expectativas ou curiosidade para saber como tudo vai terminar. Deixa-se ser dominado pelo álcool e pela nostalgia de quando não estava destruído.

2015/11/30

Veredito - Parte II

- Testemunha número dois


Acho que a última vez que te vi desconsertado desse jeito foi quando saímos juntos pela primeira vez sem a turma do bairro, como um verdadeiro encontro. Você sentado todo sem jeito encarando as mãos repousadas em seu colo batendo os indicadores nas coxas e lançando olhares ligeiros na minha direção. Só que agora, no ônibus, você tinha um novo hábito. Se eu te perguntasse isso, sobre por que começou a roer unhas, responderia que era apenas mais uma mania para controlar sua ansiedade. Exagerado. Ah é, exagero, aí uma coisa que você repete demais em sua vida. Ao menos, no tempo em que convivemos, mas fazem tantos anos que certamente você não é mais o mesmo. Com toda certeza, eu não sou mais aquela de antes. Era coisa demais pra sustentar, a sua intensidade exagerada nas coisas. Parece que você gostava de ser assim, estupidamente complexo e intenso. Cara, devia ter falado naquele tempo: Para de ser assim. Era preciso ter muita paciência pra lidar contigo. Além de paciência, eu tinha afeto, muito, que me fazia acreditar que sua problematicidade - minha pesquisa de mestrado me faz usar essas palavras diferentes, aliás, você adoraria saber que agora concretizo minha pós-graduação, mas não temos mais a mesma intimidade para conversarmos (sobre nada) - era apenas um curto empecilho que eu devia enfrentar, tolerar, ignorar para ficar contigo. Eu acreditava que valia a pena. Acreditei. Acho que deixei de dizer muita coisa enquanto estivemos juntos pra evitar discussões. Tenho a impressão que você partiu pensando que estava tudo definitivamente acertado entre nós. Que o término fora um acordo recíproco e pacífico. Pacificidade era o que não havia em mim naquela época. Você era tão decidido de tudo que enxergou um desfecho tranquilo onde havia uma cratera siberiana. Deixei relacionamento cheia de raiva. “Raiva por estar longe de mim”, você pensaria assim, eu sei. Não seja convencido como antes. O mundo não gira ao seu redor, Plutão. Sei que você tinha uma cacetada de traumas e problemas e conseguia aos poucos superar tudo isso, belo exemplo de superação, mas, cara, seu egocentrismo é corrosivo. Ego inflado e distanciamento se tornaram para mim componentes repulsivos do seu organismo. Apesar dessa montoeira de coisa que me afastava de você, apesar de tudo, eu gostava de você. Demais. Seu magnetismo tinha, ainda tem, um efeito tão desgraçado que falo de você quando devia estar falando de mim ou qualquer outra pessoa. Por exemplo, meu marido. Não quero reduzi-lo apenas a um fato, mas, para que você saiba, ele foi o maior antídoto que eu poderia ter encontrado pra te tirar do meu sistema. Descanse em paz.

Anos depois, agora, depois de vários tapas na cara que levei da vida, percebi que também errei, sempre tentando encontrar os defeitos nas pessoas para julgá-las e persuadi-las a mudar para o certo - segundo o que eu acreditava ser correto. Pensando bem, você também fora bastante paciente pra lidar comigo. Mas, poxa, éramos tão jovens e cheios de certezas que não passaram de impulsos momentâneos.

Agora eu olho pra você, depois de tanto tempo, e vejo um homem tão diferente daquele jovem que conheci na casa daquela nossa amiga, que hoje mora em Chicago - é, alguém de nosso bairro tinha que dar orgulho internacional pra gente. Não sei se é a roupa ou a maturidade que vaza de seus olhos, mas algo em você traz um novo encanto. Estamos aqui em silêncio e começo a encarar seus rosto. Algo diferente. Morro de vontade de perguntar o que é essa cicatriz na tua cara, Tony Montana, mas tanto tempo distantes fez com que eu desaprendesse a falar contigo, perdesse a intimidade e tudo mais que havia entre e dentro de nós. Tenho certeza, baseada no quanto te conhecia, que tenta julgar um réu para nosso crime, mas, pense bem, a culpa não é minha nem tua, é nossa.

Inesperadamente, a vontade de te abraçar entrou pelas janelas do ônibus, não por, sei lá, te querer de volta, não, mas por saber que alguém da sua família morreu, e tenho certeza que você precisa de ser abraço, porém a primeira coisa que consegui fazer foi dizer:
- Você sentou em cima do meu vestido.

...

2015/11/25

Veredito - Parte I

- Testemunha número um

Cúmplices, testemunhas, álibis, réus, juízes, júris, advogados, somos tudo isso neste crime chamado Desejo. Não há culpa única, apenas meus atos somados aos teus e as consequências. Não planejamos a execução de tudo e consequentemente deixamos rastros. As marcas ficaram em todos lugares, por todos os campos onde corremos, em cada centímetro de nossos corpos, e não conseguiríamos apagá-los mesmo se fossemos perfeccionistas.
Disseram-me uma vez (não lembrar a fonte, o que afeta a veracidade do meu testemunho) que “‘dá certo’ quando uma pessoa é idealista e a outra pragmática”, mas não souberam me dizer sobre quando as duas pessoas mantém suas mentes isoladas em nuvens e tomam chá de pessimismo com folhas de receio após todas as refeições.
Eu parti. Você ficou. A cidade. O caso. Eu não dormi e Você, não sei, por meses. Pensei, e creio que você também tenha pensado assim, que as evidências, as memórias, do que havíamos feito aparentemente haviam sido eliminadas da existência. 
Na época que nos conhecemos, eu cursava Direito, supostamente devia saber o rumo ético, legal, o que seja, em qualquer situação, mas comecei a fazer tudo errado quando me viciei na droga do amor. Ao te conhecer, comecei a descobrir uma pluralidade coisas que me desviaram do caminho “certo”. Larguei a faculdade, família e tudo que podia me deixar estagnado. Encontrei em você, nas artes e em todo o resto que encontrei em meu novo caminho o que eu queria para mim. Mas aí nós dois chegamos a uma rua sem saída para nosso relacionamento, um beco cheio de ansiedade. Não sei como seguiu sua vida depois. Eu fui pra longe. Assumir uma nova identidade, me distanciar da vida de delitos ao teu lado.
Agora estou de volta à cidade onde cometemos o mesmo crime várias vezes, em diversos lugares. Agora, enquanto mentalizo este conto, estou aqui, no ônibus indo ao bairro onde crescemos e nos conhecemos pra pegar as coisas que meu recém falecido pai deixou de herança, creio que apenas um álbum de fotos e os livros de receita que ele e minha mãe escondia. Agora, enquanto sopro para longe a lembrança melancólica das duas pessoas que me trouxeram a este doloroso mundo, estou sentado a poucos metros de você que ou me viu e se afunda num livro pra se esconder e sumir ou não me viu e, de qualquer maneira, se afunda num livro pra se esconder e sumir. Aliás, o que você está fazendo aqui? Não havia se mudado pro Centro, naquele prédio na rua do último emprego que tive nessa cidade? Talvez você tenha se aliado à Justiça, a fim de ter sua pena reduzida, e está me seguindo, usando uma escuta com câmera escondida pra me pegar em flagrante, me condenar a prisão perpétua pelo crime de Não Esquecer Um Amor Passado. O banco ao seu lado vagou. Demoro algum tempo pra me decidir se devo me sentar ao teu lado. O lugar que deve estar desocupado há algum tempo. Eu sei, tenho informantes, você se casou com aquele cara, que morreu de câncer há pouco mais de um ano. O maldito não escondia os sentimentos que tinha por você, nunca o condenei por isso, e você não queria machucá-lo, mesmo sabendo que naquela época era parceira de outro alguém no amor e não podia ficar com ele. Não sou covarde de te incriminar por se apaixonar novamente, depois de nosso desfecho, jamais seria, e tenho certeza que ele foi um amante muito mais digno e memorável que eu, que não consegui viver em cumplicidade por mais tempo. Nunca tive estrutura psicológica para essa vida criminosa. Como está o seu luto? Que crimes anda cometendo?
Aqui terminam meus pensamentos no banco dos réus. Vamos aos fatos ao vivo, no banco de ônibus. Levantei-me, hesitei, andei, sentei ao teu lado e você demorou um pouco pra perceber que não era mais uma senhora de vestido verde que estava ao seu lado. Você fechou o livro, sem olhar pra mim, encostou a cabeça no vidro e, olhando para fora, para a rua onde andávamos de bicicleta, para a rua que agora está asfaltada e sem quase metade das árvores de antigamente. Você permaneceu encarando o exterior. Em silêncio, ainda sem mirar teus olhos castanhos pra mim, sorriu.

