2016/12/29

Zero


Grita comigo para que meus defeitos se assustem, deixem-nos em paz e saiam pela janela, que está aberta, e que o vento entre, deslize pela cama amaciando a tua pele que meus dedos magnetizados não conseguem deixar de acariciar. O afeto se desmancha quando me permito ser a minha pior parte na tua frente e sei que tem vontade de ir para nunca mais voltar, melhor dizendo, você deve ter vontade de me expulsar da tua casa, gritar da janela um discurso que acorde toda a vizinhança que não mais me permitiria entrar na tua casa, sequer pisar na tua rua novamente, jogar minhas roupas na rua e me deixar queimar no calor de dezembro. Tua raiva contida causa a miragem de que está tudo bem por enquanto, mas sei que não está, despropositalmente deixo vestígios do que não quero mais ser, sem que eu perceba a maquiagem escorre e você consegue enxergar meu antigo personagem, aquele que tentei assassinar repetidas vezes, mas insiste em se expor quando estou vulnerável. Seja minha cúmplice ou mate o antigo eu por conta própria, assumo a responsabilidade de levar a culpa e de encontrar um novo eu - ao teu lado.
Que seja um caso de um mês ou dois (ou vários, assim desejaria), mas não mereces ter o meu pior nem ouvir de mim as palavras mais cinicamente corrosivas, nem você nem ninguém. Que o pior que você possa ver de mim sejam minhas crises alérgicas abraçando seu família felina ou minhas mordidas ansiosas em minhas próprias mãos ou minhas bebedeiras colossalmente vexaminosas que resultam em machucados de origem imemorável e diálogos em outros idiomas sem nexo algum. Que ainda haja em você um tanto de insistência nisso que temos e vivemos, seja lá o que for, ah, eu gostaria, apesar de meus tropeços. Que você grite comigo tudo o que quiser, grite também para o mundo tuas vontades. Que os teus escândalos sejam a fonte da mudança.

2016/12/06

Ressaca de novo

Anestesiado pela presença dela ali, no apartamento há tanto tempo assombrado pelos fantasmas da ausência e da solidão, contente com o novo episódio que escreviam ali, em uma madrugada alguns anos depois da primeira colisão de rotas ("há quanto tempo a gente se conhece, dois anos, três?", ela perguntara, "quatro, teoricamente", ele retrucou - porém devia ter dito que a cronologia considerada partia apenas de sua perspectiva, excluindo a dela, que era um tanto mais recente, ele deveria ter dito, não apenas isso -, completando com um trecho da música de abertura, digamos, do que pretendia ser o filme mais extenso que conseguiriam imaginar serem capazes de protagonizar, "I remember it well", mesmo que, de fato, a canção era apenas uma regalia dos primeiros dias, não traduzia sinceramente para uma linguagem musical, somente instrumental que fosse, o que viveram), ela estava em sua casa, e alucinado pelo cansaço e o sono que deixavam a gravidade ainda mais influente, focava o que restava de sua força para com seus dedos percorrer o curto e magnético caminho dos dedos dela. Cada centímetro, desde a base das unhas, passando pelas pontas curtas, às impressões digitais. Entorpecido, tentava decifrar os relevos de seus dedos na tentativa de conhecer o que ainda desconhecia dela, o que era muito. Buscava decifrar sua biometria para entender o código criptografado de suas vontades. O peso do cansaço realmente deixava sua mente e seu corpo deslizarem em fluxos de delírios desconexos. 
Naquele momento, o tempo parecia não fluir, a noite que lentamente se camuflava de dia, o frio era teimosamente ignorado, não pelos corações flamejantes tão próximos, apesar de separados pelos braços das duas poltronas, cada um envolvia-se num cobertor diferente, de que deixavam escapar somente as mãos quentes e um tanto trêmulas, fosse por frio, nervosismo ou alguma sensação que representasse o que alguém ansioso e incrédulo sobre a realização de um capítulo igual aquele em que duas pessoas, depois de tantas corridas, repousavam enfim juntas, mesmo que houvesse a possibilidade real de isso não se repetir; e os rostos, iluminados pelos olhares alheios, radiantes, o que os impediu de fechar os olhos por bastante tempo.
Quando suas mãos se cansaram contra sua vontade, aproximou-se ainda mais dela, afundou-se em seus cabelos, cada fio era uma enxurrada, queria se afogar ali, tão delirante estava que se esquecia de respirar. Cada inspiração pretendia absorver uma parte do que criavam juntos para que as memórias invadissem seus pulmões e dali se alastrassem pelo resto do corpo, da sala, da cidade, da vida.

- Você precisa dormir, o cobertor ainda tá quente, vai - disse ela, com seu fechado sorriso tranquilizante, aparentava temer deixar escapar a intensidade de seu sorriso aberto e explodir, desaparecer na luz, mas ele aceitaria, impulsivamente, fragmentar-se a partir de uma explosão solar dela. “Que ridículo eu sou”, pensava sozinho após considerar o que faria ou não por ela, em que metáforas se transformaria para continuar em sua órbita. 
Pegou o cobertor abandonado na poltrona onde ela deitara, percebeu que seu cheiro permanecia ali, e deitou-se, agora em sua cama, mas não pode dormir o quanto queria ou precisava, sua rotina fluía apressada e a luz matinal inundava todo o apartamento. À noite, quando voltou para seu apartamento, depois do trabalho, agora acompanhado apenas das sombras da memória, o aroma se dissipara. Afirmou para si mesmo que o cobertor voltaria a abriga-la, apesar de não ter certeza disso, que seu cheiro voltaria a se prender às peças de cama daquele lugar - ou qualquer peça de qualquer lugar que os abrigasse - futuramente - suplicava às curvas do tempo para que aquela madrugada se repetisse, que se tornasse rotina, mas não do tipo que corrói os relacionamentos. Esta palavra o amedrontava,  gancho para o que queria esquecer fisgava sua pele, doía. Conseguia rapidamente se desvencilhar do passado e retornava ao recanto das memórias doces que cultivava por ela. Entristeceu-se consideravelmente por se lembrar do que lembrava, mas sua mente recordara da canção que repetira tantas vezes nos agora tantos anos que estavam em desencontro constante: "Not now, maybe later". Talvez. Permitia-se massacrar pela crença em um bad timing como método para dormir melhor, sem ser atormentado pelo pressentimento de que nunca teriam uma chance, a chance de viverem juntos de uma vez por todas.
Não demorou para que seu pessimismo arrombasse a porta da casa, de sua cabeça, como em outras vezes naqueles anos, trazendo boatos de que ela teria passado aquela madrugada com ele enquanto esperava algo ou alguém - quem ou o que quer que fosse -, que ela não gostasse tanto dele quanto ele imaginava, que ele não passava de uma distração, que ele era uma ilusão, que ele daria motivos para uma fuga no próximo - incerto - encontro ou em algum momento no futuro - também incerto - juntos. Fato era que a onda de otimismo sempre vinha trazendo tudo o que queria e se arrastava para longe depois de algum tempo, deixando o solo seco e propício aos piores pensamentos. 
Os dias se alongavam e as lembranças emergiam. Em um momento aleatório, insignificante, passou a mão em seu próprio cabelo e recordou do momento em que ela fez o mesmo, o melhor afago que seus curtos e crespos fios já receberam em muitos anos. Não exagerava ao afirmar que qualquer ato dela, apesar de exagerar na importância deles, mais objetivos do que qualquer palavra, eram de significância enorme para ele. 
Ignorou durante um ou dois dias depois do encontro que tiveram, o mais marcante até ali definitivamente, a questão de que não dependia apenas dele ou da relevância da madrugada que passaram juntos encarando o escuro e deixando-se levar pelas mãos alheias, podia ter sido nada demais, nada de menos, ou tudo. O conforto do silêncio à dois emudecia o que queriam dizer um ao outro. Tinha consciência que qualquer gesto seu posterior àquela ocasião poderia ser praticado ou entendido como cinismo, a união de algumas palavras quiçá soassem como apelativas. Não queria gritar suplícios desesperados, não queria gritar de maneira alguma, e passou dias tentando encontrar um meio de não ser o homem que ela não queria (cínico, chantagista, carente etc), porém não sabia o que ela queria, nem mesmo se queria.

