2016/03/30

Se dez fosse zero

E se não tivesse perdido o ônibus de dez e meia. Aquela criança teria sua infância adiada como aconteceu ao ficar no terminal Cachoeira esperando o Giannini de 11 e meia? E se… Dez vezes, e se… Dez vezes vezes 365 mais anos bissextos.
Não há como saber, mesmo que se acredite em universos paralelos ou qualquer outra teoria que possibilite a existência de uma realidade em que ninguém perdia alguém ainda na infância.
Tentar justificar que tudo o que aconteceu (ou, pelo menos, tudo de ruim) foi diretamente consequência da fatídica quinta-feira, não no exato mesmo dia da semana em que Kevin K. fez o que fez, causando todo o horror na vida de Eva, pode ainda imperar seu ser, guiar suas rotas, mesmo que implicitamente. Deixava-se, talvez, se persuadir por um manipulador invisível, não se referindo a Deus ou qualquer ser que algum dia viveu em sua mente, que desenhava nas paredes de plano de fundo de todas as cenas de sua vida conseguinte o grande ato palavras que traziam de volta a melancolia e as lágrimas derramadas nos últimos dias de março de 2006.
Todas as alternativas, tanto de “se tivesse acontecido” quanto de “se não tivesse acontecido”, corriam em um circuito dentro de sua mente em alta velocidade, às vezes colidindo com qualquer pensamento ou vontade que não tenha vínculo algum com o passado.
Um texto, qualquer texto, seja de uma página ou 49 mil páginas, é apenas um pequeno fragmento no vórtice, incomparável a quantia de tempo necessária para superar, corrigindo, “superar” a dor da ausência e a ainda mais insuperável distância percorrida para chegar ao cume da montanha de amor e dependência.
Tantos anos depois, a memória encontra-se fragmentada, tanto quanto qualquer relato da história completa, e a voz não é mesma, o rosto cada vez mais apagado. Tudo some. Nada se completa.
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2016/03/25

Leite integral

Qualquer ato consciente segue o desejo subconsciente de autopunição por seja lá qual for o delito cometido.
Mais uma vez, estão cheios o copo e a certeza de que a cada gole seu estômago estará mais próximo de se estragar inteiramente. A cada dose no balcão, um passo a mais perto da beira do precipício que é perder a consciência e deixar que o impulso trate de apagar qualquer memória e toda a moral, se é que a sua (in)sanidade algum dia permitira que isso corresse por seu sangue. Cada batida é um soco na própria barriga que faz escorrer da garganta palavras e mais palavras de autodepreciação e insignificância.
O nojo de si mesmo não é aparente, mas tem ânsia de vômito quando revira a caixa do passado ou a de pensamentos. Segue fazendo o que faz mesmo não querendo mais, mesmo que agora não seja tão prazeroso quanto antes, machucando-se com isso, sabendo que faz mal a si e - ocasionalmente - a alguém mais.
Consegue se manter por algum tempo longe de tudo (ou quase tudo) que lhe é nocivo, mas manter-se em equilíbrio não é seu forte. Sua maior qualidade é ter fraquezas e se render a elas quando lhe é conveniente, quando quer fugir, por mais que saiba que não consegue fugir delas quando as mesmas não são outros seres, mas parasitas em seu organismo, a dor começa a escorrer de sua boca, seus olhos e suas mãos. Deixa-se derramar, vaza a liquidez de seus pecados, até que restem somente os entulhos de sua existência, permanentes. O aparentemente alto e resistente edifício de sua personalidade não passa de casebre insustentável a qualquer batida na porta.
Não suporta mais as metáforas, as analogias, as besteiras que cria para definir a si mesmo e explicar como sua mente vê, absorve e expele/repele tudo. Não consegue se expressar. Detesta ser o iceberg, que: 1. É muito além do que se percebe em sua superfície e 2. Pode causar sérios danos se houver aproximação desatenta.

2016/03/05

Verde, laranja, vermelho, verde, amarelo...

O cansaço deixa que o vento empurre seus corpos pela cidade, cada um em uma rota diferente. A única vontade convincente que sentem, cada um em sua própria solidão, é deixar o fardo de suas existências desabar sobre um colchão e respirar - não mais como antes, inspiração e expiração sincronizada juntos. Em tempos idos, eram algo inominável, mas eram alguma coisa, porque queriam tentar ser alguma coisa, apenas algo que não doesse tanto no mesmo cômodo quanto em países de continentes diferentes separados por um oceano.
Suas vidas divergiram para longe um do outro, apesar de frequentarem as mesmas vias da mesma cidade - ou de outra, ocasionalmente. O acaso entendia que não devia brincar com eles e jogá-los na mesma rua, no mesmo horário, porque, mesmo que não houvesse mensagem subliminar alguma enraizada na coincidência de transitarem pelo mesmo lugar na mesma hora, dariam um jeito de criar duas versões diferentes para o que Deus Destino tentava dizer (algumas vezes, nada). “Not now, maybe later”, rezou ele, “I don’t want to belong, to you, to anyone”, rogou ela. Antes disso, antes de cantarem mentalmente suas orações mais convenientes, antes de avistarem o passado do outro lado da rua, afirmavam a si mesmos que haviam superado o que quer que fosse que viveram juntos. O silêncio de causas não-dialogadas trouxe o consentimento de que não se sentiam mais necessários um para o outro. Era a maior história sem fim que protagonizaram até este momento.
Olhares cruzados, distração, atropelamento e “hello, stranger” seria uma possibilidade exagerada para ocorrer com eles, devotos de romances desgraçados, cinematográficos, televisivos, literários, teatrais... Os dramas românticos repletos de incerteza, magnetismo, ansiedade e desgraça faziam ambos sentirem-se vivos, tanto na ficção quantos os seus próprios, mas a roda de repetição - também com com outros personagens - corroeu os sentimentos, transformando-os em cansaço e lucidez, percebendo enfim que o ciclo - de encanto, aproximação, reciprocidade, carinho, desentendimento, silêncio, afastamento e algo que diferenciasse a história em questão das demais - não tinha mais impulso para girar.
Meses depois, contudo, ainda restava algo inspirador, inspirador apenas para desabafos e retratos. De certa forma, viver uma nova história, de preferência com um detalhe inédito, para se distanciar do passado que insistia em perambular pelas ruas em que eles, separados, rastejavam sem saber se encontrariam o futuro ou águas passadas na próximo cruzamento. Hoje, encontraram-se, avistaram-se cada um de um lado da via e congelaram. Os menos de quarenta segundos do semáforo duraram tanto quanto o romance deles durou.
Esgotou-se o tempo da luz vermelha, deram seus primeiros passos e fizeram o que deviam ter feito antes do primeiro encontro: ignorando sentiam um pelo outro, deixando o silêncio reinar, eliminando qualquer chance de um romance entre eles, seguram seus próprios rumos. Talvez se encontrarão outras vezes, mas não importa.