...

2015/11/18

A culpa ou O souvenir

“Você precisa superar essa mulher e procurar outra melhor pra você.”
“Você precisa superar essa mulher e procurar outra melhor pra
“Você precisa superar essa mulher e procurar outra melhor
“Você precisa superar essa mulher e procurar outra
“Você precisa superar essa mulher e procurar
“Você precisa superar essa mulher e
“Você precisa superar essa mulher
“Você precisa superar essa
“Você precisa superar
“Você precisa
“Você
“Você precisa
“Você precisa continuar
“Você precisa continuar insistindo
“Você precisa continuar insistindo e
“Você precisa continuar insistindo e ignorar
“Você precisa continuar insistindo e ignorar qualquer
“Você precisa continuar insistindo e ignorar qualquer outra
“Você precisa continuar insistindo e ignorar qualquer outra mulher.”


O desejo tal qual uma faca cega distorcia todos os conselhos que tentavam jogar em sua cabeça. Ignorava as coisas que lhe diziam sobre o quanto certo “relacionamento” - que não passava de um flerte platônico romantizado que durou anos - como se fossem emails de aumento peniano.
Questionava-se se o amor de M. não era suficientemente forte para tirá-lo do poço de C. A resposta, a qual ele se recusou a enxergar, era que não havia maneira possível de mensurar o quanto uma pessoa ama outra e esquematizar gráficos comparativos com o sentimento por uma terceira. Sua mania de transformar tudo e todo mundo em número não era prática quando se tratava de relacionamentos. Meses depois do desfecho, melhor dizendo, perda de contato, após se abrir para poucas amizades sobre tudo, entendeu que o que mais prejudicou seu relacionamento com O. não foi a falta - ou excesso - de amor, mas o fato de não ter conseguido superar nem esquecer C., que invadiu seu peito poucos meses antes da chegada daquela que o aceitava como ele era, sem que ele criasse personagem algum. Nessa corrida sem vencedores, as duas mulheres já subiram ao pódio pegar suas medalhas de participação, e ele ainda está a muitas voltas de cruzar a linha final, que separa a saudade, o desejo, de uma vida nova.
Depois de um tempo, depois que os dois pássaros deixaram sua mão, se é que algum dia chegaram a repousar ali, e foram voar longe, a frustração, que parecia distante, na verdade, foi uma maré que recuou bastante, deixou a praia seca, cheia de areia e saudade, e voltou com tudo, avassaladora, trazendo todas as epifanias que ele não teve em época mais apropriada.
Agora, sozinha, restava o único souvenir que conseguiu manter antes de queimar tudo ao seu redor, a lembrança de um tempo em que ele podia repousar num sofá, num banco - de praça ou ônibus - e olhar para o lado, e sentir-se tranquilo e compreendido.
O desfecho decente que ele queria e precisava talvez nunca se concretize, mas temia que O. tivesse enfim superado o que viveu com ele, mas, mesmo assim, um novo contato poderia servir para desencadear uma nova avalanche de tristeza. Ele não queria vê-la assim, mas não conseguia mais reter a culpa e não suportaria saber que, em alguma realidade paralela, ela leria seu pedido de desculpas e responderia a fim de um recomeço.

2015/11/17

Você era suave ou A Vida...

O sufoco no meu peito e a tremulação nas minhas mãos eram só uma parcela de tudo que sentia a cada passo mais próxima de você, fumando câncer na entrada do terminal, procurando alguma coisa do Fincher na seção de DVDs daquela livraria onde você segurou minha mão pela primeira vez, lendo seus existencialismos em algum banco de praça ou contando estrelas naquele terraço, que - para mim - era nosso lugar secreto, um canto só nosso, por mais que fosse público. Odeio lembrar dessas coisas e de tudo. Você alvoroçava minha ansiedade ao chegar, quão mais perto você ficava, mais ar me faltava, e me deixava mais inquieta ainda ao se distanciar do ônibus após nos despedirmos. Não sabia lidar com sua presença nem com a distância, as duas me machuca(va)m - de maneiras diferentes, que fique claro. Quando você e sua mão quente acariciavam a minha, trêmula e gelada, me dava vontade de gritar “me deixa! não quero que você pule o muro para o meu jardim de intimidades… e fraquezas … e tudo o que existe em mim! quero você longe”. Quero. Você. Longe. Isso resume tanto um perídio de nosso romance. O que de fato me feria com a sua presença era o medo de ter alguém mergulhado de corpo inteiro na minha vida. Parece besteira, mas me desespera(va) ter alguém tão próximo a ponto de saber tudo o que se passa(va) comigo, que conseguisse vasculhar minha bagunça interna. Por outro lado, não ter sua presença me levava a um pântano de ansiedade maior que minha confusão, em que a saudade se entrelaçava em minhas pernas, me puxava pra baixo e enchia meus pulmões com passado, e, quanto mais eu me mexia, quanto mais eu desejasse novas vivências, novos encontros, mais eu me afundava.
Entre me afundar em angústia e me afogar em você, escolhi o caos mais tranquilo, por mais intranquila que eu pudesse ficar ao seu lado no início, decidi que andarmos de mãos dadas em direção ao ponto mais profundo do amor seria o melhor a ser feito. Me acostumei com seu corpo ao lado do meu, que foi ficando menos agitado a cada novo dia. Foi o melhor caminho. Foi. Fomos um oceano de tudo e agora resta somente um lago de passado, do qual eu corro para longe cada vez mais.
Nossas vidas à parte eram instáveis em diversos núcleos e você expôs tudo para mim, sem censuras. Não sei como, mas você tinha entendido que essa recíproca era inviável, que nunca me abriria tanto quanto você. Acontecia muita coisa comigo, um emaranhado de pontas soltas aqui dentro, você sabia, e não havia jeito possível de você resolver. Eu não tinha uma vida dupla nem assassinei meu primeiro marido ou coisa parecida, não, era apenas auto-defesa para ninguém entrar no salão onde guardo todas as minhas porcelanas. Quando seu castelo familiar desmoronou, você recorreu ao meu socorro como se eu tivesse estrutura suficiente para te servir de apoio. Mesmo assim, te acolhi, lembro muito bem, você me ligou perguntando se podia ficar na minha casa por um tempo, “quanto tempo?”, perguntei, “não sei, talvez bastante”, foi sua resposta numa voz fraca e melancólica, então você chegou e chorou no meu colo até desmaiar de tristeza ou sono. Anos depois, a tristeza e o sono continuavam no meu apartamento, e criaram laços afetivos com meu sono e minha tristeza. Viveram em harmonia no apartamento que se tornara nosso. Sua depressão, que apesar de sua abertura para expor seus problemas, levou tempo para ser assumida, mas, ah, eu sabia (ninguém “normal” passa uma manhã inteira deitado, de olhos abertos, encarando a janela como se algum pombo-correio fosse aterrissar carregando uma resposta para tudo). Semelhantes se reconhecem de alguma forma.
Nunca encontramos um campo suficientemente estável para repousarmos isentos de nossas desgraças, sempre passamos por morros pedregulhosos, mares tormentosos, nenhum lugar tranquilo. Quando não era a minha instabilidade que nos derrubava, era a sua, era difícil suportar tudo, ficava cada vez mais difícil, mas continuávamos juntos. Continuamos por um tempo maior do que nossas fraquezas eram capazes de aguentar, cada vez mais quebrados íamos ficando, talvez o tal do amor nos deixou mais fortes… A quem quero enganar? No máximo, o maldito do tempo nos tornou apenas mais pacientes… Ou dependentes. Tento não definir “dependência” como algo ruim em nossa história, a rotina estraga as pessoas, sim, mas, de certa forma, precisávamos um do outro todo para lutarmo contra vilões invisíveis. Precisávamos de uma distração, um alívio, para nossas dores. Sabia que você não chegaria em casa com uma caixa contendo todas as ferramentas para me consertar, porque, afinal, sabíamos que era impossível de resolver meu quebra-cabeça, o seu também, mas o simples fato de eu estar jogada no sofá, soterrada pelo peso da existência, e te ouvir abrindo a porta, te ver com o mesmo rosto cheio de cansaço de sempre, sentir seu abraço ofegante, você já me deixava melhor (ou menos mal).
Essa coisa de “opostos que se atraem” não funcionou com a gente em relação ao pessimismo, éramos iguais não só na depressão. Na verdade, chega a ser uma redundância se identificar como uma pessoa pessimista e depressiva, porque nunca consegui me desfazer destes óculos que uso há 14 anos, que enxergam desgraça, angústia, ansiedade e tudo que há de ruim. Deprimida, depressiva, até hoje não procurei pela nomenclatura correta, muito menos pelo tratamento médico necessário, a desmotivação e o medo de depender de remédios me afastam disso, me prendem em casa.
Não gosto de falar sobre isso tudo tanto quanto parece, mas estou nisso há tanto tempo que não tenho mais forças para tentar escapar, apenas convivo com a dor, com o sufoco no peito, com a tremedeira nas mãos, com os variados e constantes mal-estares - tanto físicos quanto psicológicos… Tantas coisas presas na garganta que algumas escapam em forma de palavras e expressões.
Enfim, sou incapaz de ignorar os momentos felizes - ou não tão melancólicos - de nossa jornada, porque, apesar de poucos, se comparados aos momentos de silêncio e distanciamento - mesmo que lado a lado-, foram muitos. Você sabe. Tudo. Queria escrever um relato mais aprofundado de nosso caso, mas tenho um compromisso com o escuro e a amargura da solidão. Você se foi justo quando desmoronamos como nunca antes, não tinha volta, independentemente do que fizéssemos, chegamos ao nosso limite, muito além de nossas expectativas no amor. A vida segue e nos prende a seu fluxo mesmo que não haja força em nós para seguir. Você se foi e...