2016/11/16

Motivo nenhum é motivo suficiente

"And when it had all gone down slowly the hole in the basin had made a sound like that: suck. Only louder.”
A Portrait of the Artist as a Young Man, James Joyce

Terminou de ler mais um parágrafo, direcionou seus olhos para o chão, e sentiu não a náusea, afinal não era Antoine Roquentin, mas um ruído ligeiro, um tremor, um zumbido se aproximando, uma onda, um enxame, como se vindo do subsolo do shopping, como se estivesse subindo, aproximando-se cada vez mais, como se correndo nas escadas rolantes, pronto para destruir a construção e a vida das pessoas que ali trabalhavam, compravam, comiam, passeavam, seria o fim - se o desastre fosse real. Real. Não era. Na verdade, era, mas apenas na mente daquele que abandonou o livro sobre a mesa, desistiu de ler para se concentrar no que emergia dentro de si, talvez controlar isso tudo, mas sabia não ser capaz.
O tremor em sua mente nenhuma relação tinha com o que lia, a leitura não pressionou o gatilho, nem mesmo Roquentin ou qualquer um de seus camaradas literários. O que fez emergir (mais um)a onda foi algo que lhe aconteceu cedo naquele dia, quando abriu os olhos naquela quinta-feira e disse silenciosamente: "merda", e percebeu ter acordado mais uma vez.
Há tempos não passava por isso, em público então nem se lembrava da última ocasião. Desacostumou-se a ponto de considerar a dor nova. "Isso não é doença, é frescura!", como diriam aquelas pessoas normais, sem problemas, maduras o suficiente para não serem acometidas por transtornos como aquele. Era como se uma superfície gélida fosse invadida por um calor inquietante, rachando o gelo, que então corta a pele e deixa entrar todos os ruídos do mundo, ainda que não se consiga ouvir nada, pois a mente entra em um estado sinestésico onde não consegue identificar dissonância alguma. As palavras se enrolavam, não se entendiam, nada compreendia.
Não registrou quanto tempo durou, pode ter durado dez segundos ou longos dez minutos, mas cada segundo lhe roubou o ar que teoricamente devia correr até seus pulmões. A velha sensação de que seu toráx diminuía a cada respiração. Hiperventilava, sua mente se arrastava em um chão áspero para tentar retomar o controle.
Ninguém - tanto ali quanto em qualquer lugar - oferecia ajuda, afinal ninguém enxergava o que estava acontecendo, também porque, naquele momento, sua voz correra para longe.

2016/08/24

Auxese, Axioma, Exegese ou Don't love the ...

Pela septuagésima oitava vez, chego a uma conclusão diferente, cada uma por um caminho diferente, e ainda assim me nego a entender a verdade - "isso não pode acontecer comigo, é demais" -, desespero-me, é assustador, absurdo, acreditar. Talvez seja melhor crer na alucinação, que isso tudo é irreal, surreal, que nada existe. De tanto o sol passar sobre nossas cabeças, começamos a acreditar que nos cruzaríamos sempre, o astro e a Terra, e alguém levou ainda mais a sério e descobriu que girávamos a seu redor. Não existe metáfora nisso, já adianto, não é meu Sol, apesar de queimar minha paciência a lentidão da conclusão dessa jornada, mas não é você que a queima, ou, já que se fala de astronomia, a demora para a chegada do novo ano, o novo ciclo.
Não queria que tudo se repetisse, mesmo que parte de nossa rotina - our very own - ser o que me instiga a permanecer. Permanecer, ponto.
É como se estivesse em um elevador que sobe e desce, mas sempre para no mesmo andar, e toca a mesma música, um tanto sinestésica, as ondas sonoras são cores, a cor do seu cabelo, a cor dos seus olhos, a cor das suas cicatrizes, dançam ao meu redor e me envolvem, me abraçam, fundem-se às minhas cores, às minhas dores. Quando escolho subir ou descer escadas, os ambientes se tornam cinzentos e a ausência das suas cores tangíveis deixam fendas herméticas, onde não circula sangue nem ar, há abstinência de sentir-te me invadindo as entranhas, causando espasmos, mãos trêmulas, estas ausências me machucam, não fisicamente, obviamente, mas incomodam.
Queria sair de mim, ao atingir o auge ainda inalcançado deste romance, para jogar sobre nós gasolina, acender um fósforo e ver-nos queimar como a mais bela fogueira que poderíamos ver, mas desisto da intenção ao perceber a pretensão que há em dizer que ainda não alcançamos o ponto mais alto de nossa história, pois, é importante sermos realistas, podemos ter passado pelo pico tão rapidamente e nem percebido por estarmos distraídos demais com os nossos silêncios, ou distantes.
Falo de mim por não ter a chave para o teu cofre de sentimentos, não li seus diários mentais nem sei se pretendo lê-los, sei da existência de trechos perturbadores dos seus pensamentos, sei que os tem, assim como tenho os meus, mas leria todo e qualquer capítulo que quisesse me mostrar, decoraria todas as estrofes dos poemas que contribuíssem para adiar qualquer mal dos teus dias, escreveria em nossos lençóis, por mais piegas que isso seja, e, sim, nossos lençóis, porque ainda acredito na possibilidade de um dia compartilharmos um ninho, cultivarmos um bonsai e segurarmos um mesmo teto, com um de seus batons um lembrete de tudo o que somos, a fim de reduzir o impacto quando atingidos por uma daquelas fases, você sabe, que a única vontade pura é permanecer em posição horizontal, observando o escuro ser tomado pelo sol que atravessa a cortina quase translúcida que tanto prometemos trocar por uma black-out que vimos em alguma loja de algum shopping durante mais uma de nossas perambulações fugindo de uma ou duas crises ansiosas, elas existiriam de vez em sempre.
Se somos o que sentimos, então somos o exagero. Somos a representação do que se entende por hipérbole romântica, afinal não vivemos o que sentimos, apenas sentimos.

2016/08/08

Sono

Queria escrever sobre a conexão que sentira ao saber, naquele dia em que ela, sem intenção de entregar o enredo, depois que ele afirmou saber que alguém morria no meio da história, confessou, sem dizer nome algum, que era sua personagem favorita. Naquele instante, soube quem morreria. Tentava se desprender de tramas doídas, mas, entre Uma Vida Pequena e Dias de Abandono, decidiu prosseguir com a crônica de uma morte anunciada, não aquela do Gabo. Ao fim do episódio, depois de chorar, pressionar a cabeça com as duas mãos, como se tentasse arrancar a memória daquela cena e se concentrar na própria respiração para se acalmar, pensou em mandar uma mensagem sobre conexão mental, "quando você falou que era sua personagem favorita, eu soube", sobre o quanto eles se conheciam, completavam, contemplavam, corriam, à distância, juntos, em silêncio. Ou escrever um conto sobre tudo isso. Intrinsecamente, apesar de não assumir em voz alta a si mesmo nem a ninguém, usava a literatura - tanto no ler quanto no escrever -, corrigindo, a ficção como um  recurso para se aproximar dela. No meio do caminho, teve a epifania de que não era capaz de transcrever, traduzir, o que sentia por ela nem o quanto ela importava para ele. Repetia-se nos rascunhos, apesar disso, não se cansava, não havia crítica literária apontada para seus textos, afirmando que já estavam repetitivos, que deixaram de ser inventivos e não tinham interesse para a sociedade em geral, não importa. Queria escrever. Continuar o que havia começado mentalmente. Porém, estava cansado demais para se livrar das cobertas, levantar e procurar seu caderno ou ligar o computador. Além do cansaço, um pedaço de ferro atravessava seu crânio numa dor de cabeça consequente de um pouco de choro depois de testemunhar a morte ficcional - mas nem por isso indolor -, somado a uma ressaca causada pela labirintite atacada na madrugada anterior.
Devia ter escrito, pois, na manhã seguinte, esqueceria-se das frases elaboradas mentalmente,  que se tornariam célebres e seriam citadas em obras de outras pessoas no futuro, mas dormiu.