2015/11/02

Another one about me delusioning

Ive know fucking idea what is going with what the hell i want or who the hell i know
Even if i already knew i dont have not a clue bout how to get it how to get out of this disgraceful fuckin hole of emptyness and desparate dreams
I maybe am one of those henry millers characters looking for booze and boobs but isntead of alcohol and sex i wander for mental health and confort or maybe im just the reencarnation of raskolnikov leaving myself die because some emotional remorse after some crime that i dont know exactly wich one or the cocroach of paixao segundo gh waiting for the woman that will crush my body in a door or gregor samsa trapped in a insects being without no fucki idea whats goin on
I took a long time to realize that my head was and still is wrecking constantly even thought nothing is happening nowadays. nothing but the wrecking
I get out of my claustrophobic room and go to places to be alone with a crowd that i dont know or even want to talk just to feel the presence the life flowing trough
A fuck could make me better but nobody gives a single one and i think my head is too spoiled to get better just with me touching a body and feeling it with all my senses and hearing oh yes right there yeah fuc me
I dont need compassion for my lost soul maybe just passion
When i talk to someone that ive known for a long time i feel untranslatble so imagine when i try to talk to someone new someone thats crossing my rail i rather do not talk because what i say from the bottom of my sincerity its not understood nobody comprehends what i talk and they feel that im a crazy delusional weirdo not that im not that a sociopath oh i tottaly am but i just wanted the people have the interest in talk about everything even though sometimes some egocentric monologues escape from my eyes i know im trouble i know i know i will never be fully understood or filled but i just want you not just you you all to try to be by my side without unnecessary damages but well lets be honest with each other sometime the heart mine or yours will break someone like it or not and there is no fu shit we can do about this tragedy called life
Im tired of people telling me this withou saying a single word
f you
I keep losting myself and i dont think ill ever find my whole structure with all the original pieces im just a great wall of scraps that i recovered or newones i find somewhere in the past
For those who are not so far and still can see me dont try to repair me it would be a waste of time just stay and hold on its just a phase that comes and go
For those who are emotional sadists don't lose the next episode
oh i just one more thing

2015/10/28

Segundo

Romântica desde sempre, se a questionassem sobre seu estado - tanto físico quanto mental - atual, responderia que (na medida do possível) está “tudo bem”, generalizando tudo obviamente, sem a necessidade de guardar para si uma resposta sincera, “não, tá tudo uma merda, não consigo entrar num relacionamento saudável...”, pois deixara de se preocupar com o coração vazio, o que a deixava intensamente melancólica, para direcionar seu estresse a outros cenários de sua tragicomédia, como o emprego inexistente, o aluguel pendente, as amizades ausentes ou a tentativa de encontrar a razão e a culpa para todo esse desmoronamento contínuo no último ano, apesar disso, estava bem. Não que estivesse com o coração em paz, repousando no colo de alguém, fazendo programas de casal etc, não, continuava sozinha, e não era por vontade própria, mas porque se afastava de qualquer amor em potencial, enxergava suas próprias falhas e temia que pudessem repulsar a paixão platônica da vez, corria para longe de qualquer sorriso simpático por imaginar que se transformaria em ódio fulminante quando o romance deixasse cair o cenário fantasioso de perfeição e mostrasse somente a podridão real de seu teatro de aparências e as rachaduras de seu passado, percebia que a pessoa recém-conhecida não era tão desgraçada da cabeça quanto ela e mudava seu rumo para um lugar distante a fim de evitar que contaminasse a pureza de outrem com pessimismo e rancor, não queria desperdiçar o tempo que poderia usar para dormir ao lado de alguém, conjecturar sobre um futuro perfeito ou conversar sobre interesses em comum para dar lugar a declamações de seus monólogos egocentricamente depreciativos. Quantos amores eternos desperdiçou desse jeito?, cultivando quilômetros de distanciamento?, perguntava-se constantemente, quando não estava procurando por um novo emprego ou engolindo seu orgulho no seco para pedir dinheiro emprestado a sua família para pagar contas, porres solitários e carteiras de cigarro. Tão alheia a romance, amor e essas coisas que até esquecia de remoer seus sentimentos pela única que realmente se mostrou disposta a encarar seus demônios e embarcar em um relacionamento - supostamente - estável, mas recebeu apenas silêncio, relembrar da mensagem que não respondeu daquela que poderia ter se mudado para outro estado com a memória do corpo de quem a ignorou cravada em sua pele, tentar encontrar um meio de voltar a falar com a que se distanciou achando que era odiada, entre outros casos, dedicava pouco tempo a tais mulheres por mais que quisesse a presença de todas em sua vida. Não mais sabia como manter pessoas a seu redor, não conseguia, se é que algum dia soube ou conseguiu de fato. Adjetivavam-na como romântica, emotiva, apaixonada ou palavra similar, e ela não negava tal título, mas não tinha disposição para exercê-lo, o cansaço a impedia.
Passou pela Praça Osório, cabisbaixa, ignorando as árvores que costumava apreciar, e caminhava, melhor dizendo, tropeçava pela Vicente Machado no fim da tarde, início do horário de pico, passava por estudantes e pessoas que tinham o que ela queria, emprego, e precisava se concentrar em onde pisava para não trombar com alguém e cair, o que era provável devido a sua exaustão física. Tinha acabado de sair de um teste para uma vaga correspondente a sua graduação, a primeira em meses, mas deixou a ansiedade pelo resultado, que chegaria em três dias por email, na recepção da empresa. Quase foi atropelada no cruzamento com a Visconde de Nácar, local onde os semáforos sempre a deixavam confusa sabe-se lá porquê, por um. Pensou em parar na Excelência para comer um pão de queijo, mas, ao parar para cruzar a rua, o semáforo se avermelhou para pedestres, e as poucas moedas em sua bolsa gritaram que ainda havia metade da panela de arroz com legumes que sobrou do almoço. Seguiu andando. Pouco adiante, um impulso aleatório fez sua cabeça jogar seus olhos para dentro de um café, onde, num banco alto, bem na entrada, estava uma mulher, que imediatamente percebeu estar sendo observada por uma estranha na rua. Antes que os olhares se divergissem, naquele ligeiro instante em que se encontraram, surgiu o amor e o futuro, a paixão e a vontade. Foi um momento de certeza, ela deveria entrar ali e iniciar o maior romance de sua vida. Nunca antes se sentiu tão encantada por uma pessoa. O relógio parou. Esqueceu de respirar enquanto avistava a moça. No passo seguinte, quando a perdeu de vista, seguiu seu caminho e ignorou o fim dessa história que mal começou. Acendeu um cigarro, distraiu-se com seu próprio silêncio e seus próprios conflitos em meio a buzinas e palavras e continuou.

2015/10/20

Casa (des)construída

Não sabiam se eram dominados pela raiva de terem aguentado tanto tempo para finalmente enxergar o buraco onde estavam ou pelo desespero de perceber que o tão temido fim enfim estava ali, com os dois, no quarto cheio de vazio e dor. Além de lágrimas, derramavam ansiedade e abnegação sobre o chão do apartamento congelado por memórias apagadas de um tempo distante repleto de afeto e carinho.
Enquanto Ele pressionava uma mão com a outra, após ter socado a parede a fim de tentar abir uma rachadura que deixasse sair toda a melancolia presa na casa que o afastava d'Ela, que estava sentada a seu lado no chão, puxava um botão de sua camisa com mãos trêmulas, quando, querendo arrancar a mágoa que impedia o amor que guardava em por Ele de se manifestar, acabou arrancando a peça de roupa.
- Não sou mais capaz de te amar, de viver aqui, mas tô perdida, porque também não sei não te amar, não consigo ficar longe, é como se você mantivesse todos os meus cacos de vidro da minha existência unidos… Mas o que quer que seja que você usa pra colar meus pedaços, tá me machucando. Ou talvez sejam meus próprios cacos de vidro que estão me cortando cada vez mais, abrindo minha pele, deixando qualquer coisa boa que sinto por você fugir. A gente chegou num ponto que o comodismo se enraizou entre nós e nos prende juntos, mas não dá pra arrancar porque já não dá pra diferenciar sangue de raiz.
- Talvez seja melhor deixar o vidro se quebrar inteiro e tentar remendar com mais calma. Olha pra mim, eu não queria que acabasse assim, com a gente numa dança entre raiva e choro, eu queria que não acabasse, na verdade, do fundo da minha existência, você é a pessoa que mais me entendeu, apoiou, amou... Só você conseguiu aguentar essa minha bagunça por tanto tempo, mas... Mas eu sinto que meu egoísmo foi o que mais nos distanciou, o que mais prejudicou nossa convivência desde sempre, vendo agora, percebo que o que fiz por você não chega nem perto de tudo o que você fez por mim.
Quando o silêncio começou a perturbá-los, lembravam, cada um em sua própria mente, da primeira vez que se encontraram, do chaveiro, do bilhete, das relíquias e memórias que guardavam em suas bolsas e carteiras e seus corações desde a noite em que se conheceram em outra cidade, em outra vida.

Lembravam pedaços do primeiro capítulo deste romance, a integridade dele, assim como a de suas mentes, havia se diluído nos litros de álcool ingeridos naquela noite. Primeira cena, estavam no fumódromo de um bar, cada um com seu grupo de amigos, então Ele procurou um lugar para se sentar quando sua cabeça começou a pesar demais. Conseguiu um espaço, entre uma goteira e algumas pessoas, e repousou a cabeça no próprio colo. A pressão baixa o fez companhia até que Ela percebeu a situação, deixando seus amigos, sem conhecê-Lo, perguntando se estava tudo bem. Ele só teve força para levantar uma mão e fazer um gesto de positivo. “Você tá sozinho? Quer alguma coisa?”, perguntou Ela. Recuperando-se aos poucos, o rapaz levantou a cabeça, sorriu e respondeu que estava bem e completou, ainda extrovertido por conta das bebidas: “Falei pra mim mesmo que devia parar de beber tanto assim e tentar ficar sóbrio em festas, mas, como é meu aniversário, achei que precisava de uma despedida do álcool...” “É seu aniversário? Parabéns!”, empolgada pela vodca, deu um  abraço, “vou te dar um presente, tenho um chocolate aqui, você gosta desse?”, tirou o doce da bolsa e, com a resposta afirmativa d'Ele, entregou ao rapaz, “Falando em despedida, hoje é a minha também, mas não do álcool, da cidade”. No meio da conversa, quando o desejo já era grande e recíproco, Ela o ajudou a se levantar para fumar, "Mas isso não não vai fazer tua pressão cair de novo?", "Talvez", mas não encontravam seus esqueiros. Ela deu alguns passos para pegar um emprestado de uma fumante, e, na volta, chutou alguma coisa, sem perceber, que foi na direção do rapaz. A moça tinha por costume soltar a fumaça com o queixo levantado para ver a noite absorver o gás carbônico, e, numa dessas, o rapaz rapidamente se abaixou para pegar o objeto que Ela havia chutado há pouco. Guardou no bolso a miniatura de Torre Eiffel e os dois continuaram conversando sobre tudo. Quando o relógio bateu duas da manhã, as pessoas começaram a se descolocar para o balcão do bar, pois havia começado open bar de vodca com energético. Terminaram seus cigarros e entraram para se enebriarem ainda mais. 
Não sabiam como foram parar da Liberdade à Consolação, os dois compartilhavam um momento de euforia - e uma garrafa de vinho, que ambos odiavam, mas era o que tinha de mais barato no posto de gasolina que encontraram no meio do caminho. Fizeram o trajeto caminhando, conversando, como se não fosse quatro da manhã e não houvesse possibilidade alguma de assalto ou coisa pior. Graças a D… Graças ao acaso, de não terem encontrado ninguém mal intencionado no percurso, nada aconteceu além de um afogamento: caminhavam de mãos dadas, como se tivessem intimidade estabelecida há anos, e procuravam por um hotel. Abraçavam-se a cada parada para atravessar a rua e se distraíam com calorosos e alcoolizados beijos. Subconscientemente, acreditavam, de maneiras diferentes que apenas o sexo amenizaria a paixão explosiva que emergia cada vez mais forte e devastadora. Enfim entraram num quarto e o que sentiram durante a noite toda - desde o "Você tá sozinho?" até o beijo de despedida na manhã seguinte - ecoou por tanto tempo quanto durou a paixão, o amor e a saudade.
Após se jogar nos braços d'Ela e antes de se entregar a Hipnos, pegou o chaveiro e jogou dentro da bolsa d'Ela, aberta e jogada no chão.
Acordou no meio da noite, na verdade, o sol já gritava lá fora, acendeu um cigarro e observou o corpo daquele que teria potencial para ser alguém em sua vida e pensou na despedida que deveria acontecer em seguida. Terminou o cigarro, alcançou sua bolsa, seu bloco de notas e uma caneta, "de todas as profissões do mundo, tinha que aparecer outro jornalista", riu sozinha e escreveu algo para o rapaz. Deitou-se novamente e cochilou por duas horas ou menos. Queria continuar ali, queria continuar com Ele, mas precisava sair.
Sob seu celular no criado-mudo, havia uma nota de vinte, outra de dez, e um pedaço de papel:
“Precisei partir.

O dinheiro é minha parte pra pagar o quarto.

Meu telefone: […]
Mande notícias.”

2015/10/05

Cabou (Não tenha dó)