2016/07/28

Permanecer, distante (Not to disappear)

Render-se ao cinismo da nostalgia por bons e velhos tempos é tão angustiante, cortante, quanto ignorar o passado e priorizar acabar com a agonia do momento.
A vontade de partir era, muitas vezes, real, visceral, emocionalmente palpável (como se um caroço retirado de um buraco no próprio peito, "aqui está minha dor"), mas, dependendo do momento, impraticável. O motivo para sumir - da vida de alguém, na maioria massacrante das ocasiões em que tal vontade despertava - não é maior que os motivos para ficar - no emprego, na casa, na faculdade, nos trilhos.
Talvez, em algumas circunstâncias, a intenção de se distanciar não estava diretamente associada a uma ou várias ações de alguém. A exaustão por viver, como um todo, não necessariamente cansar-se de alguém em específico, despertava interesse nenhum em interagir com quem quer que fosse a pessoa por quem tinha ou teve sequer uma gota de consideração, afeto.
Ou, até mesmo, cansar-se de uma pessoa especificamente alastrava o camada de isolamento criada e fazia se distanciar de toda relação humana diretamente hedonista - que não envolvesse diretamente trabalho ou qualquer outra obrigação.
De fato, meses depois, não sabia porquê, o que concretamente atingiu e desviou sua rota, mesmo que só mentalmente, para dar um ponto final, apenas...
Nunca gritou na cara das pessoas das quais não teve mais notícias que não queria saber de suas vidas, suas imagens congeladas da tela, lentamente entrando em fade out. Lugares que frequentaram juntos, dívidas, piadas internas, lembrava-se de tudo, guardava tudo, temendo um dia não ser mais capaz de guardar tudo com carinho, derramar rancor ou simplesmente deixar cair pelo caminho enquanto corresse - para longe, das pessoas, de si, de tudo. Contudo, sabia que ao chegar lá, independentemente de onde "lá" fosse, teria novas razões para querer partir mais uma - quem saberia, talvez não a última - vez, novas pessoas que despertariam tal desejo, fugir novamente.
Entrara nesta introspecção ao se lembrar da proximidade do aniversário de alguém de quem se afastou, mas, na tentativa de recordar o ultimato para a relação em questão, contentou-se em concluir que o tempo, a erosão do tempo, corroeu a construção, permaneciam resquícios, entulhos, do que existiu, incertamente sem saber se, de fato, existiu uma razão justificável, aceitável em termos que não abrangem o intento psicológico de cada indivíduo na tomada de decisões - impulsivas ou concisas -, que não só uma manha, uma cisma, um pesar efêmero que distorceu a visão de uma amizade firme para convergências sociais, interações, forçadas pelo comodismo. A resposta, provavelmente, era tão solúvel que nem ao menos uma chuva foi necessária para apagar, apenas o primeiro vento a levou para longe, perdendo-se.
Era estúpido condenar culpados intangíveis, o orgulho, o comodismo, o cinismo, a saudade, quando a culpa nem devia ser considerada, afinal, algumas vezes, o que acontece é que a vida acontece.
Deixava-se enlaçar pela insistência presa ao momento em que decidiu se distanciar, mesmo que não fizesse mais sentido permanecer distante, mesmo que não tivesse se distanciado literalmente, ainda estava onde esteve o tempo todo. Mesmo endereço, mesmo cansaço, mesma desgraça.
Não queria se render à saudade, mas abraçou, por instantes maiores que seu orgulho permitia, as lembranças. Da última vez que realmente se sentiu pertencente (talvez a ilusão, cegando-se a fatos que poderiam ter causado o distanciamento anteriormente), abrigado naquelas companhias, àquelas amizades. Fim de tarde, o sol refletia nos prédios, riam, e alguém perturbava carinhosamente sobre a velocidade que se apaixonava; madrugada, sofá pequeno demais para tantas pessoas e lia, sem censuras, sua autobiografia, com todos os detalhes possíveis sobre suas perdas; foram tantas despedidas. No fundo, apesar da longevidade e/ou consistência daquelas amizades, não se conheciam plenamente, não permitia que o conhecessem. Queria deixar ocultas camadas de sua existência para não se machucar quando usassem sua vida contra si ou fossem embora. Mas, egoísta, contraditório, escancarava-se, de modo a causar a impressão que lhe conheciam inteiramente, partia, distanciava-se. Adiava - provavelmente necessárias - brigas e deixava a sensação de que estava tudo bem ou que passava por mais uma de suas fases de afastamento, que seria encerrada inesperadamente ao aceitar um convite para fazer alguma coisa, qualquer coisa. Porém, dessa vez, talvez, não responderia ou - pior - daria uma resposta apática, que não desse vida a um diálogo. Ou levaria uma reaproximação saudavelmente, seria simpático. Não conseguiria se distanciar, permanecer longe do alcance, da vista, nem no próximo mês, muito menos ao longo dos anos que lhe restam.
Não tem fim.

2016/06/30

Obra do Tempo ou Kokedama


“Sentiu-se oco, a sensação de leveza se misturando ao sentimento inquietante de um ser sem raízes: se abrisse as veias não sairia nenhuma gota de sangue, não sairia nada.”

A Mão no Ombro, Lygia fagundes Telles


Parece que aquele show foi há menos de um ano, sinto que perdi, além do controle da minha vida - de vez -, a noção de tempo. Sinto que não era eu ao seu lado, era outro homem? Eu - definitivamente - era outra pessoa naquele junho?, outubro?, "I remember december"?, ao menos internamente, afinal a mesma cara estragada coberta por um casco de bad guy (talvez só eu mesmo veja isso), mas agora são outros ideais, outras ideias, opiniões, outros receios, rancores, desejos, apesar de sentir ainda algo por Ela talvez muito maior do que senti ao seguir rumo à Praça Liberdade naquela noite de quinta-feira, madrugada de sexta (o tempo ao mesmo tempo que importa tanto para essa história fica cada vez mais líquido, distante, insustentável, igual eu).
Agora, anos depois, quem usa um óculos de hastes vermelhas é outra ponta. Apesar das lentes, ainda não consigo enxergar os detalhes que causaram o distanciamento, as letras são muito pequenas - ou são apenas linhas aguardando alguém preenchê-las com o desfecho ideal para esta história, ou aquela.
Equivoca-se quem afirma que estivemos em um relacionamento sério, namoro etc, enfim, nesses padrões sociais, afinal não, não dá pra chamar de relacionamento sério, muito menos reduzir a um pequeno caso. É como chamar uma pequena árvore suspensa de bonsai. É diferente, é complicado. Da mesma maneira que tentei ter um relacionamento com ela, falhei - quando percebi ter estragado tudo mais uma vez - em cuidar dessa tal forma de vida composta de árvore e recipiente, não consegui, e de um cactus, talvez a forma de vida mais duradoura em minha vida nos últimos anos, e mas morreu num acidente envolvendo gatos e comida, não me perguntem como isso aconteceu, mas me perguntem, por exemplo, o nome dos gatos.
As minhas intenções a respeito desse texto mudaram muito desde a primeira frase escrita, lá naquele ano tão distante, “Ela era uma pessoa que me agradava pelas coisas que gostava”, se era pra ser um conto clichê de “boy meets girl”, uma carta cheia de confissões, um artigo sobre amores líquidos ou o primeiro capítulo de um romance muito maior, não sei o que queria; assim como minhas intenções a respeito da mulher que motivou tudo isso mudaram, assim como eu e ela mudamos - individualmente -, não sei se o que queria condiz com o que quero, aliás não sei exatamente o que quero - ou espero - disso tudo. De uma escrita intencionada a um conglomerado de aleatoriedades sobre uma mulher e o que ela pode causar em mim em todos os tempos verbais vividos até o presente, o tempo dilui isso tudo e transforma em algo novo, não só o texto, as vontades também. Ao menos na minha cabeça, não mais uso de palavras nestes capítulos para conquistá-la ou mostrar o quanto estou arrependido por ter arruinado tudo, “olha como me sinto culpado, tenha dó de mim e volte”, não, não é isso. Cinismo é algo delicado quando exposto ou anunciada sua ausência, cinismo e mentira são afins. O tempo esculpe tudo ao redor de nós, digo, o decorrer dele molda cada curva, cada aresta, cada detalhe, com o nosso empenho em alterações ou não.
Sonhei que a encontrei num restaurante, ela e uma mulher, uma conhecida paulistana, descobri que estavam num encontro e isso deveria me derrubar? O sonho terminou quando, elas, de mãos dadas, estavam sentadas juntas, abraçadas, e a outra mulher repousava sua cabeça no ombro d’Ela. Acordei e não senti raiva, nem naquele dia, nem depois, muito pelo contrário, não, não fetichizei o relacionamento delas, não, fiquei muito contente que, ao menos no sonho, vi Ela soltar um sorriso de tranquilidade, de “estou no lugar certo”, de um jeito que não sorriu ao meu lado em tantos anos. Acabou o sonho e restou a sensação que eu não era capaz de completá-la, talvez nunca seja, mas fico contente que pelo menos em um sonho ela estava bem, felizmente bem. Era um restaurante, ou um café, e as duas se levantaram, havia uma grande vitrine que mostrava a rua, uma rua de paralelepípedos, e vi as duas saindo juntas, a outra mulher segurando no braço dela, protegida. Entreolharam-se, sorriram uma para a outra, sumiram. Sonhei poucas vezes com ela, porque tenho a impressão que vivo numa realidade onírica há anos, não me refiro a este sonho como uma ambição, mas algo que me questiono a cada momento se estou acordado ou dormindo, paralisado. Sinto como se fosse o sonhador de Noites Brancas, envolto na névoa, inspirando a brisa do Rio Neva, sem saber ao certo se Nástienka era real ou um delírio extraído de um desejo enraizado no profundo do subconsciente. O sonho acabou. O sonho acabou, mas arrastei por dias a sensação de que ela realmente, enfim, encontrara alguém. Alguém que não caísse no primeiro buraco da estrada. Alguém que tivesse gravidade, força, alguma grandeza física suficiente para se manter em sua órbita. Alguém que não eu, loose end. Dói, não seu encontro com alguém que não se perdesse nas esquinas labirínticas de um relacionamento, mas sua ausência mesmo platônica na rotina dos meus dias perdidos. Outra noite, outro sonho. Não me lembro se foi Ela ou alguém - se não ela, não importa quem - que me deu a notícia: Ela estava de mudança para Islândia. Era isso. Não me lembro o motivo da ida, mas aconteceria anyways. Não sei se ambos sonhos habitavam a mesma realidade, mas o alívio por vê-la bem se deixou ser substituído pelo desespero de nunca mais, nessa cidade, correr o risco de encontrar Ela na rua, do outro lado da faixa de pedestres, começar a hiperventilar ao vê-la vindo na minha direção.
Os desencontros das histórias - a real e a transcrita - ganham raios cada vez maiores, expandem-se com o tempo, lembro-me da professora de Física, na sexta série, nos explicando sobre o fenômeno da dilatação, exemplificando os trilhos de trem com um espaço considerável entre cada um, sem engrandecê-lo, como se fosse algo banal, mas essa aula permanece em minha memória como uma anotação no canto de alguma página, sobre a importância do tempo para a dilatação e a corrosão dos objetos, neste caso, dos relacionamentos. O texto se expandiu, dilatou-se, corrompeu-se, perdeu-se, graças ao tempo e a mim, que me expandi, dilatei, me corrompi, graças ao tempo, que agiu como si mesmo, fluiu.
Esse texto não é mais apenas sobre Ela, ou sobre mim, está sobre nós, e não encontro mais a convergência entre Literatura e vida, cada uma foi para um lado diferente. Numa terceira rota, encontra-se Ela, desencontrando-se no estado vizinho, numa noite branca, no mar da Groênlandia ou wherever way, não sei. Me perdi no meio da história, sem saber se estou distante do fim.

I just let the silence swallow me up
The ring in my ears tastes like blood
Asking aloud, ‘Why you leavin'?’
But the pavement won't answer me
Something, Julien Baker


2016/06/12

Avestruz (Textos ansiosos)

Imaginem que todos os animais de um zoológico qualquer estão reunidos no mesmo perímetro - e que, não se sabe porquê, nenhum deles está atacando os outros-, imaginem também que há um avestruz e que talvez essa grande ave seja a única de sua espécie ali, agora imaginem que ela conhece um ou outro dos animais no local, mas que ela não consegue se comunicar; ainda imaginando, visualize que o avestruz, intimidado pelo grande número de animais ao seu redor, para tentar se tornar invisível, para fugir dali mesmo sem forças para correr, voar, sumir, enterra sua cabeça e permanece parado, torcendo para que ninguém o veja.
Agora, antes de jogar toda essa imaginação no lixo, imaginem - uma última vez - que eu sou o tal avestruz e que todos vocês são os demais animais, avestruzes ou não. Sem ofensas.
Para o azar da ave, digo, de mim, alguém percebeu e cutucou o avestruz:
“A gente tava observando aquela vaga de carro ali, tinha um carro, ficou um tempão, aí saiu, entrou outro e já saiu de novo, mas você continua aqui. Tá esperando alguém? Tá se sentindo intimidado, né? Quem é? Uma mulher? Me mostra que eu vou lá fazer amizade com ela, aí dou um jeito de te chamar e tal. Tá rolando um apx forte, é isso? Ah, é sim. Mas ok, você que sabe, só tava curiosa mesmo, porque, poxa, faz mó tempão que cê tá aí sozinho, que bad.”
Sorriso tanto simpático quanto constrangedor, o avestruz pensou em falar algo que o ajudasse, mas realmente queria se enterrar pela última vez, mas não tinha coragem para fazer isso na frente de uma pessoa que tentava conversar com ele.
Depois que a desconhecida se distanciou, voltando a sua matilha, quando finalmente percebeu que estava no meio de uma crise, de uma situação totalmente constrangedora - mesmo que apenas e somente para si mesmo -, o avestruz, sem antes hesitar, sai andando, sem olhar pra trás. Quantos mais passos dava, mais sentia algo empurrando as paredes de suas entranhas, dificultando a passagem de ar, um ruído constante martelava sua mente, o avestruz queria se enterrar de corpo inteiro uma última vez.
Este é um texto ignorante, principalmente ansioso, baseado em desenhos infantis, pois, se quem aqui escreve tivesse pesquisado mais sobre o tema - avestruz enterra cabeça -, saberia que esta ave não é tão estúpida e que, quando se vê intimidada ou em perigo, simplesmente sai correndo. Joguem essa analogia no lixo, queimem, ignorem toda a situação.

2016/06/04

A Farsa dos Dias (incompleto)

[...] Fluxo constante de melancolia [...] No meu quarto, fecho as portas e deságuo, me afogo [...] Quando estou com alguém - não apenas romanticamente, afinal, apesar de eu ser eu, também me relacionei com pessoas de forma não-romântica -, mesmo que em lugares públicos, fecho as barragens dessa represa para que ninguém se afogue inocentemente, não gosto quando arrasto alguém comigo inesperadamente que não sabe nadar nessa específica confusão [...] Não gosto de muita coisa que faço, mas ainda faço a maioria delas por ter perdido o total controle dos meus atos - na maioria das vezes, impulsivos, até mesmo indesejados, preteridos -, eu fluo, comodismo, falta de força para lutar contra qualquer coisa que me atinge, me arrasto empurrado pela enxurrada imparável do tempo correndo sem escrúpulos nem gentileza para com quem não quer que ele corra [...] Certas vezes, mesmo sem pensar, como já dizia uma pessoa que conseguiu escapar desse barco furado, após emergir de um naufrágio anterior juntos, [...] eu sou alguém manipulador e persuasivo, portanto acabo por deixar de propósito a onda melancólica levar alguém junto comigo, ambos entrelaçados por cordas, correntes, algas, sentimento, alguma coisa que faz nos debatermos na água [...] Em geral, relacionar-se comigo deixa de ser algo saudável em um inesperado momento, pois o Inesperado na vida de uma pessoa instável acontece quando mais se espera: a qualquer instante [...]