Não lembro se estávamos em uma de nossas camas ouvindo a chuva ou em uma praça sob o pôr do sol, nem se estávamos bêbadas ou chapadas, nem se seu corpo estava nu, coberto pelo edredom azul claro, ou com pedaços de grama, ao lado do meu e nós acompanhadas do silêncio que não dizia - nem mesmo implicitamente - que havia algo errado, porque realmente não tínhamos do que reclamar em relação ao nosso relacionamento naquele dia específico. Ao menos essa era a impressão que eu tinha, e olha que eu tinha um sensor bastante preciso para identificar problemas entre nós. Na verdade, nosso porre durou tanto tempo, mais do que eu conseguia imaginar que era capaz de me manter ébria e viva, que já não sei se este específico episódio ocorreu de uma vez só, com introdução, desenvolvimento e conclusão (e referências bibliográficas), ou minha memória mantém apenas uma colagem das diversas vezes que conversamos sobre isto: o fim. O terceiro e último ato de nosso romance dramático com extensos períodos cômicos, leves e saudáveis, como já deixei a entender: não sei se começou sob o céu nublado da cidade ou o teto branco de um quarto, apenas mais uma das diversas incertezas que me assolam agora, depois do adeus, mas lembro que a trilha-sonora começou silenciosa, contemplativa, como o prelúdio de Tristan und Isolde, e seguiu em um crescendo, tornando-se cada vez mais ruidosa, como uma caixa de som estourada reproduzindo We’re No Here. Perdi o roteiro completo da cena, a primeira fala se perdeu no breu da memória, hoje resta apenas o enorme vazio que ela deixou, como se eu tivesse um braço fantasma, apenas a sensação de ainda ter algo que não existe mais. Quer dizer, ela ainda existe, mas não aqui. Não é que eu a queira de volta, mas ainda dói.
Um discurso que repeti tantas vezes com seu consentimento - ao menos, ela dizia que concordava, mas hoje entendo que talvez fosse apenas para não me irritar, conhecendo a facilidade para eu cismar com quem me contradizia -, consistia, resumidamente, em aceitação e inevitabilidade de um término. Acontece e não há nada que se possa fazer para evitar, apenas adiar. Talvez nós tivéssemos adiado despropositalmente, acomodadas pela calma porém venenosa rotina. De tanto que insisti nessa fala, talvez sua mente tenha se convencido, ou se deixado vencer pela exaustão, que o fim estaria ali, no próximo instante. Mas eu não esperava que fosse justamente quanto estávamos tranquilas.
Chega uma hora que cansa, chega uma hora que chega, a partir de um dia qualquer, quando menos se espera, toda e qualquer imperfeição, espera, ignore essa palavra inexistente, melhor dizendo… Todo e qualquer detalhe que incomodava mas era ignorado passa a ser algo repulsivo, e até mesmo o que mais lhe agravada na pessoa se transforma em ódio. A mordida no ombro quando dormíamos juntas, nós apertadas embaixo de uma pequena sombrinha - enquanto seus dedos subiam e desciam pelo meu braço, as discussões sobre qual o melhor livro da Gillian Flynn, o melhor episódio de Mad Men ou o melhor disco da Nina Simone - nunca chegávamos a um consenso em ambos temas -, ela me puxando para dançar quando eu não queria dançar, as unhas que ela roía para pegar no sono jogadas pelo chão dos quartos, todo o nosso universo particular de carinhos e esquisitices, eu aceitava tudo isso, ignorava a possibilidade que um desacordo sobre Artes, ou um desleixo higiênico, qualquer coisa, pudesse nos distanciar de nós mesmas. Eu acreditava que éramos maiores que isso tudo. Fomos gigantes até não sermos mais. Fomos intensas até não sermos mais. Fomos amantes...
Quando nosso roteiro enfim apontou para o desfecho definitivo, a raiva se apossou de mim, prejudicando minha memória, eu não queria aceitar que o que eu tanto previ desde o prólogo estava realmente acontecendo. Tentei, e continuo tentando, lembrar de todos os instantes precedentes ao “acho que está na hora de terminarmos”, nem me recordo quem disse isso, mas essas palavras foram ditas e permitiram que toda uma onda de frio e vazio invadisse meu litoral até então ensolarado e repleto de vida. Se eu ainda conseguisse descrever em detalhes nosso último dia juntas, escreveria algo muito mais bonito, visceral, dilacerante, sensível, qualquer coisa diferente desse relato incompleto de uma memória destroçada, arruinada, abandonada nos escombros de uma despedida inevitável. Assim como nossa história poderia ter ido muito além do dia de sua morte - do amor, não da mulher que o despertou, ela continua viva, não sei onde nem com quem-, ser algo completamente diferente; esse conto teria potencial para continuar por muitas páginas, tornar-se uma novela, um romance, nossa Comédia Humana, mas, como não sei cuidar de amores nem de rascunhos, apenas os abandono, por mais que pudessem ser algo maior que meu pessimismo seja capaz de imaginar. Tanto na escrita quanto na vida, que são quase a mesma coisa para mim, eu me perco de uma maneira tão confusa e definitiva que fica difícil convencer alguém a insistir, persistir, retornar, o que seja, em mim. Sinto saudade daquela que se deitou ao meu lado para concluirmos que deveríamos ter um fim naquele exato momento, e deixo ela, a saudade, me abraçar, me corroer, me matar pouco a pouco até que eu renasça em outro amor e deixar o ciclo fluir novamente.

2015/09/28

Lonely People XIV


Com as visitas frequentes ao restaurante do outro lado da rua, aprendeu em conversas enquanto esperava pastéis, que as duas pessoas mais velhas que trabalhavam no balcão eram proprietárias do lugar e pais da moça bonita. Porém, por ser péssimo em lembrar nomes, demorava para lembrar os nomes dos membros da família.
Numa sexta-feira de expediente mais leve, tirando quando ocorre alguma tragédia, que não escolhe data para acontecer, fez uma pausa e atravessou para comprar lanche para ele e seus colegas. Entrou no restaurante e se assustou ao identificar a música que tocava na rádio de sempre do lugar. A versão a ser reproduzida não parecia pertencer ao perfil daquele público radiofônico. “Mas se eu já te perdi, como vou me perder? / Se eu me perdi, quando perdi você...”, cantarolou baixinho, lembrando imediatamente da psicóloga, enquanto esperava alguém lhe atender. Saiu da cozinha a dona, sempre muito receptiva:
- Oi, lindo, cê tá bem?
- Tudo certo, como andam as coisas por aqui?
- Tudo meio parado hoje, né? Parece que o povo tá desanimado e esqueceu que hoje é sexta.
- Eita, então agora cês vão trabalhar... - Disse, rindo, e fez o pedido.
- Cinco pastéis de queijo, dois de carne e dois de pizza, Marli, pra viagem. - Gritou a mãe de Ágata cujo nome Jean não lembrava.
O rapaz quis pagar a conta imediatamente e a dona puxou assunto:
- Vi um moço parecido com você esses dias ali na P. XIX d. D.
- Que dia? Sábado?
- Isso, era quase meio dia.
- Era eu mesmo! Como é que não te vi?
- Eu tava na R. P. G., quase na esquina, com a minha filha.
- A… - Pausa para lembrar o nome da moça - Esqueci o nome dela… Agnes? Sei que começa com “A”... Não, não é Agnes, espera, tem a ver com pedra preciosa.
- Ah, ela é preciosa mesmo, mas é Ágata. Agnes é pedra preciosa?
O rapaz se questionou de onde tirou a relação entre Agnes e pedras preciosas. Perguntou:
- Por onde ela anda? Faz tempo que não vejo ela por aqui.
- Ela tá internada…
- O quê? - Perguntou sem deixar a mulher terminar.
-... Em casa estudando. Fim de semestre, menino, ela fica louca de estudar.
- Ah é? O que ela faz?
- Engenharia química.
- Cinco pastéis de queijo, dois de carne e dois de pizza pra viagem! - interrompeu Marli, saindo da cozinha.

***

2015/09/21

Indigesto

Underneath the skin there's a human
Buried deep within there's a human
And despite everything I'm still human
But I think I'm dying here

Daughter, Human


Antes de machucar e abandonar (não exatamente nessa ordem, dependo do caso) quem estava a seu lado, a ponto de não conseguir - nem ao menos cogitar - pedir para voltar, pedir perdão, já tinha machucado e abandonado a si mesmo há tempos. Quando percebeu o desmoronamento, já estava com um pé preso numa coluna de metal pesado reforçada com desprezo e remorso, e conseguiu apenas se deixar ser engolido pela destruição
Apesar de destroçado, mantém firme seu orgulho, talvez o pouco de força que lhe reste é aplicada nisto, mostra que (ainda) é forte, que não sente falta, que não precisa de companhia, e talvez até convença outrem ainda com pouca intimidade que é autossuficiente e consegue se manter em pé e lúcido sozinho. No fundo de uma caverna que só ele conhece a entrada e permitiu até hoje o acesso de um número mínimo de pessoas, sabe-se que todo o esquema de um arranha-céu fundado autonomia e segurança é um holograma  para uma cabana de cobertores coberta por aflição e carência, vizinha de uma represa de lágrimas.
A cidade, a comida, a solidão, a companhia, o quarto, as ruas, os cigarros, o álcool lhe fazem mal, mas ainda assim insiste. Por mais que odeie tudo isso, no sentido de não suportar mais, sabe que sem isso tudo não é. Não existe. De qualquer jeito, se está bem em harmonia ou mal em melancolia, não existe - da maneira que gostaria de existir. Eis um paradoxo, não está satisfeito com o arranjo de sua existência, contudo desconhece uma forma, ou um caminho para tal, que poderia deixá-lo completo.
Não consegue engolir o que é, vomita, tenta novamente, os pedaços de sua essência que antes deslizavam suavemente pela garganta, como a mão de alguém que afaga o rosto do primeiro amor, passaram a agarrar a frágil carne e machucar todo e qualquer pedaço de sua mente, como os últimos dias de um romance arruinado.
Não se deve perder tempo para julgar a quem se atribui a culpa pelo desencadeamento da avalanche de estragos, pois várias pessoas seriam responsabilizadas por algo que fizeram, algumas até sem intenção de dolo. Memórias infelizes foram alocadas em algum canto do interior do ser em questão e incharam a ponto de causar uma explosão e muitas cicatrizes. O acumulador de mágoas desaprendeu a administrá-las, e, durante um porre possivelmente, deixou as gaiolas abertas dentro de seu peito e, com mãos trêmulas, sem controle, conseguiu apenas conviver com todas elas, deixando que o arranhassem e falassem por ele. Não culpava o passado nem o que as pessoas lhe fizeram ou disseram, a culpa era do conjunto que possibilitou tudo desandar de forma tão particular e desastrosa.
Pensava em portar um artigo de trinta e quatro páginas sobre como sua cabeça funcionava e consequentemente funcionavam seus comportamentos sociais ao se apresentar a alguém, fosse amizade ou amor em potencial, para que não se magoassem tão facilmente - quanto ele se magoava, às vezes, por nada - e entendessem que, se quiserem tal companhia, estariam entrando numa tempestade natural: descontrole e desespero.
Não espera compaixão de ninguém, nem ao menos que insistam em permanecer a seu lado por dó de uma essência tão desgraçada, deseja que fiquem porque sentem interesse por alguma de suas qualidades... Sim, tem algumas e acredita que são grandes… Não quer forçar ninguém a ficar e pensa em rasgar todo histórico vivido com a outra pessoa, caso julgar o distanciamento melhor que a dor de estar ao lado de alguém cada vez mais perdido. Não sabe se ainda é capaz de conviver em paz com quer que seja sem inesperadamente entrar em crise e desaparecer, mesmo que seja um desaparecimento apenas interno e não seja mais possível enxergar seu núcleo.
Por fim, chegou a um lugar em seu deserto onde não é capaz de fazer uma mensagem atingir qualquer resposta. A subliminaridade de seus gestos não tem mais o mesmo alcance, se é que tiveram alguma força anteriormente. A redoma de isolamento criada por ele mesmo torna delicado qualquer movimento de aproximação, que arrisca não só o distanciamento a se arruinar, como também todo o resto.