2016/04/28

Personagens

Querida personagem,

Toda e qualquer característica física sua será desconsiderada e ignorada nos seguintes parágrafos - de mais uma carta que você não quer ler. Os longos cabelos castanhos, que, repentinamente, ficaram acima da nuca, os olhos tão instáveis quanto o humor, ora verdes, ora castanhos, a pinta no pescoço que formava uma constelação com outras espalhadas pelo corpo, os três dentes frontais-inferiores levemente inclinados para frente devido a insistência em usar chupeta até os seis anos, a cicatriz na mão, resultado de um acidente envolvendo piso molhado e copo de vidro, as olheiras cada vez mais profundas e simultaneamente entristecedoras e encantadoras (pois, de um modo muito muito subjetivo, mostram uma fração da sua profundidade, fração magnética, que me atrai - ou atraía, não quero deixar rastros de um possível resquício de desejo, apesar de sempre deixar aonde quer que eu vá ou o que quer que seja que escreva) - para o núcleo de sua existência [passando pelas diversas camadas de seu planeta numa velocidade maior que aquela necessária para me destruir quando você disse que (você sabe, não tenho forças para repetir, mesmo em prosa, suas palavras naquela tarde)… voltando a carta:] cuja temperatura pode me dilacerar antes mesmo de encostar nele. Enfim, tudo o que poderia causar algum tipo de encanto e/ou admiração deve ser repelido tanto deste texto quanto de minha mente, pois os gestos e gostos tiveram maior relevância, mas, seja a essência, aparência ou qualquer outra caraterística, não importa mais. Não deveria importar, mas contradição corre solta.
Hoje, apenas restam o rancor e a vontade de encontrar uma falha na linha espaço-tempo para retornar à estação de trem e tomar outra decisão que não escolher ficar com meu pai ou partir com minha mãe… Espera, não, essa é outra história, não a que está sendo relembrada a fim de causar em mim a mesma repulsa que há em mim (ou deveria existir). Não que de fato haja alguma gota de repulsa em minha língua, garganta ou qualquer lasca de minha carne, o contrário do que essa carta tenta dizer. Tentar, afinal, nunca condiz com a intenção em si. Não sei mais do que estou falando, certamente prolongo as palavras para de alguma forma te fazer gastar mais tempo comigo através minhas palavras. Percebe como podemos manipular o tempo? O tempo alheio, de mudar toda a trajetória espaço-temporal de uma pessoa ao simplesmente gastar seu tempo com algo que você poderia evitar. É óbvio que já percebeu que me perdi - como sempre desde sempre, mas de um jeito diferente de como me perdia ao seu lado - de minhas intenções no primeiro parágrafo. Escrever impulsivamente em fluxo de consciência causa o entendimento de como as vontades fluem, alternam-se, desaparecem e ressurgem em questão de poucos minutos. Resumindo o assunto que já se perdeu, gostaria de ter feito outra coisa, não há certeza em relação ao dia certo para tal encruzilhada surgir a minha frente. Insistir ou desistir, melhor dizendo, seguir para longe de quem te despreza ou te mantém como um plano B, uma caixa de primeiros socorros. “Em caso de solidão, quebre o vidro”.
Saber que não seria o par romântico da protagonista, mas um personagem também importante de alguma maneira tanto para ela quanto para o resto da história. Não sei mais se apenas escrevo ou se sou personagem (não que seja inviável ser ambos) me fez separar todas as páginas desse romance para tentar reorganizá-lo de algum jeito que ficasse menos bagunçado, mas são tantas folhas que talvez precise de ajuda para transformá-lo em algo. Alguma coisa que me faça parar de escrever. E começar a viver. As tentativas de “começar” foram tantas em tantas novelas que se tornou menos doloroso escrever e escrever.

Com todo amor que pode haver na desgraça,
Personagem.


Notas (sobras) que não se encaixaram em linha alguma desta carta

Todas minhas roupas, toalhas e roupas de cama estão sujas de rancor, não conseguia limpar as manchas de ódio, talvez porque a máquina de lavar e a água também estejam sujas, contaminadas com um ódio infundado.

Não te amo, o amor que conservo imerge na personagem que co-escrevemos através de minhas idealizações e suas poesias.

2016/04/24

Quando O Diabo surge

I

Selado o pacto, estava decidido, não mais se envolveria romanticamente com alguém. Ninguém. Julgava não precisar nem querer mais desse item (amor) tão estimado por tanta gente. Queria aceitar sua solidão e conviver com ela distantes da ilusão de conforto quando se “tem alguém”, estava cansado. Foco no trabalho.
Concentrado, manuseava livros, dinheiro e sacolas, o procedimento padrão de todos os dias. Ainda assim, sua visão periférica se ocupava com movimentos e cores ao redor. Em dado momento, percebeu, com canto de olho, uma figura marrom surgindo e logo desaparecendo. Foi um instante rápido, mas suficientemente lento para atrair a atenção e o olhar daquele que guardava dinheiro de troco em seu caixa. O vulto retornou e sumiu mais uma vez, porém Nicolai (digamos que este seja seu nome) conseguiu flagrar o vulto, não era um fantasma, era uma mulher, que poderia se tornar uma fantasma na vida de Nicolai, ninguém sabia naquele momento se isso aconteceria, mas essa história não se foca no fim, apenas no início.
Marya (seu nome fictício), bastante influenciada por seus pais, que, naquele momento estavam no café da livraria, apegara-se à Literatura Russa, principalmente a um conto de Tolstói, que ela tanto recomendava para entes próximos, mas não tinha coragem de emprestar a cópia que tinha em um quase-altar em seu apartamento, então queria encontrar uma versão contendo apenas ele, para que pudesse “alugar” a edição que tinha, uma que incluía mais um conto. Lembrava de, num passado precisamente incerto, de ter visto o tal livro desejado, custando pouquíssimo para melhorar a situação, então se deslocou da seção de literatura estrangeira à de livros de bolso, ao lado do caixa, e começou a procurar. Abaixou-se para olhar nas prateleiras inferiores, enroscou-se em seu grande casaco marrom e lembrou de quase tê-lo deixado no carro por estar calor demais na rua, mas ali, na livraria, fazia frio, tal peça de roupa era útil. Sem encontrar o que queria nas partes baixas da grande estante de livros, levantou-se e voltou a olhar nas prateleiras de cima.
Pouco mais de um minuto depois de perceber a mulher procurando algo, por não haver mais pessoas na fila do caixa, Nicolai foi ao seu encontro e perguntou se precisava de ajuda.
Encarou o rapaz, que surgiu do nada, e disse "oi" e o nome do livro.
Ele começou a procurar com ela.
Quando voltou os olhos à prateleira, sem influência nem auxílio do atendente, Marya mirou o olhar diretamente no desejado livro, mas não era exatamente a edição que queria:
- Vocês teriam uma edição só com este conto? - Apontando para um dos títulos na capa. - É que eu tenho uma versão com esse e um outro, mas quero, se existir, uma só com esse. Lembro de uma que custava cinco reais.
- Só um momento, por gentileza, que vou procurar no sistema. - Disse, Nicolai, andando até um computador de consulta. Digitou as seis letras e obteve alguns resultados, contudo… - Não temos mais em loja, só por encomenda.
- Então quero encomendar.
Seguiram os procedimentos para encomenda, que não importam para este conto, mas, o que realmente interessa aqui, é que: em algum momento desta troca de informações, “é o mesmo nome da minha mãe”, telefone, dados de cadastro etc, em algum instante, como um raio, quando ele pareceu ou quando ela encontrou o livro, ninguém sabe afirmar o segundo preciso do choque, Nicolai olhou para Marya e se perdeu, desfez o pacto que havia selado consigo mesmo, queria amor, precisava se relacionar com Marya, afogou-se, foi absorvido pelos olhos dela, que eram de uma cor entre verde e castanho, ou os dois, ou nada, eram profundos. Talvez Marya, também perdida, submersa, quisesse retornar ali diariamente para procurar livros de Tolstói e, se possível, de preferência, encontrar o amor nos braços de Nicolai, cujo sorriso, sentiu ela, tão magnetizante, dizia tanto, mas ela esperava que dissesse algo que ela não conseguia elaborar em sua mente para falar, alguma coisa que a fizesse ficar ou voltar amanhã.
Marya não voltaria no dia seguinte, mas quando seu livro encomendado chegasse. Nicolai esperava que isso ocorresse quando estivesse lá, para recepcionar e atender Marya, e dizer o que não conseguiu nesse capítulo que termina, quem sabe, neste ponto.

2016/04/12

Cansado de inventar um título que sintetize tudo o que quero dizer sobre o que senti no momento em que me inspirei a escrever tal texto

De todas as faltas que sinto, a que mais sinto falta é a falta de incômodo por ter espaços vazios a serem preenchidos em minha mente. Agora, sou um arranha-céus com vários cômodos vagos ainda com reminiscências falhas de pinturas e buracos na parede de antigos inquilinos. Únicos sons perceptíveis são os dos meus pés pisoteando o chão, correndo atrás de algum fantasma que não sei se habita minha morada, e os remorsos e contradições correndo e dançando pelos corredores para me assombrar.
Implodir isso tudo seria prejudicial demais, não para mim, obviamente, já que estaria desmoronado, aos pedaços no chão, mas, sim, para quem está perto, tanto no prédio vizinho quanto correndo para longe, devido não apenas a fumaça e o barulho tóxicos da implosão, como também pela chuva de entulhos deslizando pelo céu dessa cidade infeliz e pousando aleatoriamente na cabeça de qualquer pessoa - culpada  por qualquer causa do fechamento da construção ou não.
Reformar o prédio custaria tempo demais: trocar todas bases de sustentação, os ferros infestados não só de ferrugem mas também de melancolia e auto-penitência; liberar os (ainda que poucos) espaços ocupados para fazer uma limpeza completa e não deixar um pedaço sequer de passado, não sei por onde começar, o melhor talvez seja fugir. Fugir de mim mesmo.
Fugindo do prédio, o impulso tomado para desabar em palavras ora dura horas ora dura dez minutos e me força a continuar a escrever mesmo sem vontade, digo, sem certeza de onde parti ou aonde quero chegar. O que começa como um pedido de desculpas, passa por algo como “sinto sua falta” e chega a nada, não apenas em texto chego a nada, e em algum momento começo a me questionar: “Por que razão/emoção perdida no meio do caminho, talvez no primeiro parágrafo, comecei a escrever?” Mais um cansado rascunho sem respostas, seja sobre porquê escrever, porquê me arrepender de algo que fiz ou não, porquê parti, porquê deixei partir, porque acabou.

2016/04/05

Futuro passado/Passado presente ou Rascunho perdido em algum lugar entre Santiago e Macondo depois que jogamos nosso bonsai no lixo

Quando estou contigo, simplifico o entendimento sobre teus atos silenciosos ou pedidos inesperados, como quando, naquele quarto de hotel em Yacuíba, quando vivemos entre Bolívia e Argentina gravando aquele filme sobre um amor de fronteira, que terminava - tanto o filme quanto o amor - em um terremoto, você perguntou se podia deitar-se comigo, “por poucas horas, você disse, mas acabou passando a noite toda a meu lado, respirando em um tom quase inaudível, fazendo com que eu me aproximasse do teu cabelo nunca pintado para ver se ainda respirava; ou aquela vez em que estávamos em um ônibus e você repousou sua cabeça sobre meu ombro, enquanto lhe falava sobre meu novo drama familiar, que ainda não havia nascido, mas já tirava-me o sono. Nessas ocasiões e em tantas outras, aprendia a não pensar demais no que você pretendia, pois, pelo seu excesso de silêncio, eu poderia interpretar em suas mensagens um sinal escondido nelas, se é que havia algum, e distorcer toda a sua verdade. O fluxo do tempo ventou na árvore de sentimentos que eu cuidava e só as folhas mais fortes resistiram, só os sentimentos mais sinceros sobreviveram. Depois de tanto tempo, como você não encontro ninguém, mas, desculpe-me, ainda é difícil não romantizar nossos caminhos, enfim, o quero dizer é que me permiti amadurecer e deixar espatifar no chão o masoquismo consciente que é sofrer por algo evitável. Esqueci o drama juvenil que li por tantos anos em algum lugar, talvez no vagão do metrô na nossa primeira semana morando longe da cidade que, para mim, hoje apenas conserva os anos de romances frustrados e traumas familiares.
É tudo muito incompreensível demais se visto de fora, porque as esferas afeto e amor romântico são satélites de um mesmo planeta e a anos-luz de distância parece que são a mesma coisa. O amor (licença para usar essa palavra que não seja em um roteiro) em mim por tudo que há em você é maior que qualquer montanha pela qual já sobrevoamos ou caminhamos, não há como medir, mas não é - talvez nunca tenha sido de fato (se foi, ilusão) - do tipo que faz correr na chuva de encontro a um beijo ou, sei lá, qualquer coisa tida como prova de amor romântico, porque o nosso romance acabou, mesmo que mal tenha sido um rascunho bagunçado, mas sobrevive o que mais importa: nós.
Parece confuso, e é, porque não sei escrever - imprimir num papel o fluxo de palavras que corre em minha mente enquanto você dorme pesadamente na cama de um hotel de nossa cidade natal. Estranho, não é?, sentir-se turista onde vivemos por vinte e alguns anos. Ficando nesse hotel da Inácio Lustosa, definitivamente, passamos a ser turistas de verdade nesse lugar.

[Fim da primeira parte que não é o primeiro capítulo mas um fragmento de um dia anos - muitos anos - após o início cronológico desta história em que quem a narra teima em assumir que não é um romance, que talvez tenha sido, porém é, sempre foi e continuará sendo até que não restem memórias ou registros materiais de tudo]

***

Acostumei-me a sua quietude, agarrei-me a seus gestos de carinho e detestei-me por ter desistido de protagonizar um romance real contigo quando ainda era possível, passei a contentar-me apenas com a amizade, a cumplicidade e a carreira profissional juntos, neste quase mutualismo que é a nossa vida desde o momento que você aceitou dirigir aquela minha história sobre amantes/fumantes.
Há anos não conversamos sobre nós - diretamente - , apenas sobre tudo, não expomos os problemas possíveis de nossa relação, agora ou de anos atrás, únicos conflitos que exibimos são os vividos por nossos personagens, que muitas vezes coincidem com os que vivemos hoje ou antes, mas não conversamos nem sobre tais coincidências.
Meus monólogos nunca são claros, precisos, persuasivos, compreensíveis, concisos, transparentes, iluminados, descomplicados… Perco-me no meio do caminho e não consigo retornar a ideia inicial que me levou a falar ou escrever. Você sabe disso, entende tanto sobre mim que me assusta conhecer alguém com tantas armas contra mim, mas que nunca as usa.

...