2015/09/14

For disgraceful lovers or What hope means? (Pity's jazz)

Hoping and waiting
for you to break my heart.

There will be one sad and cold day

that i will lay in the couch

totally damaged inside,
because of some hurtful true that
you
throw into my face,
i will be shedding not just tears
(so if I can do it, because now i can't)
but also all good things that i could probably
feel starting by the day you definitely enter in my life.
One of the reasons of my drowning will be
(I am pretty sure about the others, also you'll know)
the heavy burden of the truths about my very own afflicted being that you spell over my fragile and wounded flesh.
You will be right, i will be not able to disagree, that i'm addicted to melancholy and pessimistic thoughts about love, life and future, that all of this have the potential to destroy any expectations of a decent and not so tragic existence for us or even for me - in case you not care about me and if i'm away of your life.

I really don't know what i'm talking about, i'm just filling the silence with some words that could probably really mean something to you - or me or whoever wants to understand what this fucked up mind represents.

Hoping and waiting for you
to break my heart
after the hard speech about how i'm destroying everything near our galaxy.
My black hole is consuming our oxygen and all that we have built yesterday and before, this need to stop!, you'll say.
Hoping and waiting for
you
to watch me sleep,
desireing to put a knife in my throath and give a finale to my life,
but you'll be too terrified to do such a great act for the humanity,
because you'll know at some point before our colapse that i'm your yang for your yin,
because you'll need me as much as i'll need you.
Even tough we are
in a sacred way to think
too bad for each other.

Hoping and waiting for you to enter in the room
where i lay crying
and wake me up
saying that you will not sorry for all those words you had thrown at my face,
but you'll say that you'll stay with me on condition that i agree to have my heart broken once in a while because we both know that this is life: broken, disgraceful, tearful and all the things that will make we insist on us.

I hope to meet you
as soon as i excpect and wait to you to feel the same,
but, as we all know,
there is not a way to predict exactly when this colision will happen.
We only can continue to collide in other lovers and
let them wreck us 
and just so find ourselves in some 
deep blue sea
and maybe
(just maybe)
find some strength to emerge 
together
to some warm and hopeful beach
with some love and hapinnes etc
for us to enjoy
until
the storm come and
bring us down over and over again.

2015/09/07

Um (en)cont(r)o tamandareense (Bad timing)

Chegariam da escola. Almoçariam o de sempre porém adorado prato que suas respectivas mães preparavam. Assistiriam a seus programas de televisão favoritos antes da sagrada sesta vespertina. Cochilariam por meia ou uma hora até que primas(os) e/ou amigas(os) chamariam para brincar. “Você não vai sair sem escovar os dentes”, diriam assim ou algo parecido suas mães. “E ‘ai’ se voltar depois das seis”, alertariam. Pegariam suas respectivas bicicletas. Começariam a rodar pelos seus respectivos bairros até que alguém (do grupo dele) sugeriria um passeio até o 21 de abril, sem antes passar em casa pedir sete reais para mãe, pai, tio, tia, vó, vô, para pagar a entrada no clube; e descer até a Bapka (do grupo dela), pegando “aquela rua da Kabel” para pegar atalho pelo carreirinho daquele bairro estranho. Apostariam corrida até seus destinos, sabendo os locais em que adversários tinham como pontos fracos, para tirar vantagem disso, pedalando com mais velocidade nesses locais. Ao invés de seguir diretamente até a avenida principal do bairro, ela pegaria um atalho até a Wadislau. Ele não subiria pelo Contorno Norte, cheio de veículos em alta velocidade, como fariam os demais competidores; ao invés disso, daria tudo de si na subida da Nicolau para alcançar a Wadislau, e, ao passar sobre o viaduto, veria como estariam os demais ciclistas. Na descida da igreja São João Batista, contaria com o apoio da gravidade para ir com mais rapidez; empolgada, com vento lhe afagando o rosto, feliz, não perceberia o novo buraco na rua a cairia desgraçadamente, ficando com a cara estourada e pernas e pés também machucados presos a bicicleta. Ignorando a larga vantagem que tinha perante os demais, pedalaria incansavelmente na reta antes da subida da igreja até que presenciaria um acidente de bicicleta, veria um Marrocos vindo na direção da menina e um Lamenha no sentido oposto. Tentaria se levantar sozinha, em vão, com o queixo aberto jorrando muito sangue, e se arrastaria até o acostamento - naquela época ali ainda não havia calçada decente, só delgados trechos de terras nas laterais da avenida - com a ajuda de um estranho. Ambas competições seriam adiadas a fim de amparar a acidentada. Alguém da turma dela voltaria voando ao Buenos Aires para chamar algum adulto que saberia o que fazer. Pouco menos de dez minutos depois, a mãe de nossa protagonista chegaria de carro, pensando o pior, e daria um sermão na filha assim que visse que ela estava viva - apesar de coberta em sangue: “Quantas vezes já falei pra você não ir muito longe de casa com essa bicicleta?”. O garoto assumiria o papel de testemunha da defesa, dizendo que viu tudo, e afirmaria que não foi culpa dela, mas sim do enorme buraco, “aquele ali”, apontaria o culpado. A adulta ofereceria uma recompensa por sua benfeitoria, mas o menino negaria dinheiro, desejaria apenas que a mulher permitisse que, se a menina desejasse, eles pudessem brincar novamente, quando desvendassem uma maneira de se encontrarem sem que precisassem passar a pé ou pedalando pela avenida de ônibus que não exitariam em atingir alta velocidade não importasse a presença de crianças na calçada, melhor diria, no estreito acostamento. A menina também demonstraria interesse na possibilidade de um reencontro, independentemente se ele dissesse algo antes, e diria o bairro onde morava. “Minha tia e minhas primas moram lá! Você conhece a Andy?”, perguntaria ele. “Sim, ela é da minha sala”, contaria a garota, ainda com o queixo encharcado de vermelho. “Você é sobrinho da Neu? Lá do Monterrey?”, questionaria a mulher, e diria na sequência: “Muito obrigado, menino, mas, vamos, filha, a gente precisa ir até o postinho cuidar do teu queixo”. Poucas semanas depois, na segunda semana de maio, ele iria ao aniversário de sua prima Ari, irmã de Andy, e, assim que pedisse “benção” a todas as tias e a todos os tios presentes, esconderia alguns doces nos seis bolsos de sua bermuda e sairia para brincar na rua com a criançada. Ainda com curativo e pontos no queixo, sairia para ver o resto de sua turma andar de bicicleta na rua, não se recuperaria tão cedo do trauma da queda, e repousaria sob a sombra da grande árvore em frente a casa de sua colega de turma. Mesmo de longe, desejariam as duas crianças a troca de olhares e sorrisos. Seriam muito novos para cogitar a existência de “amor” ou o que quer que motiva casais dos filmes que assistiam nas tardes chuvosas presos em suas respectivas casas a lutarem para ficar juntos, não entenderiam tão cedo, contudo, gostariam de manter presença, por mais que a convivência até aquele domingo de maio se resumiria apenas a trinta minutos, na margem de uma via movimentada, após um acidente de bicicleta. Desconhecendo a existência ou o significado da palavra, sentiriam empatia um pelo outro. No aniversário, trocariam sorrisos receptivos quando seus olhares se cruzassem. Cansado de correr, sentaria-se ao lado da menina e perguntaria se ela gostaria de alguns doces da festa. Ela seguiria o estranho costume que tinha e teria por mais alguns anos de não comer em frente a estranhos e gentilmente rejeitaria brigadeiros e dois amores. Ficariam ali, sentados lado a lado, acompanhados na maior parte do tempo pelo silêncio na sombra d'árvore, enquanto o resto das crianças continuava a pedalar, correr, pular, chutar etc. Compartilhariam suas desventuras escolares e ela perguntaria sobre o motivo de ele estudar tão longe, poderiam estudar juntos, ela argumentaria, e, mesmo adorando a possibilidade, ele responderia que sua mãe preferia assim. Falando em progenitoras, a dela chegaria para o aniversário, pedindo que a filha a acompanhasse para falar com Neu e suas filhas. O menino as acompanharia e apresentaria sua mãe. As adultas se cumprimentariam e a tia da aniversariante descobriria que seu filho ajudou uma desconhecida a sair do meio da rua após uma queda de bicicleta. As duas mulheres conversariam até ser anunciado o momento de cantar parabéns. A amizade entre as duas adultas surgiria, beneficiando assim o contato entre as duas crianças. Chegaria a adolescência, acompanhada pelos dramas efemeramente eternos dessa época, encontrariam o conforto, a fuga, o afeto, o carinho, a amizade, o abraço, o beijo, o amor, a dúvida, outros abraços, a frustração, a saudade, a confirmação… Cresceriam e se mudariam para a capital, juntos, seriam conhecidos como um daqueles casais exemplares que se conhecem na infância e seguem juntos por muito tempo ou, talvez, até o fim.