2016/03/30

Se dez fosse zero

E se não tivesse perdido o ônibus de dez e meia. Aquela criança teria sua infância adiada como aconteceu ao ficar no terminal Cachoeira esperando o Giannini de 11 e meia? E se… Dez vezes, e se… Dez vezes vezes 365 mais anos bissextos.
Não há como saber, mesmo que se acredite em universos paralelos ou qualquer outra teoria que possibilite a existência de uma realidade em que ninguém perdia alguém ainda na infância.
Tentar justificar que tudo o que aconteceu (ou, pelo menos, tudo de ruim) foi diretamente consequência da fatídica quinta-feira, não no exato mesmo dia da semana em que Kevin K. fez o que fez, causando todo o horror na vida de Eva, pode ainda imperar seu ser, guiar suas rotas, mesmo que implicitamente. Deixava-se, talvez, se persuadir por um manipulador invisível, não se referindo a Deus ou qualquer ser que algum dia viveu em sua mente, que desenhava nas paredes de plano de fundo de todas as cenas de sua vida conseguinte o grande ato palavras que traziam de volta a melancolia e as lágrimas derramadas nos últimos dias de março de 2006.
Todas as alternativas, tanto de “se tivesse acontecido” quanto de “se não tivesse acontecido”, corriam em um circuito dentro de sua mente em alta velocidade, às vezes colidindo com qualquer pensamento ou vontade que não tenha vínculo algum com o passado.
Um texto, qualquer texto, seja de uma página ou 49 mil páginas, é apenas um pequeno fragmento no vórtice, incomparável a quantia de tempo necessária para superar, corrigindo, “superar” a dor da ausência e a ainda mais insuperável distância percorrida para chegar ao cume da montanha de amor e dependência.
Tantos anos depois, a memória encontra-se fragmentada, tanto quanto qualquer relato da história completa, e a voz não é mesma, o rosto cada vez mais apagado. Tudo some. Nada se completa.
...

2016/03/25

Leite integral

Qualquer ato consciente segue o desejo subconsciente de autopunição por seja lá qual for o delito cometido.
Mais uma vez, estão cheios o copo e a certeza de que a cada gole seu estômago estará mais próximo de se estragar inteiramente. A cada dose no balcão, um passo a mais perto da beira do precipício que é perder a consciência e deixar que o impulso trate de apagar qualquer memória e toda a moral, se é que a sua (in)sanidade algum dia permitira que isso corresse por seu sangue. Cada batida é um soco na própria barriga que faz escorrer da garganta palavras e mais palavras de autodepreciação e insignificância.
O nojo de si mesmo não é aparente, mas tem ânsia de vômito quando revira a caixa do passado ou a de pensamentos. Segue fazendo o que faz mesmo não querendo mais, mesmo que agora não seja tão prazeroso quanto antes, machucando-se com isso, sabendo que faz mal a si e - ocasionalmente - a alguém mais.
Consegue se manter por algum tempo longe de tudo (ou quase tudo) que lhe é nocivo, mas manter-se em equilíbrio não é seu forte. Sua maior qualidade é ter fraquezas e se render a elas quando lhe é conveniente, quando quer fugir, por mais que saiba que não consegue fugir delas quando as mesmas não são outros seres, mas parasitas em seu organismo, a dor começa a escorrer de sua boca, seus olhos e suas mãos. Deixa-se derramar, vaza a liquidez de seus pecados, até que restem somente os entulhos de sua existência, permanentes. O aparentemente alto e resistente edifício de sua personalidade não passa de casebre insustentável a qualquer batida na porta.
Não suporta mais as metáforas, as analogias, as besteiras que cria para definir a si mesmo e explicar como sua mente vê, absorve e expele/repele tudo. Não consegue se expressar. Detesta ser o iceberg, que: 1. É muito além do que se percebe em sua superfície e 2. Pode causar sérios danos se houver aproximação desatenta.

2016/03/05

Verde, laranja, vermelho, verde, amarelo...

O cansaço deixa que o vento empurre seus corpos pela cidade, cada um em uma rota diferente. A única vontade convincente que sentem, cada um em sua própria solidão, é deixar o fardo de suas existências desabar sobre um colchão e respirar - não mais como antes, inspiração e expiração sincronizada juntos. Em tempos idos, eram algo inominável, mas eram alguma coisa, porque queriam tentar ser alguma coisa, apenas algo que não doesse tanto no mesmo cômodo quanto em países de continentes diferentes separados por um oceano.
Suas vidas divergiram para longe um do outro, apesar de frequentarem as mesmas vias da mesma cidade - ou de outra, ocasionalmente. O acaso entendia que não devia brincar com eles e jogá-los na mesma rua, no mesmo horário, porque, mesmo que não houvesse mensagem subliminar alguma enraizada na coincidência de transitarem pelo mesmo lugar na mesma hora, dariam um jeito de criar duas versões diferentes para o que Deus Destino tentava dizer (algumas vezes, nada). “Not now, maybe later”, rezou ele, “I don’t want to belong, to you, to anyone”, rogou ela. Antes disso, antes de cantarem mentalmente suas orações mais convenientes, antes de avistarem o passado do outro lado da rua, afirmavam a si mesmos que haviam superado o que quer que fosse que viveram juntos. O silêncio de causas não-dialogadas trouxe o consentimento de que não se sentiam mais necessários um para o outro. Era a maior história sem fim que protagonizaram até este momento.
Olhares cruzados, distração, atropelamento e “hello, stranger” seria uma possibilidade exagerada para ocorrer com eles, devotos de romances desgraçados, cinematográficos, televisivos, literários, teatrais... Os dramas românticos repletos de incerteza, magnetismo, ansiedade e desgraça faziam ambos sentirem-se vivos, tanto na ficção quantos os seus próprios, mas a roda de repetição - também com com outros personagens - corroeu os sentimentos, transformando-os em cansaço e lucidez, percebendo enfim que o ciclo - de encanto, aproximação, reciprocidade, carinho, desentendimento, silêncio, afastamento e algo que diferenciasse a história em questão das demais - não tinha mais impulso para girar.
Meses depois, contudo, ainda restava algo inspirador, inspirador apenas para desabafos e retratos. De certa forma, viver uma nova história, de preferência com um detalhe inédito, para se distanciar do passado que insistia em perambular pelas ruas em que eles, separados, rastejavam sem saber se encontrariam o futuro ou águas passadas na próximo cruzamento. Hoje, encontraram-se, avistaram-se cada um de um lado da via e congelaram. Os menos de quarenta segundos do semáforo duraram tanto quanto o romance deles durou.
Esgotou-se o tempo da luz vermelha, deram seus primeiros passos e fizeram o que deviam ter feito antes do primeiro encontro: ignorando sentiam um pelo outro, deixando o silêncio reinar, eliminando qualquer chance de um romance entre eles, seguram seus próprios rumos. Talvez se encontrarão outras vezes, mas não importa.

2016/02/26

Sem tempo para nós ou [Confidencial]

[...]

- Não só me arrependo como me odeio por ter sido a pessoa horrível que fui contigo. A lembrança se tornou uma farpa. Todo dia tento arrancar mais um pouco.

[...]

-Tô faz tempo numa crise de identidade, que não consigo manter um comportamento só, fico instável, como você bem viu, e isso faz com que eu machuque as pessoas, mesmo quem quero que permaneça por perto. Por mim, te pediria desculpas diariamente, mas sei que não adianta.

[...]

- Consegui me desintoxicar de algumas relações e alguns sentimentos que ma faziam mal e creio que ainda leve um tempo pra me "recuperar".

[...]

- Achei que você me fazia mal, mas então percebi que o que havia de ruim entre nós estava tudo na minha cabeça e era o que eu fazia, nada você.

[...]

- Se fosse em outra época, a gente teria dado realmente certo, mas “you met me in a very strange time of my life”.

[...]

- Poderia dizer que desejo uma segunda chance (ou seja lá qual for), mas, e isso não tem muito a ver com esses problemas que superei nos últimos meses, eu simplesmente não sei se sou forte o suficiente pra viver viver uma vida a dois com você... Nem com ninguém. I just can’t. Isso me machuca ainda mais, por mais que eu viva por amor, que eu respire romantismo, quando acontece de fato ou surge simplesmente uma ótima possibilidade de tentar... Eu fraquejo, corro, estrago.

[...]

- Eu tinha medo, porque não sabia lidar com teu sentimento.

[...]

2016/02/23

... (rare and unreleased)

I can’t find a metaphor
or analogy
or parabole
or whatever
to translate how i feel

about you
leaving
this mess

about me
disappearing
in memories

about us
disconnecting
with no regrets

about pride
guiding
our minds

about time
flowing
always



about end
destroying
dreams

about everything
becoming
nothing

2016/02/17

15 metros ou Insistência ou desistência

Após meses distanciamento, o tempo destila todos os sentimentos existentes em uma relação - romântica ou de amizade -, deixando restar apenas aqueles que realmente fundamentaram o contato, memoráveis, ignorando aqueles que fizeram tudo desmoronar, na maioria das vezes. Neste episódio específico, o que aflorou naquele que lia na lanchonete não foi toda a amizade de quatro anos que teve (ou ainda tinha?) com aquela que estava no ônibus, que passava em frente ao lugar onde ele se encontrava, mas o amor, o romance, o platonismo ao qual se deixou afundar com o passar dos dias ao lado de, segundo, ele mesmo, a pessoa mais afetuosa que se arriscou a entrar em sua vida conturbada, levando para o fundo todo o afeto fraternal que havia. Depois daqueles seis segundos passados entre o ônibus surgir no espaço em frente a fachada da vidro da lanchonete e desaparecer seguindo o fluxo da rua, logo virando na primeira esquina à direita, despertou o amor afogado, o carinho rememorou os brilhos flamejantes que o atingiam diariamente quando ainda acreditava que ela seria - ou deveria ser - sua companheira para a vida, a cama, as festas, os trabalhos, as viagens, as gestações, o fim.

A insistência dele em permanecer romântico, o romântico clássico, do tipo que sangra (figurativamente, por favor, sem equívocos) por amor e morre por sequelas do sentimento, e o altruísmo benevolente que transborda afeto dela, mantendo próximo quem estivesse (de algum modo, psicologicamente) danificado para que tentasse consertar tal pessoa.
A harmonia entre eles se manteve por meses, anos, através de um código criptografado por desconhecidos, até que uma epifania (possivelmente) coletiva gerou a repulsão de qualquer intenção de se derramar de amor por ela ou ser a barragem de contenção para ele, a ausência de saudade, o desentendimento sobre desejar a amizade ou tudo e amizade ou estudar uma psiquê desgraçada.


Tão rápido quanto o encontro e o ressurgir de algum sentimento maior foi o desmoronamento do mesmo, depois de as lembranças dolorosas invadirem a mente daquele que tentava retomar sua leitura, mas não desfocava os pensamentos daquela que esteve presente por tanto tempo em sua instável vida, poucas pessoas conseguiam.

O que ocorreu dias após essa colisão poderia ser narrada, mas não possui relevância para quem ainda possui (que seja, um pouco de) fé na continuidade de qualquer relação entre aquela que apertava a mão de seu cônjuge no ônibus, agarrando-se a certeza real que sentia ao estar a poucos dias de mudar de cidade e de vida, e aquele que lia um livro por semana para se livrar das memórias corrosivas de pessoas que haviam partido ou encontrado um canto melhor que o seu poço de traumas para repousar.

2016/01/27

Lucidez ou Ceci n'est pas un revê

Não se lembram como chegaram àquele lugar. Enxergava-se tudo em preto e branco, o penteado de L. estava diferente do último e distante encontro, as tatuagens nos dedos de F. estavam mais apagadas, assim como os cigarros que ambos tanto fumavam. Não mais. Não mais fumavam. Não mais se encontravam. Até então. Os detalhes específicos deste encontro escapam às memórias tanto de quem o narra quanto de seus personagens, porém alguns deles - os detalhes - são resquícios do passado cravado na pele de ambos, portanto ainda permanecem visíveis, mesmo que as lentes e as perspectivas tenham mudado. Falando em lentes, neste caso, de óculos, L. trocara a armação preta por uma azul marinho e isso incomodou F. um tanto, “nada contra azul, mas cansei de dizer que vermelho combina mais com você”, disse várias vezes, incluindo durante o reencontro, mas logo se corrigiu, “quem sou eu pra opinar qualquer coisa agora?”. Sentiam, enquanto encaravam a pessoa a sua frente ou tentavam se desfazer da visão turva para reconhecer os objetos ao redor, em uma calada constrangedora que invadia ali aquelas pessoas, que perderam quase toda a intimidade que tiveram outrora e neste instante são mais estranhos do que amantes. Tinham a impressão que já viram a cena que protagonizavam em outra história contada em bar, pedaços de papel ou imagens em movimento. Certamente, alguém viveu ou transformou em ficção uma situação idêntica. Precisavam de uma guia, mas, enquanto o socorro não vinha, teriam que dar um jeito.
Alguém precisava falar algo antes que fossem arrastados por águas de passado e rancor. 
L. disse que sentia a falta de de F., que concordou antes de ouvir o que L. ainda queria dizer: "A gente tinha tudo pra dar certo, mas você estragou tudo, não tem como tentar mais uma vez”.
Silêncio. Desolação. “Corta”, alguém berrou. Fim.

2016/01/15

Água fria

Baseava-se em marés o que sentia. Seu corpo permanecia enterrado em uma praia nada paradisíaca, sem palmeiras nem cavalos brancos, apenas pedregulhos da existência e a areia cada vez mais áspera e movediça de passado. Memórias permaneciam distantes por algum tempo, tão longe que alcançava o recife em vias de morte, que devia estar coberto por água salgada, mas que ressuscitava com a maré vindoura, reaproximando-se da areia e empurrado todos os entulhos de um barco naufragado sobre o peso morto encoberto. As peças que restavam da embarcação poderiam servir para reconstruir o que afundou, ou algo menor, mais resistente, e, talvez, ter potencial para navegar por mais tempo e por mares mais turbulentos, mas as mãos para consertar eram ansiosas demais para segurar os componentes, que, de alguma forma misteriosa, estavam todos enroscados a pesada âncora da navegação, que, em algum buraco no fundo do mar, puxava tudo para junto de si.
Desta vez, não a primeira nem a única, as ondas precisaram de pouco menos de quatro dias para inundar o peso morto na areia, no terceiro dia, já alcançavam os pés e começavam a atormentar os pensamentos, e, no quarto, já inundavam cada pedaço do ser, afogavam cada milímetro dos pulmões, com reminiscências do passado.
Ninguém sabia a localização exata desta praia, mas podia afirmar-se que era próxima a um dos polos deste planeta, avaliando o tipo de areia e de vegetação (zero), não era possível dizer se era Norte ou Sul, o que sabia-se muito bem era que a água permanecia em temperatura negativa, então, mesmo quando a maré recuava, o corpo ainda permanecia molhado e congelado. O líquido frio que insistia em não evaporar ou escorrer para longe era pior que a maré, porque - a água - incomodava a possibilidade de distração, de pensar em tudo que não fosse a água, a maré, as ondas, ficava na pele, penetrava, qualquer ato ou pensamento era acompanhado da água e tudo que a envolvia, tudo que a lembrava, tudo...
O corpo continuava preso na areia, mas a maré recuou, alguns meses após a última grande onda foram necessários para o pedaço de carne humana se secar e descobrir que o grande oceano estava a uma distância confortável, conseguiria se preparar caso ela retornasse com força.
Por estar com o corpo enterrado, não conseguia ver o que havia atrás de si, e, quando pensou estar livre da agonizante maré que ia e vinha destruindo sua existência mais e mais, mal sabia que havia um vulcão pronto para explodir nas suas costas, a lava fervendo de outras lembranças. As possibilidades de destruição nunca cessariam, deveria apenas aceitar que a maré, o vulcão ou qualquer outra força alcançaria seu inerte corpo. Afogando-se, queimando, não conseguia evitar sua própria destruição. Reconstrução. Onda. Vai. Volta. Destruição.