Porém, um evento ou uma série de eventos cancelou o encontro, deixando que tomassem outros tombos e encontrassem outras dores, outros amores. Tudo o que poderiam viver, tudo o que poderiam sentir, se a colisão ocorresse naquela específica tarde no meio de suas infâncias, seria muito diferente se o acaso os unisse seis ou 533 anos depois. Talvez não se encontrariam em momento algum da vida, o que acontece com muitos possíveis romances, mas haveria outra pessoa para um amor tão encantador quanto aquele que surgiria numa tarde ensolarada e ensanguentada de abril na Wadislau.

2015/08/31

Sem querer

- Só temos esse medicamento na loja da Sete de Setembro.
Pediu que a atendente ligasse para lá, reservando os remédios, que buscaria imediatamente. Saiu da farmácia na Cândido Lopes e desceu até o calçadão da XV. Teimosa, além de nervosa por ainda não ter conseguido comprar seus remédios para inibir seu desejo de esmurrar uma parede até que seus dedos ficassem estragados demais para qualquer movimento indolor, H. não quis tirar o casaco azul que vestia desde quando saiu de casa, às sete da manhã, quando ainda havia um resquício de inverno, mesmo depois das quatro da tarde, a cidade estava quente demais para uma tarde de agosto.
Ao contrário do que fazia frequentemente, seguir pela Cândido Lopes até a Osório, F. decidiu descer a Ébano Pereira, porque, em uma época de crises depressivas constantes, queria ver gente, fugir de si mesmo observando outras pessoas, ver a vida fluir, enquanto ele sentia seu existir como uma paralelepípedo no meio-fio da João Gualberto em dia chuvoso.
O suor percorria por entre seus dedos, rasgava sua pele e fazia H. silenciosamente xingar o mundo, julgando qualquer ser em um raio de 200 km responsável por sua abstinência, por mais que a culpa fosse exclusivamente dela mesma, por ter decidido sair numa manhã de segunda-feira e só voltar para casa três dias depois, com a roupa suja, a cabeça cheia de ressaca e a bolsa sem a caixa de comprimidos. Durante o tempo que passou bebendo, o álcool não a permitia lembrar da medicação rigorosa que devia seguir. Lembrou de sua responsabilidade apenas na quinta-feira, pouco antes de sair de casa. Sabia que se ficasse sã e sem medicação por um dia não conseguiria prever seus movimentos quando o primeiro ataque brutal de ansiedade surgisse. Para ajudar, A Paixão Segundo G. H. pesava mais em sua mente do que em sua bolsa. Inquieta demais, ignorava as sombras desorientadas que cruzavam seu caminho, apenas ia. Assim que H. passou pelo relógio da XV, xingando mentalmente este dispositivo criado para lembrar todo mundo o quão inadiável é a passagem do tempo, assim como são inevitáveis as consequências do avanço dos ponteiro - cansaço, desgraça, tristeza etc. Cruzou a Voluntários da Pátria, arregaçou as mangas supostamente não-dobráveis do casaco e amarrou seu longo cabelo num rabo de cavalo, mas sabia que nada daquilo ajudaria a reduzir a ânsia em seu peito, muito menos o calor em todo seu corpo, sentia-se como asfalto, rebatendo visíveis raios solares. Pensou em correr até o chafariz da Osório e se jogar, dar uma de Virginia Woolf, sem metade da coragem que a inglesa teve, mas, antes mesmo de pensar em quão ofensiva era a comparação, um barulho interrompeu seu pensamento.
F. cogitou parar na livraria para matar tempo, refletir mais sobre o que lhe disseram noite passada, “você se faz de complicado, faz-se de frio para tentar se mostrar autossuficiente, independente, um complexo lone wolf, dificultando a aproximação de qualquer pessoa, mas, na verdade, é tão simples e carente quanto qualquer outra pessoa”, mas seu corpo gritou que não, tanto para afirmação quanto para a parada na loja de livros, que, na verdade, queria, melhor dizendo, precisava se deitar, depois de tirar todo o suor que arranhava sua pele com um banho gelado. A camisa azul de tecido áspero, pressionada pela alça da bolsa, que descia do ombro direito a cintura, parecia lixar suas costas. Poucos metros a sua frente, notou uma mulher amarrando seu longo e, se havia alguém passando mais calor que ele naquela praça, era ela e seus longos cabelos, reluzindo o sol infernal, invernal. Ao vê-la, passou a sentir mais calor, então pegou na bolsa sua garrafa de água, que, feita de plástico mole, emitiu um barulho escandaloso. Trocaram H. e F. olhares ligeiros, com uma vontade recíproca de olhar mais um pouco, de novo e de novo, mas não queriam assustar. Seguiram seus caminhos - que era o mesmo.
Caminhavam na mesma velocidade, cruzando a praça e chegando a Comendador, ela seguiu até a Brigadeiro Franco, e ele entrou na Visconde de Nácar.
H. entrou numa loja de discos, distraída pela lembrança do cara que parecia segui-la, mas saiu apressada ao lembrar do medicamento a sua espera. No cruzamento com a Doutor Pedrosa, aproveitou o grande movimento de carros para descalçar as sapatilhas para um breve momento de alívio. Por alguns segundos, sentiu-se livre como na última página de Crime e Castigo, apesar de saber que a dor continuaria - tanto para ela, ali com os pés machucados, quanto para Raskólnikov...

Tentando lembrar se conhecia a moça do casaco azul de algum lugar, “talvez dos meus sonhos”, F. distraiu-se novamente com o fluir da cidade, quando foi atingido novamente pela conversa que teve no dia anterior, sobre como era um terrível amigo, um intragável amante, por desejar ser assim com seu masoquismo emocional insolúvel. Repetia mentalmente em forma de sentença judicial tudo o que sua amiga lhe dissera. Tinha pleno conhecimento sobre a forma de isolamento que adotara nos últimos meses, mas, mesmo se quisesse mudar, estava fundo demais para emergir sozinho.
Ao passar pelo Mark Renton pintado na entrada principal da Oswaldo Cruz, H. disse ao personagem que “escolheria vida” enquanto seus remédios surtissem efeito. Se a praça não estivesse parcialmente cercada por tapumes desde fevereiro (ou março, não tinha certeza), H. veria, subindo a Sete, o rapaz que há pouco a seguira pela Osório - ou seria ela a stalker? -, mas, não, não viu. Parou na esquina e logo percebeu alguém a seu lado. Era F. Olharam-se ao mesmo tempo, sorrindo, desconcertados pelo novo encontro, e, como se ensaiado, disseram:"

2015/08/24

Quatro atos sobre perder o chão ou Um movimento interior

Quarta-feira. Não estava atrasado, mas aplicou em suas persas força suficiente para subir as escadas correndo, saltando de dois em dois degraus, costume adquirido aos 14 anos, quando percorria quatro andares de um prédio entregando contra-cheques. Reduziu a velocidade ao avistar o balcão e seguiu andando e diminuiu ainda mais o passo ao ver mais alguém além de sua colega no posto de trabalho, na área exclusiva para funcionários. Aproximou-se, deu bom dia às duas e deixou o olhar sobre a estranha por tempo mais que aceitável quando se trata de cumprimentar pessoas desconhecidas. Sentiu-se desconfortável com a situação e puxou conversa com as duas, sem ainda saber o nome da estranha nem porquê estava ali. Ignorava a existência da colega enquanto ela falava sobre o ritmo de trabalho até então, pois não queria parar de olhar para a outra moça, contudo desviava o rosto toda vez que seus olhos se encontravam. Quando ela o flagrava, apenas sorria timidamente, sem mostrar os dentes. Tinham a mesma cor de olhos, porém, no fundo, ela carregava algo distinto, que despertava nele a vontade de se afundar. Para ajudar, a colega não os apresentou, apenas informou sobre as devidas instruções a serem seguidas e os recados a serem dados para convidados durante o turno do moço, que, mesmo prestando atenção na colega, fazia questão de levar disfarçadamente seus olhos ao rosto da forasteira. Com sorrisos embaraçados, despediram-se e as duas mulheres partiram, deixando a morena de olhar profundo o grande vestígio de sua beleza, correndo pelo lobby do hotel, derrubando o rapaz sempre que tentava se aproximar para sentir o aroma daqueles longos cabelos ou a luz daqueles olhos magnéticos.

Sexta-feira. Não havia movimento, consequentemente, nada de trabalho. Com certo laço de amizade criado, o trio de funcionários do hotel e a morena de olhos profundos, que não trabalhava ali, matavam tempo, jogados sobre os sofás do lobby discutindo sobre qualquer coisa, passeando pela internet, assistindo a tutoriais de origami ou a vídeos da Inês Brasil, ou na janela observando transeuntes, procurando por pessoas que estivessem carregando presentes de dia dos namorados, tiravam sarro de quem passasse com buquês de flores, caixas de bombons etc. Numa óbvia conversa sobre Cinema, o rapaz pensou em falar de Eu Odeio O Dia Dos Namorados, mas preferiu manter o diálogo cinematográfico em um nível mais para a vertente artística-autoral. Da primeira vez que se viram, tirou o encanto pela beleza dela; na terceira, pela companhia. Ele pensou em dizer várias coisas, principalmente na tentativa de fazer a até dois dias atrás desconhecida percebê-lo como não apenas um colega de trabalho de suas amigas. As always, ele queria mais. Mais que olhares sinceros, mais que diálogo... 

Na primeira conversa que tiveram longe do hotel, ainda sem intimidade suficiente para conversas mais abertas, começaram a conversar sobre algo relacionado ao trabalho, e, pouco tempo depois, no meio de um corredor apertado do bar, atrapalhados pelo barulho da música, carregando cada um uma caneca de chope já quente, falavam sobre dramas românticos. Quando ela começou a discorrer sozinha sobre a utilização de técnicas classicamente bressonianas por alguns cineastas e como estes artifícios poderiam prejudicar uma obra se aplicados em demasia, foi aí que ele se perdeu de vez. A morena de olhos profundos falava, empolgada, como se precisasse se aprofundar nisso tudo, na Arte, para sobreviver. Dava uma aula sobre Bresson a um ser que falaciosamente disse  conhecer os trabalhos do francês. Ele não sabia se estava mais encantado por ela ou ainda pelo Cinema. Estendeu a conversa ao máximo, citando seus romances desgraçados favoritos e todo seu rol de assuntos clichês sobre filmes etc, quando ela o convidou para fumar. Sob o céu de junho e a névoa fria, teriam a chance de conversar com mais tranquilidade, mas, para o azar do rapaz, um grupo se aproximou dos dois fumantes para conversar sobre… Sobre o que pessoas bêbadas conversam? Então o grupo dela chegou, assim como o dele, enfim, dando às esperanças do moço um fim. Perderam-se sem dar adeus.

Quinta-feira. Ela já não aparecia com tanta frequência ao hotel quanto fazia na semana anterior. Talvez por ter se cansado da lentidão do rapaz. Ele ainda pensava nela. Outro bar, outra festa. Conheciam a possibilidade de se encontrarem novamente, mas não se renderam a depender do acaso, e seguiam a noite conforme a música fluía e o álcool corria por seus corpos. Demoraram a se encontrar, era por volta das duas - nem mesmo quem vos narra a história saberia apurar o horário exato por também ter bebido muito, tanto que esqueceu da maior parte do que se passou na noite em questão - quando, perdeu-se das amigas e foi ao fumódromo sozinho, respirar ar fresco e tabaco. Acompanhava a trilha de fumaça vomitada por seu cigarro, que, subindo ao céu, unia-se ao que outras chaminés liberavam, e formavam um corpo celeste leitoso, um oceano cinzento, quando ouviu o barulho da porta do bar e olhou. Ela, vindo de dentro do bar, já com um cigarro na boca, procurava em seus bolsos por esqueiro ou fósforos, até que viu ele e foi em sua direção, disparando, de longe, um efusivo e alcoolizado sorriso, maior do que os que o atingira anteriormente. Cumprimentaram-se, com troca de afagos ligeiros nos ombros e beijos no rosto, e conversaram rapidamente sobre a festa. Foi então que o rapaz perdeu o chão: alguém se aproxima da moça, dá-lhe um beliscão na cintura, ela retribui com um “já sentiu saudades, né?”, ela vira as costas e beija quem lhe beliscou e vai embora acompanhada, sem dar adeus. Poderia ser apenas um caso da noite, o que ainda daria alguma chance ao rapaz no restante da noite - ou no restante da vida; um relacionamento de longa data, exterminando no rapaz qualquer encanto; ou um amigo, apenas como brincadeira. Ele não sabe. A dúvida resta e lembrança do profundo par de olhos castanhos ecoa, enquanto se afunda em mais cigarros, destilados e corpos.

2015/08/17

Persona

Não amo suas palavras, emoções ou curvas, digo, não apenas isso, mas amo profundamente o que se cria entre o seu verdadeiro eu e o que enxergo de você. Amo o ideal e isso me faz amar - ainda mais - o real. Insisto, apesar disso, teimosamente, em ver o que idealizo que seja. Não amo tal filme, série ou livro por si só, amo por me fazer lembrar de você. Infelizmente, não consigo viver somente de minhas vontades idealizadas, nem mesmo daquelas que tomaram forma humana, preciso do colisão de rostos cansados, do afago das mãos machucada e tudo mais que possa acontecer entre nós. Você me guia, direciona meu desejo, enquanto creio que sentes o mesmo por mim. O amor talvez tenha causado em você o mesmo que em mim, criou na sua cabeça o que esperava que eu fosse, e não o que eu realmente era, te impede de ver a verdadeira desgraça que sou. Como sempre, chegamos a um fim. “Um” fim, porque vive(re)mos vários. Ainda que soltemos gritos mudos para nós mesmos, no silêncio de nossos quartos, “chegamos ao desfecho deste romance”, vamos nos reencontrar, vamos colidir. Cansei desse nosso drama tanto quanto cansei de tentar te encontrar em livros, séries, ruas ou filmes, mentira, não consigo me desamarrar de nós e correr para longe (de nós) até chegar a algum lugar onde tudo seja mais simples. Mas, você sabe, não consigo simplesmente partir. Quantas vezes voltei? Insisto. Repito. Vou e volto.

2015/08/10

Oceanos

Lágrimas leves desciam por seus rostos, não doíam, não era sofridas, pareciam sair par afagar a face de quem sentia falta das mãos que costumavam lhe dar carinho. Rios quentes desciam, porém não substituíam a mão desejada. Distantes, lembravam que havia um motivo para chorar de saudade - ou alegria -, contudo, às vezes, deixavam-se ser inundados por uma onda de carência.
Peças de roupas abandonadas serviam para secar lágrimas e sufocar a falta que a pessoa a quem realmente pertencia fazia.
Odiavam juntos o fato de convergirem tanto em direção ao lago perdido da melancolia. Tudo lhes era triste, até mesmo o amor, droga da qual não queriam jamais se distanciar, mesmo que fosse com parceiros diferentes.
Distância, havia muita entre eles. Felizmente, apenas a física. Infelizmente, era justamente a longinquidade entre estados que os fodia no seco sem beijo no pescoço nem sussurros ofegantes intraduzíveis para idiomas comuns que significavam tesão e coisas parecidas.
Não havia mar real entre eles, apenas uma serra, duas províncias inteiras, muitos quilômetros e muita saudade. O mar interno de cada um queria logo derrubar o estreito, engolir as penínsulas, invadir cidades, para dar vida a um novo oceano repleto de amor, melancolia, gritos, sussurros e o que mais pudesse emergir diretamente das profundezas de suas existências. 
O tempo, sempre cruel, era o que precisavam, contudo a ansiedade, passando entre eles por uma instável tubulação, era o petróleo que poderia exterminar qualquer possibilidade de vida neste oceano.